Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Muito além do ‘sim’ e do ‘não’

O debate a respeito da cobertura do referendo está ficando tão quente quanto a discussão sobre o desarmamento. Este é um dado novo que não pode ser menosprezado. O problema da violência precisará de outros referendos, qualquer que seja a opção vitoriosa em 23 de outubro. Mas o desenvolvimento de um espírito crítico no tocante à imprensa a partir desta consulta popular poderá estimular a sociedade brasileira a assumir uma posição mais participativa e mais afirmativa. Inclusive no campo político.


A desastrada e desastrosa capa da edição de Veja da semana passada (‘7 razões para votar NÃO’, nº 1925, 5/10/2005, págs.78-86) transcende às suas opiniões sobre venda de armas defendidas de forma tão equívoca. Seu mérito, involuntário, foi suscitar um debate nacional sobre jornalismo. Provocou os leitores – seus e de outros – de maneira jamais vista.


Aquele jornalismo arrogante e onipotente acionou um movimento em sentido contrário. Um empenho em reparar e fazer justiça trouxe para o ‘Canal do Leitor‘ deste Observatório um número recorde de manifestações. Nos quase 10 anos de existência deste fórum nunca tanta gente opinou sobre um mesmo tema, numa mesma edição. Com palavras, estilos e posturas diferentes, 35 leitores disseram a mesma coisa: não há mais lugar para este tipo de arrogância em letra de forma. Outros 52 apoiaram a atitude da revista e 46 não a comentaram. Se Veja com seu milhão de exemplares e três milhões de leitores recebeu 2.306 mensagens sobre a questão do desarmamento, as 133 mensagens aqui recebidas (de um total de 226 publicadas até às 12h52 de 11/10) têm peso relativo muito maior.


Obrigação moral


Mas não foram apenas os leitores, embora eles é que contem. Uma inédita e trepidante retaliação dos concorrentes diretos confrontou as ‘7 razões para votar NÃO’ de Veja. Neste último fim de semana, IstoÉ reencontrou a antiga criatividade e respondeu: ‘7 razões para votar SIM’ e ‘7 razões para votar NÃO’. Época não ficou atrás e desfechou: ”10 mitos sobre as armas (contra e a favor)’.


O importante nesta resposta está no fato de que os dois semanários não tiveram outra saída senão apelar e revalidar a noção da eqüidistância. Reencontraram-se com a busca da objetividade. Por oposição ao poderoso concorrente recorreram ao velho e esquecido princípio do equilíbrio que nestes tempos de iras – sagradas ou não – jaz quase esquecido.


Mas quem se saiu melhor não foi nenhum dos semanários – foi um jornal, a Folha de S.Paulo: assumiu-se a favor do ‘sim’ no lugar e com a entonação apropriada: um editorial dominical, solene e reservado. Como fazem todos os grandes veículos do mundo antes de alguma eleição, não pretendeu confundir opinião com informação.


Curiosamente, a Folha não o fez nas eleições presidenciais. Não sentiu necessidade de fazer escolhas. Agora, talvez premida por este debate salutar e espontâneo sobre a precedência da razão na função de informar, a Folha sentiu-se na obrigação moral de fazer uma opção. É edificante perceber que neste pantanal de imoralidades, leitores, jornais e jornalistas busquem saídas decentes, coerentes e idealistas.


Subjetividades eloqüentes


Mas quem se saiu pior foi Sua Excelência, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em artigo publicado no domingo (9/10) na mesma Folha (pág. A 3) [leia aqui], o presidente anunciou sua opção pessoal pelo ‘sim’. Poderia optar pelo ‘não’, não importa – lamentável foi a forma de anunciar a escolha.


Lula não é pessoa física, é presidente da República. No pé do artigo, lá está a sua qualificação e o seu e-mail funcional. Nestas condições, ao manifestar-se num debate desta importância, o chefe da Nação deve dirigir-se à Nação – não pode privilegiar um veículo. Deve falar para todos, indistintamente. Democraticamente.


Os assessores do presidente estão afobados demais para reparar nessas pequenas subjetividades, mas esta escolha – aparentemente humanista – foi proferida de forma tão arbitrária e totalitária que perde parte substancial de seus valores intrínsecos.


Referendo é coisa séria e este referendo em especial está sendo tratado pela cidadania como coisa séria. Convém que governantes, políticos e jornalistas não percam isso de vista.