Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

“Não dá mais para esperar”

A “ameaça à liberdade de imprensa” voltou a ser pauta nacional nesta semana, depois de o PT ter defendido, em seu 4º Congresso, o marco regulatório da comunicação. Debate travado há décadas no Brasil, a regulação do mercado das comunicações não avança pelo interesses das grandes empresas mas, também, pela ausência de uma proposta concreta do atual governo federal, que debate o tema há nove anos. A avaliação é do sociólogo e jornalista Venício Artur de Lima, professor aposentado da Universidade de Brasília (UnB).

Autor dos livros Mídia: Teoria e Política e Regulação das Comunicações: História, Poder e Direitos, entre outras obras, Venício Artur de Lima sustenta que o marco regulatório da comunicação é uma regulação do mercado, e não uma censura aos veículos de imprensa. Questões como a formação de monopólios e oligopólios, propriedade cruzada de meios de comunicação e controle de emissoras de rádio e TV por parlamentares precisam ser regulamentadas. “O marco regulatório é uma regulação de mercado e a regulação do que já existe na Constituição, por exemplo, em relação a princípios e normas de programação, proteção de populações específicas como crianças em relação à publicidade, que existe no mundo inteiro”, explica.

Na entrevista, o pesquisador defende que o governo apresente logo a proposta, gestada pelo ministro Franklin Martins durante o governo Lula e trabalhada, este ano, pelo ministro das Comunicações, Paulo Bernardo. Mas vê com pessimismo que as mudanças sejam aprovadas no Congresso Nacional. “Se você tomar como referência as duas últimas décadas, a possibilidade de haver alguma modificação no Congresso é muito difícil”, afirma.

“A explicação é de que está sendo estudado”

Qual o significado de o PT ter defendido, em seu congresso, o marco regulatório da comunicação, apesar das notícias de que houve um recuo do partido?

Venício Artur de Lima – Quem recuou, na verdade, foi o noticiário da mídia. Aqui em Brasília, provincianamente, o Correio Braziliense, por exemplo, deu capa dizendo que o PT ia controlar a mídia. Ao invés de sair uma resolução, saiu uma moção. Na resolução política, saíram dois parágrafos, e mais ainda, na fala inicial do Rui Falcão (presidente do PT), o discurso de abertura tem um parágrafo e meio falando da questão da mídia. Para a mídia, não ter saído a resolução foi um recuo. Eu não sou do partido e não estava presente, mas não vi como recuo nenhum. O PT tirou uma posição do partido priorizando, colocando na agenda política a discussão da regulação da mídia.

Diz-se que o governo apresentaria uma proposta no segundo semestre. O senhor acredita nisso?

V.A.L. – Passaram-se oito anos do governo Lula e a proposta do marco regulatório não aconteceu. No final do governo Lula, saiu um terceiro decreto para fazer o projeto do marco regulatório, elaborado sob a coordenação do então ministro da Secretaria da Comunicação, Franklin Martins. A expectativa era de que esse projeto fosse divulgado, mas não foi. O que foi dito foi que o projeto foi passado para o novo governo e, desde então, espera-se que o novo governo divulgue. O atual ministro das Comunicações (Paulo Bernardo) deu declarações desencontradas e disse que a partir de julho o projeto seria colocado em consulta pública. Nós já estamos em setembro. As notícias que saem do ministério das Comunicações dizem que o projeto, ou pré-projeto, que teria sido preparado pelo ministro Franklin Martins, estaria sendo reexaminado por esse governo. Pessoalmente, acho que não dá mais pra esperar. A explicação de que isso está sendo estudado, quer dizer, se esse governo é continuidade do outro – já são nove anos.

“O marco regulatório é uma regulação de mercado”

Segundo informações, o governo quer atualizar a Lei Geral das Telecomunicações, para ter o apoio das teles.

V.A.L. – Do meu conhecimento, esse foi o último senão acrescentado pelo ministro Paulo Bernardo. “Não, agora está demorando porque vamos fazer um plano que vai rever também a LGT, de 1997.” Eu não sou mais menino, já ando velho, e escuto essas coisas a vida inteira. Para uma pessoa como eu, essas explicações não significam nada. Se o projeto existe, a divulgação dele está sendo protelada pelo governo porque tempo para estudar e tempo para mudar e tempo para corrigir é o tempo de sempre. O Brasil é totalmente desatualizado nessa área. É só olhar o que está acontecendo em volta, na América Latina, o que aconteceu em outros países de democracia liberal. Até a própria relação da grande mídia atual revela como nós somos atrasados nessa área. Um partido político vai reafirmar a posição de princípios que estão na Constituição, que já foi resultado de uma negociação extremamente penosa. Depois de 23 anos, um partido reafirma, por exemplo, que é contra a propriedade cruzada dos meios, que está implícita no parágrafo quinto do artigo 220, que diz que nos meios de comunicação não pode ter nenhum oligopólio nem monopólio, e provoca reações desse tipo. Nessa área há um nó que não consegue ser desatado.

Quais são os principais pontos que o senhor defende no marco regulatório da comunicação? Seria vetar propriedade cruzada, proibir políticos de controlar rádios e TV? O que é que mais urgente na regulamentação da comunicação no Brasil hoje?

V.A.L. – A primeira coisa, quando se fala em marco regulatório, e isso é absolutamente claro nas declarações de governo, é uma regulação do mercado porque o mercado brasileiro dessa área é oligopolizado ou monopolizado em algumas regiões. Então, mesmo as regras que existem, por exemplo, com relação à concentração da propriedade, que estão no decreto 236 de 1967, não são obedecidas. E há casos gritantes de oligopólio que têm sido, inclusive, judicialmente confirmados, em função de ações no Ministério Público Federal, porque os juízes que tratam disso alegam que há decisões administrativas do Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) que não reconhecem a existência do monopólio. Há uma conduta do Ministério das Comunicações que faz de conta que não existe um grupo que, em rede, controle um número grande de concessões de radiodifusão porque as empresas individuais estão em nomes de pessoas, de indivíduos, são pessoas jurídicas distintas. No resto do mundo, há controle sobre a formação de redes. No Brasil, não há nada. O caso da RBS no Rio Grande do Sul e em Santa Catarina é o mais evidente. Acabou de haver uma resolução legal, tomada em março deste ano por um juiz federal em Florianópolis, que não reconhece a existência de um oligopólio em Florianópolis. E da propriedade cruzada, que alega que o Cade não reconheceu e fala que as normas do artigo 221 e 220 da Constituição não foram regulamentadas. O marco regulatório é uma regulação de mercado e a regulação do que já existe na Constituição, por exemplo, em relação a princípios e normas de programação, proteção de populações específicas como crianças em relação à publicidade, normas para publicidade de alimentos nocivos à saúde, que existe no mundo inteiro.

“Não vejo luz no fim do túnel”

Cotas de produção regional e independente também.

V.A.L. – São esses tipos de questões, e as mais recentes ligadas ao desenvolvimento tecnológico. O PL 116, que foi aprovado outro dia no Senado, é complicado porque trata de uma questão específica, a TV paga, num contexto muito mais amplo das transformações que hoje unem telecomunicações com radiodifusão e têm as suas diferentes manifestações na TV paga, na TV aberta. Há as questões das rádios comunitárias. Há outras questões que também estão na Constituição. Essa, de em exercício de mandato não poder ser concessionário, está no artigo 54. Mas tem interpretações diferentes, polêmicas, inclusive do judiciário. Essas coisas que precisam ser assentadas. Marco regulatório no Brasil é isso. E, no entanto, não consegue avançar.

Quais são as chances do marco regulatório avançar no Congresso, sendo que muitos parlamentares possuem concessão de rádio e TV, além de haver pressão das grandes empresas? E por que o governo não apresenta a proposta?

V.A.L. – Nos últimos anos, se você tomar como referência o processo da Constituinte, que vai fazer 23 anos, não conseguimos avançar em nada em relação ao que já está na Constituição. Teve a decisão sobre a TV digital, que no meu ponto de vista foi um retrocesso. Houve de positivo a criação da EBC e a realização da primeira Conferência Nacional de Comunicação. Mas avanço mesmo, não houve nada. Se você tomar como referência as duas últimas décadas, a possibilidade de haver alguma modificação no Congresso é muito difícil. A esperança sempre foi que um governo, um Executivo eleito com apoio popular, tivesse condições de mobilizar parcelas significativas da sociedade, mostrar a importância da questão, em última análise, do direito à comunicação, e conseguir fazer modificações tipo o marco regulatório. Eu não vejo essa vontade expressa, por exemplo, nas falas do ministro das Comunicações. Vejo com muita simpatia, como algo muito positivo, as decisões do 4º Congresso do PT porque mostram que há uma diferença entre o PT e o governo. Quer dizer, o PT está no governo mas o PT tem que ter, como partido, as suas próprias posições e metas e lutar por elas. Nesse sentido, o PT reiterar posições que não têm nada de extraordinário… Eu não sou um otimista em relação a estas questões, até porque eu já estou há muito tempo nesse negócio e não vejo luz no fim do túnel.

“Isso [conselhos] não tem nada a ver com censura”

Algo que assusta a mídia é o controle social sobre a comunicação. O que significa esse controle social?

V.A.L. – A Constituição fala na questão do controle social nas várias áreas de políticas públicas. Educação, saúde, assistência social. O controle social é uma forma de descentralização administrativa e de ampliação da participação direta da população na formação, acompanhamento, e até mesmo na gestão de políticas públicas. No caso da saúde, há mais de 40 anos existem no Brasil os conselhos. Porto Alegre é pioneira na experiência de controle social dos orçamentos, os chamados Orçamentos Participativos. Agora, na medida em que o governo federal não coloca na rua um projeto de marco regulatório, ele próprio dá margem a que os interesses contrários a qualquer forma de regulação, ou a qualquer coisa que seja diferente ao status quo, façam as mais estapafúrdias acusações porque não se tem um texto de referência para fazer a discussão. Se você tiver um texto de referência de uma proposta do marco regulatório, vai ter que ser discutido o que está lá. O sujeito fala em conselhos estaduais de comunicação, por exemplo, como acontece aqui em Brasília. Vários setores dizem que se trata de censura. Mas na lei orgânica do Distrito Federal está aprovado desde 1993, tem um artigo que fala na criação de um conselho e tem que regulamentar. É um órgão de assessoramento do poder executivo para a formulação dos planos regionais de comunicação. Você vê que isso não tem nada a ver com censura, então a discussão fica mais fácil de ser feita, porque você tem um projeto.

“O Conselho de Comunicação Social não é cumprido”

Mas um dos exemplos que se tem é a Argentina, onde há uma disputa entre a presidenta Cristina Kirchner e o Grupo Clarín.

V.A.L. – Mas, mesmo na Argentina, tem censura? O debate é falso, é porque existem certas bandeiras que são universais e uma forma de defender interesses é empunhá-las, mesmo quando você faz exatamente ao contrário. Quem faz censura na Argentina e no Brasil são os oligopólios de mídia. Porque a partir do momento em que são oligopólios, impedem que vozes se expressem. Não deixam que haja liberdade de expressão. Dificultam a consolidação do direito à comunicação. Eles é que são os agentes da censura, mas empunham essa bandeira da censura e da liberdade. Isso é um recurso político histórico. Quem é contra a liberdade? Quem é contra a censura? Eles promovem a censura e impedem a liberdade de expressão da grande maioria da população, mas empunham a sua bandeira. Como têm o poder de gestão da agenda de debate público, isso passa a ser verdade para muita gente. Esse é o problema, por isso é que essa área é tão difícil. Mas o que acontece na Argentina, com todas as letras, é uma regulação de mercado. Inclusive atribui cotas de participação no mercado, para vozes que não tinham voz. E regula áreas como a transmissão esportiva, que é uma forma de entretenimento vinculada a cultura desses países, Argentina e Brasil.

Em resumo, o senhor defende que haja um texto para que o debate seja feito em cima de algo concreto.

V.A.L. – Eu falo isso há décadas. No governo Lula, há vários casos de projetos que nunca se materializaram, sequer na forma de projeto, e que foram combatidos com versões que foram vazadas e ninguém assumia a paternidade. O exemplo mais óbvio é o da transformação da Agência Nacional de Cinema (Ancine) em Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual (Ancinav). Faz um projeto, bota na rua e vamos ver as coisas que estão lá. O equívoco maior, no meu ponto de vista, foi a questão do Conselho Federal de Jornalismo. Os fatos mais recentes da conduta ética e profissional de alguns jornalistas de veículos da editora Abril mostram a necessidade de um conselho, do tipo da Ordem dos Advogados do Brasil, que funcione como forma de acompanhamento do exercício profissional dentro de normas da própria profissão. Normas éticas, morais, de conduta. Isso está acontecendo no mundo inteiro. Na Inglaterra, com o caso do News of the World, mas no Brasil não tem nada, não tem autorregulação, não tem absolutamente nada. O Brasil só regula o que é do interesse da radiodifusão. Regula as concessões, fala que para poder renovar as concessões precisa de dois terços do Congresso. Para cancelar, precisa de decisão judicial. Regula as rádios comunitárias para impedir que elas tenham autonomia e ameacem essas emissoras comerciais. Agora, o que interessa mesmo, a propriedade cruzada, a questão das normas de regionalização da produção, prioridade para a produção independente, tudo que está na Constituição, nada disso é regulamentado. Mesmo o Conselho de Comunicação Social, como órgão auxiliar do Congresso Nacional, é regulamentado, mas não é cumprido. O conselho funcionou durante menos de quatro anos e depois não funcionou mais porque o Congresso não convoca os seus membros para instalá-lo novamente. A situação é essa.

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[Daniel Cassol, da Redação do Sul21]