Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

‘Neutralidade da rede deve ser regulada pela Anatel’

O marco civil da internet, projeto de lei do governo que será enviado ao Congresso Nacional em agosto, virá com algumas novidades frente à consulta pública no que se refere às responsabilidades pelo conteúdo que trafega na Web. Conforme um dos coordenadores do projeto, Guilherme Almeida, chefe de gabinete da secretaria de Assuntos Legislativos do Ministério da Justiça, o ministério ainda não se sente confortável com a posição de que só sejam retirados conteúdos do ar mediante decisão judicial, pois esta medida, se preserva a liberdade de expressão, pode prejudicar aqueles que querem se proteger dos abusos pornográficos.

A neutralidade da rede, se é um princípio previsto na proposta, deve, no entender de Almeida, ser regulada pela Anatel, agência responsável pela infraestrutura de telecomunicações. Quanto à proteção à privacidade dos dados, ele observa que a proposta também traz somente os princípios gerais, mas que a preservação dos dados individuais deve ser regulada por uma outra lei, que também está em discussão no Ministério da Justiça.

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Acabou a segunda rodada da consulta pública ao Marco Civil da Internet, que recebeu mais de mil contribuições. Quais são os próximos passos?

Guilherme Almeida – Analisar todos os comentários, fazer alterações nos artigos, manter integrado o texto. Consultar os órgãos de governo a respeito da versão final, e encaminhá-lo para o Congresso Nacional.

Será um projeto de lei simples ou complementar?

G.A. – É um projeto de lei simples.

A dúvida é: se é um projeto de lei simples, ele não prevalece sobre as demais proposições que tramitam no Congresso Nacional, com propostas bem antagônicas. Por que então lançar mais um projeto?

G.A. – Até por isso é que ele existe. Existem muitos projetos de lei que ignoram a natureza da internet. Por exemplo: tem projeto que obriga a cadastrar todos os e-mails enviados por 10 anos. É uma medida anacrônica e irreal para a internet. Ou eles vão travar a internet, ou vão ser desrespeitados. Entendemos que seria necessária uma lei que tivesse uma camada de tradução, que ajudasse o Direito a respeitar a internet.

Quando a minuta do projeto será enviada o Congresso Nacional?

G.A. – A previsão é para o final deste mês. Mas considerando que ele ainda terá que ser aprovado por diferentes instâncias do governo, acredito que deverá ser encaminhado ao Legislativo no final de julho.

O governo pedirá que sua tramitação se dê em regime de urgência?

G.A. – Acredito que não. Essa iniciativa será definida pela Casa Civil. Embora o pedido de urgência seja uma iniciativa do presidente Lula, acredito que é melhor o debate estar mais amadurecido.

Quais os princípios que nortearam o Ministério da Justiça na elaboração da proposta?

G.A. – Trazer os usos e costumes da internet para serem reconhecidos pelo Direito. Questões como neutralidade da rede, proteção a dados pessoais, garantia da privacidade, liberdade de expressão, intimidade, segurança. Premissas e valores, a inimputabilidade dos meios de transmissão. Uma série de elementos da natureza da internet para que sejam interpretados pelo judiciário. Que possam ser usados por promotores, advogados em suas petições. E também pautar o debate legislativo a esse respeito.

Há críticas sobre o alcance da proposta.

G.A. – O projeto não se propõe a esgotar o tema. Por exemplo, ele não trata da comunicação social eletrônica de massa; certificação digital; direito autoral, spam, e uma dúzia de temas. Ele é uma base, a partir da qual esperamos que cada tema seja revisado segundo os seus princípios. Ele não tem uma forma vinculante, mas deve pautar o debate.

Hoje existem dois movimentos importantes no mundo. Um, liderado pelos países europeus questiona o livre download através do P2P. Há outro movimento que quer maior controle da internet aí envolvendo diferentes potências mundiais. Em minha avaliação, o projeto de lei do Ministério da Justiça está na contramão destes movimentos, mais em prol da liberdade. Concorda?

G.A. – Seu diagnóstico está bom. Existe um conflito entre liberdade e controle na internet.É um dilema é legítimo: combate à criminalidade à honra a preservação do direito intelectual por um lado e a defesa da liberdade e direitos fundamentais de outro. Nossa função é tentar buscar um equilíbrio, com a determinação de que os direitos fundamentais não sejam sonegados. O debate que busque a repressão, o controle, a criminalização, etc., pode ser duplamente perigoso: primeiro porque, com o argumento da segurança corre-se o risco de suprimir direitos fundamentais das pessoas. O segundo risco é da própria internet. O excesso de dominação e controle pode – caso da China – prejudicar a estrutura e desenvolvimento da rede.

No momento em que os países desenvolvidos tendem a um maior controle, de que forma esse movimento afeta o projeto brasileiro?

G.A. – É uma resposta brasileira a esta situação.

Você acha que o Brasil não vai precisar passar por esta discussão?

G.A. – Acho que o Brasil está apresentando para si e para o mundo um novo caminho possível de regulamentação. No âmbito internacional, está-se apontando para o maior controle como único caminho possível. Estamos tentando construir uma alternativa. Achamos importante algum grau de controle, procedimentos de segurança e cooperação internacional. Não somos contra, mas este não pode ser o principal argumento para regulamentar a internet.

Da mesma forma em que existe a discussão liberdade versus controle. Há também a questão liberdade versus privacidade. Nos últimos tempos temos assistido denúncias de usos indevidos das informações de seus usuários. Como projeto trata a questão da privacidade?

G.A. – Há uma lacuna ainda maior em nossa legislação. O Brasil não tem uma lei clara para a proteção de dados pessoais. Este é um passo importante e necessário. No ministério estamos trabalhando com o Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor (DPDC) para formularmos um novo projeto de lei neste sentido. Este tema não estará presente do Marco Civil da Internet.

Por que não?

G.A. – Porque o Marco Civil é um projeto transversal. E a questão dos dados pessoais não trata apenas da internet. O cartão de crédito, de fidelidade, do banco, do mercado também carregam dados pessoais. Antecipamos no Marco Civil três premissas para internet: o princípio da privacidade, na forma da lei; o provedor de conexão não pode filtrar, monitorar o tráfego que passa por ele. Ou seja, não cabe àquele que transporta violar a comunicação.

O princípio da inviolabilidade da comunicação está na Constituição.

G.A. – Só para as comunicações telefônicas e telemáticas. Queremos deixar claro para a internet. Outro ponto que deixamos claro refere-se ao destinatário da comunicação, com o princípio da auto-determinação afirmativa, dá ao titular dos dados o poder de decidir o que fazer com eles. Ou seja, para se fazer algo com os dados de alguém, tem que haver o consentimento da pessoa, e tem que ser livre, não compulsório, além de se informar com clareza sobre o seu uso.

As polêmicas da proposta estão concentradas em três grandes temas: a neutralidade da rede; a guarda de registros e responsabilidades na remoção de conteúdo. Vocês já mexeram em uma delas, não?

G.A. – Sim na de remoção de conteúdo. O ‘x’ da questão é: na situação atual, não existe uma clareza sobre a responsabilidade civil daqueles que recebem conteúdos de terceiros. Em alguns casos eles respondem por comentário, postagem, etc. Seja pequeno ou grande portal.

Em relação à neutralidade da rede, também há um debate mundial. As empresas de telecomunicações alegam que há um desbalanceamento entre a procura por bits e oferta da infraestrutura. Elas não querem se meter no controle do conteúdo, mas argumentam que uma única corporação, ou produto, ou site que consumir 80% do tráfego da rede é um privilegiado em relação aos pequenos provedores. Como o Marco Civil trata esta questão?

G.A. – Ela é complexa, mas parte da lógica da não-discriminação. O que não quer dizer, por exemplo, que não se pode estabelecer que a pessoa que paga ‘x’ tenha até 300 Kbps e a que paga ‘x’ mais ‘y’ tenha mais capacidade. Isto não quer dizer, que está-se ferindo a neutralidade da rede.

Mas em relação às grandes corporações? Exemplo: um site de busca, sei lá, consome 80% do tráfego da rede mundial. Outro que não consome, cai. Como lidar com isso?

G.A. – É um tema que merece debates mais aprofundados e que a sua exata regulamentação tem um ‘quê’ de regulamentação de telecom. Temos uma tarefa para a Anatel. A função do Marco Civil é apontar o fundamento legal que permita a regulamentação posterior. E que já estabeleça algumas vedações. Assim como a Lei Geral estabelece algumas obrigações de interoperabilidade, seria possível obter obrigações de não discriminação com mais clareza.

E o que o Marco Civil traz para esta questão?

G.A. – Em primeiro lugar, traz a neutralidade da rede para a internet. Ele trata com uma premissa (artigo 12) de não discriminação de conteúdo em relação a sua origem, formato, padrão, protocolo, salvo por questões técnicas. Uma pessoa que compra um carro 1.0 não vai ter o mesmo potencial de correr em uma estrada do que uma pessoa com um carro 3.0, mas a estrada não deveria proibir que essa pessoa corresse menos do que a outra.

O problema é como você assegura isso?

G.A. – Buscamos assegurar a não-discriminação como princípio geral. O detalhamento disto pode vir por normas de telecomunicações ou eventualmente pode-se estender para a defesa do consumidor ou Ministério Público.

O Marco Civil não remeteu esta questão à Anatel.

G.A. – Há uma dúvida se deveríamos remeter esta questão à Anatel nesta lei, visto que a LGT já trata disso. Existe uma discussão maior sobre a natureza do provimento de serviço de internet. Uma discussão de fundo, que também o projeto não quis entrar ( se internet é SVA ou telecom). Não quisemos tratar de infraestrutura, mas da camada de garantia de direito e responsabilidades, poderes, deveres e restrições.

Em relação ao segundo tema polêmico, com a mudança feita ao longo da consulta pública, como ficou a proposta do Ministério?

G.A. – A linha de fundo da proposta é que os que são meros intermediários da comunicação, que hospedam conteúdos de terceiros, não devem ser responsabilizados pelo conteúdo que não é deles. Após essa premissa, precisamos estabelecer as responsabilidades. E a primeira alternativa foi a de criar um mecanismo de ajuda a quem se sentiu prejudicado. Mas, a partir da demanda da sociedade, mudamos as regras para que a remoção de um conteúdo só possa ocorrer por ordem judicial. Esta forma é benéfica à liberdade de expressão, mas pode ser prejudicial a outros direitos

Do tipo?

G.A. – Do tipo honra, do tipo imagem, do tipo abusos de pornografia, bullying. A menina que sofreu uma montagem por pornografia divulgada na internet, conforme a proposta modificada, precisará contratar um advogado e ir à justiça e esperar uma, duas, três, cinco semanas para tirar do ar o conteúdo que lhe causa esse grande prejuízo. Mas este foi, até o momento, o caminho que se formou para preservar a opção da sociedade pela liberdade de expressão.

É uma questão que poderá ser revisitada?

G.A. – O ministério ainda não se sente satisfeito com a proposta. O próprio ministro (do STF) Gilmar Mendes apontou com clareza o problema dos Tribunais Judiciais Especiais, criados para melhorar o acesso ao Judiciário e que funcionaram tão bem, mas que agora têm 3 milhões de ações em menos de um ano. Eles entupiram. Achamos que judicializar a questão não é a solução. Ainda estamos buscando um meio-termo para preservar a liberdade de expressão, mas criando algum mecanismo que possibilite a pessoa a voltar atrás do que fez ou que facilite a vida do judiciário no processo.

Alguns afirmam que o marco civil trará mais ônus para os provedores.

G.A. – Mesmo que prevalecesse a primeira proposta, de o provedor notificar os afetados pela comunicação, ainda assim os benefícios certamente seriam maiores do que os prejuízos. A eliminação da responsabilidade dos intermediários já é um ganho incontestável. Além do mais, o custo do armazenamento de dados cai a cada dia.

E as lan houses e telecentros serão tratados como provedores de internet para esta lei?

G.A. – Não, eles são encarados como usuários. Os provedores são as telefônicas, que teriam o registro.