Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O ator principal não foi convidado

Uma das maneiras de se identificar os interesses em jogo em determinada decisão é verificar como se manifestam sobre ela os principais atores envolvidos ou seus representantes. No caso da adoção pelo Brasil do modelo japonês para a TV digital, decidida pelo governo na quinta-feira (29/6), não poderia haver clareza maior sobre quem ganhou e quem perdeu ou sobre quais, de fato, foram os interesses atendidos.

Na véspera da assinatura do decreto presidencial, a Frente Nacional por um Sistema Democrático de Rádio e TV Digital, que reúne as mais representativas entidades da sociedade civil, havia divulgado carta aberta à sociedade brasileira sob o título ‘Decisão sobre a TV digital: Governo próximo de erro histórico’ ,na qual se afirmava que a escolha do padrão japonês (ISDB) ‘significa a morte do SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital), cuja proposta inicial baseava-se em princípios como a democratização das comunicações, a promoção da diversidade cultural, a inclusão social, o desenvolvimento da ciência e indústria nacionais’. E mais,

‘…ao optar pelo ISDB, o governo despreza o acúmulo social que sustentou sua eleição e submete-se de maneira subserviente aos interesses dos principais radiodifusores do país, especialmente aos das Organizações Globo. Se levar adiante o anúncio pelo ISDB, o governo brasileiro, infelizmente – e à semelhança dos anteriores –, seguirá tratando a comunicação exclusivamente como uma moeda de troca política.’

Já o jornal O Globo, porta voz das Organizações Globo, no dia seguinte à decisão, estampou editorial sob o título ‘Rumo certo’ no qual critica como ‘megalomaníaca e dessintonizada [sic] da realidade’ a decisão anterior do governo Lula de tentar desenvolver um sistema nacional e completa:

‘…o país optou pelo melhor [sistema de TV digital] , de origem japonesa, mais adequado às necessidades brasileiras do que as tecnologias concorrentes, americana e européia. (…) As emissoras, a indústria e o Estado brasileiro entram numa contagem regressiva de sete anos para a conversão da TV analógica em digital. Pelo menos, a direção está definida, e no rumo certo.

Platéia seleta

Quem acompanha o desenvolvimento do setor de comunicações no país não ficou surpreso ao constatar que, mais uma vez, venceram os interesses dos grupos privados que historicamente controlam a nossa mídia. Também não há qualquer surpresa no fato de que perderam os grupos que lutam pela democratização da comunicação e pelo interesse público. Nada de novo.

No seu discurso durante a solenidade de assinatura do decreto no Palácio do Planalto, o presidente Lula insistiu na relação democrática que seu governo construiu com a sociedade brasileira para concluir o projeto que foi discutido com quem quis discutir. E mais: disse que o processo de decisão havia sido encaminhado de forma participativa com o envolvimento da sociedade, ‘como é normal neste nosso mandato’.

Curiosamente, no entanto, quem assistiu à cerimônia transmitida pela NBR/Radiobrás, deve ter notado que lá estavam representantes das empresas de radiodifusão privadas e públicas, da indústria de eletroeletrônicos, de universidades privadas e públicas, ministros do Brasil e do Japão, senadores, deputados e funcionários do governo de diferentes escalões.

Sem convite

Quem não estava lá? Não estava lá quem representasse diretamente os 180 milhões de telespectadores brasileiros que mal sabem o que é TV digital.

Esses telespectadores certamente não sabem que perdemos a maior oportunidade histórica para quebrar o oligopólio da televisão brasileira e avançar na democratização das comunicações. Também não sabem que os mesmos grupos privados continuarão a decidir a maior parte do que vemos e ouvimos.

Não estava lá quem não tem a menor idéia do porquê da pressa para se tomar essa decisão e vai, ao final de tudo, pagar a conta assim mesmo.

As dezenas de entidades da sociedade civil que mais legitimamente representam o interesse público não estavam lá. Talvez não tenham sido convidadas para a festa. O ator mais importante e em nome de quem tudo deveria estar sendo feito, como sempre, não saiu na foto.

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Pesquisador sênior do Núcleo de Estudos sobre Mídia e Política (NEMP) da Universidade de Brasília e autor, entre outros, de Mídia: Teoria e Política (Editora Fundação Perseu Abramo, 2ª ed., 2004)