Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O Brasil precisa de enforcement

‘Se as teles ganham de um jeito e as emissoras de TV de outro, talvez tenha chegado a hora de saber como (e o que) ganha o restante da sociedade brasileira.’ Tem razão o professor. Gustavo Gindre em Hora de a sociedade ganhar), ao indagar sobre o papel, os interesses e os direitos dos brasileiros, que se têm constituído em verdadeiros alienígenas no debate sobre a TV digital. Um lobista distraído teria perguntado: ‘Os brasi- quem?!?’ Pois é: os brasileiros, onde entram?

Só identifico um veículo que tem repercutido essa discussão de maneira mais ampla, sem se submeter à pauta dos lobbies dos padrões tecnológicos: é justo este Observatório.

Mas o prof. Gindre também sustenta que a experiência regulatória de outros países (especialmente Estados Unidos, Reino Unido, Canadá, França, Japão, Austrália e a União Européia) recomenda que o Brasil faça o mesmo exercício: mudar as leis para se adequar ao novo cenário. Já aqui, não concordo.

E minha discordância não se dá na condição de advogado de operadoras de telefonia, como indicou o professor. Tampouco se dá na condição de advogado dos radiodifusores, o que também sou. Se dá na posição, incômoda e privilegiada, de alguém que não vê TV, mas vive desses setores há décadas, inclusive na condição de professor na especialização latu sensu em Direito das Telecomunicações do Ipejur da Universidade da Cidade do Rio de Janeiro.

É um truísmo dizer que as leis não mudam a realidade, porque são um reflexo dela mesma. Mas essa obviedade parece estar desconsiderada, na discussão da convergência tecnológica, genericamente, e da TV digital, especialmente.

É preciso que qualquer lei aprovada pelo Congresso Nacional seja aplicada, que sua observância seja exigida e garantida pela sociedade e pelo Poder Público. Sobre o assunto, o prof. Franco Monteiro, da Faculdade de Direito da PUC/SP, lecionava que o Brasil precisa de uma só nova lei, com dois artigos: ‘Primeiro. Cumpram – se as leis existentes. Segundo. Revogam-se as disposições em contrário.’ É um modo debochado de ensinar que as leis produzidas pelo Congresso Nacional morrem, se não forem observadas, cumpridas, acatadas.

Dou apenas dois exemplos: a Lei 9.294/95 proíbe o fumo em recintos fechados e é solenemente descumprida há 10 anos; o inciso IV do art. 7º da Constituição determina que o salário mínimo seja capaz de atender às necessidades vitais básicas do trabalhador e de sua família com moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência, mas o salário mínimo não sustenta uma única pessoa, que dirá uma família.

Mais meios

O prof. Gindre dá outros exemplos, em seu artigo, de leis que ‘não pegaram’, ‘como a proibição ao monopólio e ao oligopólio, a necessidade de regionalização da produção audiovisual, a criação de meios públicos não-estatais’. E alerto: um exercício mais extenso produziria, só na Constituição, centenas de não-leis, porque promulgadas, mas jamais cumpridas.

É por identificar a inutilidade de uma nova lei para mudar a realidade que afirmo: em matéria de telecomunicação e de radiodifusão o Brasil precisa de enforcement, e não de novas leis.

Se for verdade que as emissoras de TV só ‘querem usar uma única regra da Constituição, que é a proibição ao capital estrangeiro’, como quer o prof. Gindre, então o país não precisa de uma nova lei: precisa que o Poder Público (no caso concreto, o Ministério das Comunicações) exerça suas atribuições com agilidade, sob o império da lei.

Se for verdade que as operadoras de telecomunicações querem ‘impor novas restrições às emissoras de TV’ e evitar uma nova lei que ‘terminaria impondo restrições às suas redes cada vez mais convergentes’, como afirma o prof. Gindre, então, de novo, não estamos diante de problema que se resolva com lei nova.

É preciso cumprir as leis ‘velhas’, é preciso que se garanta o enforcement do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117/62), da Lei da Concorrência (8.884/94), da Lei do Cabo (8.977/95), da Lei Geral de Telecomunicações (9.472/95) e, é evidente, da própria Constituição Federal, seja nos deveres dos radiodifusores, seja na proibição de monopólios. E, para esse fim, é preciso dotar o Ministério das Comunicações, o Cade e a Anatel de meios (pessoal e infra-estrutura) para que possam exigir o cumprimento de tais leis.

Mas, volto à experiência estrangeira: por que não seguir o exemplo europeu ou americano? Proponho duas vertentes de respostas.

Promessa não materializada

Primeiro, porque o brasileiro é pobre. No país do fome zero não faz sentido aplicar modelos válidos para países cujo PIB per capita é muitas vezes maior que o brasileiro. Enfatizo: telecomunicação custa e custa caro. Seja o terminal (um computador), sejam os conversores (set top boxes), seja o consumo mensal (assinatura, pay per view etc.), de modo que modelos europeus ou americanos não funcionariam aqui. Aliás, em matéria de TV digital, não funcionam nem lá: a baixíssima penetração da TV digital americana e européia é razão de constrangimento e preocupação das autoridades respectivas.

Segundo, porque tanto americanos quanto europeus têm errado muito, em suas opções regulatórias, na última década. A ‘reconstrução’ do monopólio da AT&T (cujo combate era meta do Telecommunications Act de 1996) ou o fiasco da TV digital, nos EUA, e o fracasso do UMTS (telefonia de terceira geração) na Europa, mostram (junto com tantos outros exemplos) que a competência destes ‘paradigmas de regulação’ não é garantida. Ao contrário: os erros estrangeiros mostram que a tentativa-e-erro, no exercício da regulação pelo Poder Público, produz atrasos graves para o país e custa caríssimo, em termos de recursos públicos e privados.

Mas há uma terceira razão para não importarmos o modelo: a convergência das mídias é uma promessa que não se materializou. Para a convergência ser um fato, seriam necessários (i) tecnologia eficiente, (ii) a custos acessíveis, (iii) com um modelo de negócios que interesse aos operadores públicos ou privados. É verdade que a tecnologia eficiente existe, mas não a custos comercialmente viáveis. Nenhum de nós vê TV no celular; nenhum de nós fala ao telefone pela TV a cabo, nenhum de nós interage com as emissoras de TV abertas. Bem por isso, se o Congresso aprovar uma lei da convergência nas comunicações, mas o mercado não viabilizar equipamentos e modelo de negócio viáveis, a lei só poderá produzir confusão e atraso.

Enforcement: é disso que o Brasil precisa.

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Advogado da Vieira Ceneviva Advogados Associados