Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O burro vai na frente

Naquela infância feliz pré-escolar que não existe mais, me lembro de voltar para casa no final da tarde, correndo animado para contar à minha mãe o sucesso do meu time no jogo de bola no Esmaga-Sapo (terreno alagado onde as crianças brincavam e os adultos não podiam entrar para repreender).

‘Mãe, eu e o Carlos fizemos três gols…’, mas ela me interrompia lá da cozinha gritando, no seu espanhol andaluz:

El burro adelánte, pa que no se epánte!‘, quer dizer: ‘O burro vai na frente para não se espantar’. E eu corrigia imediatamente:

‘O Carlos e eu fizemos… etc.’ Carlos era meu primo.

Ela não permitia nenhum tipo de ostentação. Considerava exibição de mau gosto arrogar-se uma posição de destaque em qualquer coisa. Dava toda a sua aprovação e elogiava sempre a modéstia e a simplicidade. El burro adelánte era uma advertência preventiva da presunção e da soberba, parte da sua preciosa filosofia prática, que não caberia num texto escasso como este.

Hoje, os valores estão mudados. A competição é mais importante que a cooperação. Mandar, chegar primeiro, prevalecer, aparecer e ocupar todo o espaço são condições e atitudes perseguidas e disputadas a qualquer custo.

Principalmente na mídia e especialmente na televisão.

Toda a informação é ‘exclusiva’

Nos anúncios comerciais, os produtos divulgados são alardeados ‘os melhores’ da sua categoria. Sempre os acompanham os imperativos mais violentos: ‘compre agora’, ‘é só hoje’, ‘ganhe…’, ‘pague…’, ‘faça…’ ‘tá esperando o quê?’, alguns ainda mais incômodos e até ofensivos. Os locutores falam muito rápido, atropelando as palavras, gritando! Tudo muito alto. O canal aumenta o volume nesses intervalos, parece que somos todos surdos.

Alguns anúncios são longos demais e tão repetitivos que um dia destes, ao aparecer (outra vez!) aquela guria oferecendo insistentemente, com longos prazos e grandes descontos, e com muita urgência, uma pequena filmadora, um menino de quatro anos olhou para mim e perguntou:

‘Tio, ela ainda não conseguiu vender essa maquininha?’

Eles sabem que são uns chatos insuportáveis. Até confessam isso, quando encerram o ‘bloco’ implorando: ‘Não saia daí’… ‘Voltamos em trinta segundos’ (dos grandes). E dão 39 anúncios! Até nisso eles pretendem sempre superar os demais: ‘Temos os comerciais mais rápidos da televisão’… E se vão transmitir um pronunciamento importante, nunca dizem: ‘Sua Excelência disse que…’. Eles preferem: ‘Sua Excelência me disse que…’ Eles são Os Tais.

Na suposição de poder prender o espectador pela curiosidade, não hesitam em repetir: ‘daqui a pouco’, toda vez que adiantam o assunto do ‘próximo segmento’. Esse pouco às vezes leva de quarenta minutos a uma hora, quando não se estica ainda mais. É irritante!

Na televisão, todas as informações são sempre apresentadas ‘com exclusividade’. Se você mudar o canal, vai ver que o outro tem a mesma notícia ‘exclusiva’. Eles não se envergonham de afirmar tanta falsidade, desde que o telespectador se submeta. Utilizam o ritmo da bateria bem agressivo, em volume perturbador, e a música eletrônica compulsiva criada exatamente para tirar o poder de decisão do ouvinte. É incrível a penetração subliminar dessas práticas, ao pretender transformar todas as populações em mercados. É diabólico!

Um ‘jejum de televisão’

Ainda bem que os mais impacientes inventaram o controle remoto, especialmente aqueles com o pip e o mute, os nossos salvadores.

Valores antigos precisam ser resgatados hoje em dia, se queremos ter dignidade: A palavra empenhada, a honestidade, a responsabilidade (a do fio de bigode), o respeito, a confiança, a amizade, a família, a verdade. A vergonha na cara, afinal!

Enquanto isso não se consegue, é recomendável que façamos todos os dias, por três ou quatro horas pelo menos, e dois dias inteiros por semana, um ‘jejum de televisão’ a fim de dar um pequeno descanso às nossas cabeças já perturbadas por tantos comandos dominadores que empurram nossos pensamentos para trás e para baixo, na quase certeza de assumir o controle de nossas intenções.

Ah! Que falta nos faz a Dona Gabriela para nos proteger com aquela advertência sábia e positiva, agora dirigida aos produtores da televisão:

El burro adelánte…

******

contador e administrador, aposentado,Valinhos, SP