Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O Estado de S. Paulo


GUNTER GRASS vs. IMPRENSA
Marcio Damasceno


Grass usa versos como terapia para se recuperar de escândalo


‘Ela parecia ter-se diluído nos últimos meses, a controvérsia em torno de
Günter Grass que pegou os alemães de surpresa em agosto. Depois do grande debate
sobre o passado do autor, que omitiu durante cinco décadas sua participação na
tropa de elite nazista Waffen-SS, quase ninguém mais falava nele, a polêmica
parecia dar sinais de cansaço. E seu livro de memórias, o motivo do escândalo,
se apagou das principais listas de best sellers. Mas agora o prêmio Nobel de
Literatura de 1999 contra-ataca, literalmente.


Ele lança, sete meses depois, sua resposta ao que classifica como uma
‘campanha massiva da imprensa’ da qual, alega, teria sido vítima na época do
escândalo. ‘Quiseram me deixar mudo como um morto’, repete sempre Grass, como um
mantra, nas suas entrevistas. ‘Mas não conseguiram’, costuma acrescentar. Dummer
August (tolo agosto, em tradução livre) é um livro de poesias, litografias e
desenhos. O texto é salpicado de termos amargos como vergonha, ferida, dor,
inimigos, desgosto, decepção.


Enquanto nas quase 500 páginas de Beim Hüten der Zwiebel (descascando a
cebola, tradução literal, a ser lançado no Brasil pela Record no segundo
semestre), Grass recordou a inocência do garoto que segue o nazismo sem fazer
questionamentos, nas 80 páginas de Dummer August, mostra-se um velho ranzinza
que retorna às trincheiras para abrir fogo contra a imprensa.


O título de sua nova obra é um trocadilho. É o nome pelo qual os alemães
chamam o mais ingênuo e atrapalhado personagem da tradição circense, o palhaço
dummer August (o tolo Augusto). Günter Grass se mostra, assim, como alguém
exposto ao ridículo, acusa a mídia de tê-lo feito de palhaço, de transformá-lo
num bobo da corte. O auto-retrato dele com cara de derrotado sob um chapéu
pontudo, ilustração para o poema que dá nome ao livro, é um dos desenhos mais
expressivos do livro. Mas outra possível tradução para o título é ‘agosto tolo’,
lembrando ter ocorrido no mês ‘maldito’ o escândalo que acompanhou o lançamento
de Beim H‰uten der Zwiebel.


Na autobiografia, Grass contou suas lembranças da infância em Danzig, as
vivências como soldado, o sofrimento da fome enquanto prisioneiro de guerra do
Exército americano e o período em Paris, quando transferia para o papel O
Tambor. A narrativa vai até o ano do lançamento desse que se tornou seu primeiro
e mais famoso romance. Mas a passagem em que revela ter formado os pelotões da
Waffen-SS foi, sem dúvida, o detalhe que causou todo o alvoroço e as altas
cifras envolvidas nas vendagens. A primeira edição desapareceu das estantes em
poucos dias, ao mesmo tempo em que o livro ia em tempo recorde para o cume das
listas dos mais vendidos.


Mas desta vez o barulho parece não ser tão grande. A recepção dos veículos do
país a Dummer August foi relativamente fria, e os jornais não deram à sua poesia
ressentida nem a metade do destaque obtido pelas confissões tardias do autor.
Lançado na Alemanha na penúltima semana de março, o livro não galgou a relação
dos mais vendidos – pelo menos por enquanto. As poesias de Dummer August são,
quase todas, curtas, contam impressões de seus passeios no campo, nos bosques da
região em que reside, descrevem seus exercícios na arte da culinária – uma de
suas paixões – e refletem sua relação com a morte.


Entretanto, o tema dominante é mesmo a relação do escritor com a imprensa
durante a discussão que invadiu a mídia alemã no segundo semestre do ano
passado. É um desabafo em versos, lamentos que costuram as folhas do início ao
fim, emoldurando aqui e ali, em garatujas, os desenhos saídos da pena de
Grass.


As críticas, o destaque dos cadernos culturais dos periódicos alemães, tudo
isso tem sido classificado pelo autor repetidamente como uma ‘encenação
mediática’, uma ‘tentativa de destruição’, que o ‘magoou profundamente’, a ponto
de, na época, ter chegado a pensar em deixar a Alemanha, como declarou
recentemente.


Günter Grass alega ser um injustiçado, se diz vítima de uma inquisição
moderna e usa de sarcasmo para ir contra seus ‘inimigos’, leia-se ‘imprensa’.
Seus críticos se perguntam se o Nobel, sempre tão hábil em lidar com a mídia,
não tinha idéia da onda de discussões que sua confissão tardia ia causar e por
que prefere morder como uma fera acuada em vez de reconhecer um erro. Em vez
disso, parte para o ataque, agora na forma de arte literária e gráfica. No
livro, chama seus críticos ora de ‘heróis’, ora de ‘imaculados com o dedo em
riste’, sempre lançando mão de jogos de palavras com criatividade limitada. Num
poema descreve sua luta contra eles como se participasse de uma briga de boxe,
em que o autor é nocauteado e sai do ringue carregado, sob vaias e comentários
maldosos dos adversários. ‘Acabado,/ ele está finalmente acabado,/concordam
/nossos comentadores literários.’


Principal alvo de Grass entre todos os veículos de mídia é o diário
Frankfurter Allgemeine Zeitung, para o qual o escritor deu a entrevista em que
falou pela primeira vez de seu passado na Waffen-SS. O jornal é citado em várias
folhas, em parte de forma camuflada, ou nem tanto. ‘Por isso eu já digo agora,
onde – em Frankfurt -/o infame e poderoso /Tira altos lucros e espirra fezes
secas em redemoinho’, diz um poema parodiado de quadras de autoria de nada mais
nada menos que Johann Wolfgang von Goethe, bardo maior da língua alemã.


O processo de criação para o livro teve, segundo ele, um valor terapêutico,
foi um fator importante para superar a situação do escândalo. ‘Poder escrever
poemas é maravilhoso. A poesia é um instrumento de auto-reconhecimento e
autodefesa, útil mesmo contra uma campanha (feita contra mim). Eu me sinto
melhor desde então. Se tivesse me calado, teria sido muito difícil para mim’,
observou Grass numa das entrevistas para promoção da obra durante a Feira do
Livro de Leipzig.


A mesma encenação mediática parece também trazer lucro ao escritor. Caso
contrário, ele não teria atendido a tantos eventos promocionais na semana
retrasada em Leipzig. A ponto de a Feira do Livro de Leipzig deste ano – segundo
maior encontro do mercado literário alemão, depois de Frankfurt – ter sido
definida por alguns jornais de ‘festival Grass’. Nela, o intelectual acionou
mais uma vez a metralhadora giratória contra a mídia, chegando a cometer um
deslize, lançando mão de um termo comum no vocabulário da ditadura do 3º Reich.
Na hora de xingar seus desafetos, referiu-se à imprensa alemã como entartet
(degenerada), palavra com que os nazistas rotulavam obras produzidas por
artistas judeus. Ele se viu forçado a recuar pouco depois. ‘Está bem, eu corrijo
a palavra’, voltou atrás numa entrevista posterior.


E a imprensa alemã não perdeu tempo para alfinetar o mestre, que completa 80
anos em outubro. ‘Günter Grass abre mão da rima, mas se os versos dele podem ser
chamados de poesia, é uma outra história. Muitas das linhas são apologéticas
demais, auto-confiantes demais, destinadas demais à afirmação de si próprio’,
acusa o crítico do diário Süddeutsche Zeitung, apelidando a coleção de estrofes
de ‘cartas do leitor em forma lírica’.’


***


Da confissão em agosto até o atual contra-ataque


‘HISTÓRICO: A revelação de Grass veio a público na entrevista publicada em 12
de agosto pelo jornal Frankfurt Allgemeine Zeitung (FAZ), quando do lançamento
da autobiografia Beim Hüten der Zwiebel. Ninguém havia se dado conta da ‘bomba’
contida nas suas recordações apesar de, semanas antes da entrevista, o livro ter
sido distribuído à imprensa. Grass admitia haver servido não como um soldado
qualquer na 2.ª Guerra. Ele fora, por meses, membro da tropa da elite nazista
Waffen-SS, responsável por crimes de guerra, entre eles massacres de povoados
inteiros e fuzilamentos sistemáticos de mulheres e crianças.


A impressão na Alemanha era que acabava de cair o mito Günter Grass, um dos
mais barulhentos e severos defensores dos valores éticos, sempre pronto a
condenar os mínimos desvios de conduta de políticos e intelectuais do país.
Muitos se perguntavam o porquê de o escritor ter omitido por tanto tempo fato
tão importante do currículo, mesmo que a passagem pela Waffen-SS tenha sido,
como alegou, involuntária e não tenha disparado um tiro sequer no campo de
batalha. ‘Foi a vergonha de ter estado na Waffen-SS. O motivo de (meu silêncio)
ter durado tanto tem a ver com o fato de não saber de que forma deveria escrever
sobre isso. E não dava para ser através de simples declaração, devia ter forma
literária. Eu tinha que alcançar uma idade definida para achar essa forma, que é
escrever um texto autobiográfico’, justificou, na Feira do Livro de Leipzig.


Essa a explicação dele desde agosto. Agora, tem atacado a imprensa, em
especial o FAZ. Em janeiro, ganhou na Justiça ação contra o jornal, proibindo a
publicação de duas cartas suas ao ex-ministro da Economia alemã Karl Schiller,
dos anos 60. Nelas, Grass apelava ao amigo para que revelasse à opinião pública
seu envolvimento com o partido nazista. Ele mesmo só teria coragem de fazê-lo
mais de quatro décadas depois.’


***


Poemas


Dummer August


Wie während Kinderjahren der Clown


Im Zirkus Sarrasani,


so gleichen Namens der Monat.


Faxen machen,


Grimassen schneiden,


wie einst mit vierzehn.


Schon komme ich mir komisch vor,


gestellt vors Schnellgericht


der Gerechten.


Und auch der spitze Hut, gedreht


Aus der Zeitung von gestern,


kleidet, weil allzeit gültig.


Tolo Agosto


Como o palhaço


nos tempos de criança


Lá no circo Sarrasani,


Com mesmo nome do mês.


Fazia palhaçadas,


Fazia caretas,


Como quando tinha catorze.


Me sinto estranho,


Levado a julgamento sumário


Dos justos.


E também o chapéu pontudo dobrado com jornal de ontem,


Cai bem, pois vale


em qualquer época.


Fragen


Was tun?


Mit der Zeitung – doch mit welcher?


das Gesicht schützen?


Oder den Leser bitten,


das Buch aufzuschlagen,


damit er mich finde,


verloren in einer Zeit,


die nicht enden will?


Jetzt über ich Schritte


Auf abschlüssigen Wegen,


weiß nicht die Richtung.


Fragend blickt mich


der Hund an.


Perguntas


O que fazer?


Com jornal – mas com qual? -,


proteger o rosto?


Ou pedir ao leitor,


para abrir o livro,


Para que ele me encontre,


perdido num tempo


que não quer terminar?


Agora dou passos


Por caminhos escarpados,


não sei por onde ir.


O cão me olha inquisidor.


Tradução de Márcio Damasceno’


INTERNET
Cleide Silva


Blog e e-mail aproximam presidente de funcionário


‘Executivos de montadoras estão criando canais próprios para se comunicar com
os funcionários. Há duas semanas, o presidente da General Motors, Ray Young,
inaugurou o Blog do Ray, no site interno da companhia, e recebeu, no primeiro
dia, 2.341 visitas e 52 comentários. O presidente da Fiat fala com os
funcionários por intranet. As mensagens recebidas pelo e-mail são respondidas
nos fins de semana, quando tem mais tempo para a leitura.


No cargo há três meses, o presidente da Volkswagen, Thomas Schmall, prefere
convidar grupos de cinco a seis funcionários a cada duas semanas para o almoço.
Já o presidente da Ford, Marcos Oliveira, envia mensagens padronizadas via
e-mail, mas as reações dos trabalhadores passam por triagem antes de voltar para
ele.


Young decidiu criar seu blog um dia após retornar da China, terra de seus
pais. Ele quis dividir com os trabalhadores o susto que levou ao constatar que
os carros chineses estão mais bonitos e com melhor qualidade. ‘Havia a idéia de
que os produtos da China eram ruins, mas isso já não é mais correto’, diz.


Na primeira mensagem no blog, Young afirma que ‘as montadoras asiáticas são
uma real ameaça à GM do Brasil’ e que ‘é preciso desenvolver uma resposta
competitiva rapidamente’. Ele tem atualizado o blog com certa freqüência. Já
foram nove mensagens e cada uma recebeu em média 20 comentários, vários com
sugestões para enfrentar os chineses.


Schmall, um alemão que domina o idioma português, introduziu, desde sua
chegada ao País, em janeiro, o ‘almoço com o presidente’. A cada 15 dias,
escolhe aleatoriamente um grupo de funcionários e os convida para um almoço na
fábrica.


‘Comecei com os mensalistas e logo chegará a vez dos horistas’, diz Schmall,
que afirma ter interesse especial pelos comentários sobre o que não está bom na
fábrica. ‘Não quero saber do que vai bem, mas do que está ruim e pode
melhorar.’


Cledorvino Belini, da Fiat, coloca um comunicado na intranet da companhia em
média uma vez ao mês. Os funcionários podem responder ao e-mail diretamente e
ele garante que lê e responde todos nos finais de semana, em casa. ‘São
comentários sobre os novos carros, participação no mercado, fatos relevantes’,
informa um porta-voz da montadora.


Na Ford, o presidente, Marcos de Oliveira, que passou os últimos anos nos EUA
e assumiu a filial brasileira em dezembro, envia mensalmente um e-mail aos
funcionários e coloca uma cópia no mural para os que não têm acesso à internet.
As respostas no correio eletrônico são lidas antes por um funcionário, que
seleciona algumas delas para serem repassadas ao chefe.’


Nicola Pamplona


Sr. Orkut desembarca no País do Orkut


‘O criador do Orkut está no país do Orkut. Os brasileiros são o maior grupo
de usuários do site de relacionamento criado pelo engenheiro de software Orkut
Buyukkokten. Ele passou pelo Rio nos últimos dias, entre compromissos
profissionais e passeios turísticos, e agora chega a São Paulo para visitar o
escritório central brasileiro do Google e cumprir uma agenda de eventos. Em sua
primeira viagem ao País, Buyukkokten visita ainda Belo Horizonte, onde a empresa
tem um centro de tecnologia.


Em palestra proferida na sexta-feira no Hotel Sofitel, em Copacabana, o
executivo, que hoje é gerente de produto da Google, disse que veio ao Brasil se
encontrar com estudantes e conhecer universidades, além de visitar as
instalações da companhia no País. A idéia é garimpar talentos para a gigante
mundial de tecnologia, conhecida pela ousadia na gestão de seus negócios. Foi a
empresa de mídia com maior crescimento nos últimos anos e, hoje, tem valor de
mercado cerca de US$ 120 bilhões.


‘O Google veio conhecer vocês’, disse Buyukkokten à platéia que o esperava no
hotel. Antes, ele havia feito apresentações para alunos do Departamento de
Informática da PUC-Rio e na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Na
comunidade criada no Orkut em homenagem à sua estada no Brasil, estudantes que
participaram dos eventos derreteram-se em elogios à ‘simpatia’ e ‘simplicidade’
do executivo. Houve também algumas brincadeiras com seu gosto por camisas de
cores fortes e estampas chamativas, com as quais foi visto pela cidade.


Nas horas vagas, Buyukkokten visitou tradicionais cartões postais do Rio,
como o Pão de Açúcar, o Corcovado e uma das preferências dos turistas
estrangeiros: uma churrascaria rodízio. O criador do Orkut é membro de
comunidades sobre discotecas de San Francisco, nos Estados Unidos, mas não há
notícias de que tenha aproveitado a badalada vida noturna carioca. Algumas fotos
da viagem, em pontos turísticos ou em meio a palestras, foram colocadas em sua
página do site de relacionamentos.


Embora Buyukkokten tenha se mantido afastado da imprensa, sua passagem pelo
Rio foi bem menos discreta do que a de seu patrões, Larry Page e Sergey Brin, no
início do ano passado. Os ‘Google Boys’, assim conhecidos por terem criado a
ferramenta de pesquisas mais acessada do planeta, já haviam conhecido uma usina
de cana-de-açúcar no interior de São Paulo e só foram notados na cidade após
terem os cartões de crédito recusados em um restaurante badalado do Leblon, na
zona sul.


Já Orkut Buyukkokten, nascido na Turquia e criado na Alemanha, tem um séquito
de fãs no País, a julgar pelo que se vê em suas páginas no site de
relacionamentos. Hoje, os brasileiros representam mais da metade dos usuários do
Orkut, o que levou a empresa a lançar, em 2005, uma versão em português. Por
outro lado, o grande número de páginas com apologia à violência, racismo e
tráfico de drogas tornou o site alvo de ações do Ministério Público Federal.
Buyukkokten disse ao site G1 que o Orkut reflete a sociedade e, por isso, tem
aspectos positivos e negativos.’


TELECOMUNICAÇÕES
Ethevaldo Siqueira


Os fatos desmentem o ministro Hélio Costa


‘‘A Telebrás foi vendida a preço de banana’ – proclamou o ministro das
Comunicações, Hélio Costa, ao falar na quarta-feira na Comissão de Ciência,
Tecnologia e Comunicações da Câmara. Não dá para silenciar diante de uma
declaração dessas. O que o ministro chama de ‘preço de banana’ deve equivaler ao
da produção de banana de toda a América Latina durante um século, pois foi de R$
22,2 bilhões ou US$ 19 bilhões da época, com ágio superior a 63% sobre o preço
mínimo.


Na verdade, a Telebrás foi vendida pelo preço mais elevado entre todas as
grandes operadoras do setor privatizadas no mundo na década dos 1990, segundo
avaliou na época a revista inglesa Privatisation, de Londres.


Ao longo da semana que passou, o ministro criticou duramente a qualidade das
televisões estatais de três países e, em seguida, respondeu a um diplomata
estrangeiro, que dele discordou. Depois, participou de tumultuada audiência na
Câmara, em que fez a revelação de impacto sobre a venda da Telebrás por preço
vil.


Façamos um brevíssimo retrospecto dos fatos relativos ao leilão da estatal
das telecomunicações em julho de 1998. As ações da Telebrás estavam pulverizadas
nas mãos do público e somente um terço delas (33,3% do capital) eram ações
ordinárias, com direito a voto. Como o governo detinha pouco mais da metade
daqueles 33,3%, era essa a fatia que estava à venda no leilão de privatização.
Embora representasse apenas 19% do capital total da Telebrás, esse bloco de
ações ordinárias significava o controle da Telebrás.


Poucas semanas após a privatização da Telebrás, viria a crise da Rússia, que
afastou a maioria dos grandes investidores de leilões de privatização no mundo.
E, para agravar ainda mais esse quadro, assistimos, menos de dois anos depois,
ao rompimento da bolha da internet e das telecomunicações, com a desvalorização
dramática de todos os ativos dessas duas áreas. Exemplo dessa desvalorização
ocorreu quando a Embratel foi vendida pela MCI à Telmex, por um terço do preço
pago na privatização.


EMBRATEL


Ao mencionar de passagem a Embratel, Hélio Costa afirmou na audiência da
Câmara que ‘ninguém previu que em uma emergência (para formar uma rede de TV,
por exemplo) será necessário pedir autorização aos mexicanos’.


Talvez seja mera força de expressão essa acusação do ministro da eventual
necessidade de ‘pedir autorização aos mexicanos’, pois qualquer pessoa ou
empresa pode contratar serviços de transmissão de telecomunicações no Brasil, em
contato direto com a Embratel. Mais do que isso: pode buscar as operadoras dos
40 satélites internacionais autorizados a prestar serviços sobre o território
brasileiro. Ou ainda usar a alternativa de uma dúzia de troncos de microondas
terrestres de longa distância operados por outras concessionárias nacionais.


O ministro também não reconhece os reais benefícios que a privatização trouxe
para o desenvolvimento e modernização das telecomunicações no Brasil. No
entanto, são números que não admitem contestação, pois, além dos R$ 22,2 bilhões
pagos ao governo pelo controle da Telebrás, os novos grupos privados investiram
nos últimos nove anos R$ 135 bilhões – algo como US$ 66 bilhões – na
infra-estrutura de telefonia fixa e celular, redes sem fio, satélites, banda
larga e longa distância nacional e internacional – ampliando o número de acessos
telefônicos de 24 milhões para os 145 milhões atuais. Uma expansão de 500%.


DISPARIDADE


Conforme declarou na audiência na Câmara, Hélio Costa se preocupa com a
desproporção entre o faturamento total das empresas de telecomunicações e as de
radiodifusão, da ordem de 10 para 1. Essa disparidade, no entanto, é a mesma na
Europa, nos Estados Unidos e no Japão.


O ministro critica também o faturamento anual de R$ 100 bilhões das teles,
gerado pela operação de 145 milhões de telefones hoje no Brasil. É bom lembrar
que dessa receita total, R$ 40 bilhões são impostos, que saem diretamente de
nosso bolso e vão para os governos estaduais e para o Tesouro Nacional. Melhor
seria se ele buscasse nos defender desse assalto tributário, em que o Brasil é o
campeão mundial, ao cobrar tantos impostos nesse montante de 40% sobre o valor
de nossas contas telefônicas.


Uma lembrança oportuna seria ainda a do cenário em que vivíamos nos últimos
dias da Telebrás, em 1998, quando a densidade de telefones fixos e celulares do
País era de apenas 14 acessos por 100 habitantes, em lugar dos atuais 76%. Ou
dos planos de expansão que, até 1997, nos cobravam R$ 1.117 por uma linha
telefônica e ainda nos obrigavam a esperar dois anos ou mais pela instalação do
aparelho. Ou pagar até 5 vezes mais no mercado paralelo. Hoje, uma linha
telefônica pode ser instalada até de graça, no prazo máximo de uma semana, em
todo o País.


E-mail: esiqueira@telequest.com.br


ARGENTINA / ECOS DA DITADURA
Antonio Gonçalves Filho


Passado que condena


‘Afirmar que o testemunho de uma vítima da ditadura militar argentina não é
capaz de oferecer uma nova perspectiva sobre o passado pode parecer escandaloso,
mas não quando quem afirma é a crítica literária argentina Beatriz Sarlo,
argumentando que a história de seu país precisa ser revista com base em outras
fontes. A ensaísta, que vem a São Paulo em maio para um debate no Instituto
Cervantes, é considerada por muitos como a mais séria candidata ao posto deixado
por Susan Sontag. Como a falecida crítica americana, Beatriz Sarlo, aos 64 anos,
tem estudos sobre as mais diversas áreas do conhecimento e ainda encontra tempo
para editar a revista Punto de Vista. De Buenos Aires, Beatriz Sarlo falou com a
reportagem do Estado sobre seu livro Tempo Passado, que a Companhia das Letras
publica em co-edição com a Universidade Federal de Minas Gerais. A seguir, sua
entrevista.


Você sustenta em Tempo Passado que o testemunho não é infalível, em
particular numa sociedade pouco propensa à autocrítica, mas foram os depoimentos
de militantes e familiares de desaparecidos peças fundamentais na transição
democrática de países como a Argentina e o Brasil. Como mudar a forma de
reconstrução do passado sem o testemunho de seus protagonistas?


A história se constrói com documentos. No caso de terrorismo de Estado ou de
outras matanças, muitas vezes os responsáveis destroem todas as provas. Essa é
uma preocupação presente desde a 2ª Guerra Mundial, quando os nazistas, ao
abandonar os campos de concentração, destruíram as provas do que se passava lá
dentro. Portanto, quando elas são destruídas, a única alternativa é o testemunho
das vítimas, tanto para a reconstrução da história como para um possível
processo judicial contra os criminosos. No caso argentino, foi possível
reconstruir a disposição dos campos de concentração, como o de Córdoba, graças
ao depoimento de alguns sobreviventes ali torturados. A pergunta que me faço é o
que acontece quando o testemunho se contrapõe a outros documentos.


Ao privilegiar a memória, o mundo globalizado parece assegurar uma ordem
dentro de sua fragmentação. A fixação por museus na sociedade pós-moderna não
seria uma tentativa de transformar a memória em espetáculo?


Poderia dizer, como se diz na Europa, que vivemos num estado de memória, não
apenas pelo auge dos museus como pela reconstrução de paisagens e aldeias
supostamente originais. Ou seja, prevalece a idéia da teatralização da memória.
No caso americano, formas materiais do passado são reconstruídas em parques
temáticos como Williamsburg, em que empregados simulam ser cidadãos do século
18, ao vestir figurinos de época e trocar saudações como habitantes de uma
cidadela colonial americana. Assim funciona o mercado e a reconstrução de certos
conteúdos do passado, banalizados por ele.


Tempo Passado, Beatriz Sarlo, Companhia das Letras, 130 págs., R$
33,50′


***


O terror e a memória num beco sem saída


‘Compreender é melhor que recordar, defende a crítica Beatriz Sarlo,
desconfiada que os literatos ameaçam tomar o lugar de historiadores ao
desempenhar melhor um papel reservado aos últimos. A memória, diz ela, não
depende só da primeira pessoa, mas da informação jornalística, dos documentos e
livros que mobilizam jovens e velhos a refletir sobre o passado de um país. A
idéia de examinar os limites e fragilidades dos testemunhos pessoais levou a
ensaísta a Berlim em 2003, disposta a escrever uma biografia intelectual dos
anos 1960 e 1970, no Wissenschaftskolleg, instituto de estudos avançados que
abriga estudiosos do mundo todo. Beatriz desistiu do projeto depois de ler
muitas biografias e autobiografias, convencida de que a tentativa de
reconstrução do passado pode ser também auto-engano.


Chama a atenção em Tempo Passado o destaque que você concede à literatura
como instrumento de reconstrução do passado. Para além dos testemunhos
políticos, a ficção seria capaz de traduzir melhor a experiência do sofrimento?
Você menciona, por exemplo, Glosa, de Saer, e Austerlitz, de Sebald, como dois
exemplos notáveis que levam as pessoas a refletir sobre o passado. Por que a
literatura parece mais habilitada a buscar a verdade do passado traumático?


A questão que a literatura encara é algo que o testemunho não pode encarar. A
literatura encara uma densidade que é ao mesmo tempo semântica e formal. Ela
opera numa dimensão específica. O depoimento, salvo no caso de pessoas
extremamente articuladas, tende a ser repetitivo e muitas vezes banal, ainda que
relatem fatos terríveis. A literatura que fez uso de alguns desses depoimentos
sobre o passado mais recente da Argentina não é ‘grande literatura’, o que
explica a referência elogiosa a Juan José Saer no livro (nele, ela diz que a
literatura de Saer transmite o que de mais preciso já leu sobre a solidão social
do militante). Mas poderia citar outro grande autor que creio ter sido traduzido
no Brasil, Martin Kohan, de Duas Vezes Junho (publicado em 2005 pela editora
Amauta). Nele, a intensidade de uma situação como a tortura passa pelo
imaginário, mas é mais persuasiva. Interpela bases morais e subjetivas, de modo
que é mais forte que um depoimento. Isso não significa que o testemunho deva se
tornar literário. O testemunho é o que é. Merece ser tratado com o respeito que
desperta o sofrimento de qualquer ser humano.


Tempo Passado é um livro polêmico e você mesma já declarou que faz uma
crítica muito forte da primeira pessoa num país em que o testemunho foi o que
permitiu a condenação dos terroristas de Estado. Para você, o depoimento na
primeira pessoa sempre provoca desconfiança?


No livro, digo explicitamente que, no âmbito judicial, a narração dos fatos
que aconteceram na Argentina só foi recebida com desconfiança pelos criminosos e
seus representantes, que atacaram o valor probatório dos depoimentos. Nesses
casos, os testemunhos foram nosso último recurso. Mas, no caso da reconstrução
de todo o período passado, que começa com a violência revolucionária dos anos
1960, o testemunho não é a única fonte. Talvez seja mesmo a menos interessante.
Esse foi um período tenso, configurado por idéias que estão registradas em
documentos, nos grandes livros produzidos nesse momento. Tudo isso está
documentado de uma maneira mais densa que num depoimento de uma pessoa de 65 ou
70 anos, porque nem sempre o que testemunha sobre o passado é necessariamente
aquele que o conheceu melhor. Os protagonistas do passado nem sempre são os que
falam, pois muitas vezes estão mortos ou preferem não falar. Portanto, digo,
para reconstruir os anos 1960 e 1970, temos de recorrer a documentos escritos,
às polêmicas registradas em jornais revolucionários e aos panfletos distribuídos
em portas de fábricas e universidades. É lícito contar tudo e não apenas o que
aconteceu após o advento do terrorismo do Estado na Argentina, em 1975.


Muitos familiares de desaparecidos políticos argentinos resistiram a
reconhecer que eles eram militantes da luta armada. Como é possível conciliar a
memória com uma imagem falsamente construída?


Creio que no caso argentino houve várias etapas. Durante a ditadura militar a
única coisa que podiam dizer as organizações de direitos humanos e as mães da
Plaza de Mayo era ‘devolvam com vida os desaparecidos’. Não havia razão para
reconhecer diante de uma ditadura que os desaparecidos haviam sido militantes.
Esse reconhecimento teria sido um ato suicida. Mas creio que, logo após o fim da
ditadura, ele deveria ter sido imediato, admitindo que muitos deles foram
militantes revolucionários, ainda que estivessem equivocados. As organizações
protelaram por quase uma década tal reconhecimento.


Você diria que, no caso da sociedade argentina, persiste um vazio crítico que
impede a revisão histórica?


É difícil falar da sociedade. A sociedade é um conjunto, não vive num estado
de memória. A memória se ativa com comemorações, sejam elas a do aniversário do
golpe de Estado ou a recuperação de um prédio militar que tenha sido um campo de
concentração. A sociedade como conjunto não vive num estado de atividade
memorialística. Pensar assim é ter uma visão idealizada da sociedade. Porém, há
grupos intelectuais para os quais a discussão do passado é fundamental. Creio
que nesses grupos não há uma crítica forte ao que significou a violência dos
anos 1960 e 1970, e não só a dos militares, mas aos modos de pensamento e ação
que todos tivemos na época de radicalização revolucionária.


Em relação aos meios de comunicação, como a TV, eles não parecem desempenhar
o papel que deveriam na recuperação do passado. Nossa época é tão trágica que
não podemos sequer reconhecer essa tragédia, reduzida a melodramas baratos de
TV?


É difícil que alguém possa caracterizar a própria época como trágica. Se é
possível definir o que foi chamado de pós-modernidade, diria ser uma espécie de
configuração do social em que a hegemonia é a do audiovisual. Para as grandes
massas, essa é a grande usina de produção ideológica.


As novas tecnologias nos levam a duvidar de depoimentos pessoais e o livro
fala disso ao tratar das ‘indústrias da memória’. Você acredita que elas possam
colaborar com o processo de democratização?


Num ponto estou segura. Não houve nenhum avanço tecnológico no campo cultural
que não tivesse influência decisiva sobre a ampliação do mundo dos usuários. A
implantação de novas tecnologias como a internet amplia o universo, mas estamos
na América Latina, onde só 2% da população tem acesso a esses meios. Não estamos
no Vale do Silício nem na Escandinávia. É injustificável esse otimismo utópico
sobre a internet, porque a situação dos povos latinos não melhorou por conta
dela.


O êxito dos historiadores massivos, como você argumenta no livro, revela que
as operações com a história entraram também no mercado simbólico do capitalismo
tardio. Como poderemos fazer uma revisão na história da América Latina dentro de
um quadro ideológico que parece não mudar nunca?


Bem, um das condições é que os acadêmicos se comportem como intelectuais, que
escrevam uma história que chegue à esfera pública, porque seus discursos ainda
circulam numa esfera extremamente reduzida. As culturas necessitam sentidos. Se
elas não os encontram, vão buscar essa história nos historiadores do
mercado.’



Samuel Titan Jr.


A ficção como base do novo contrato social


‘Nas últimas décadas, termos como memória e identidade tornaram-se
palavras-chave do vocabulário acadêmico e político. Ouve-se falar em resgate da
memória e afirmação da identidade nos mais diversos âmbitos da vida pública, na
voz dos mais variados protagonistas – e à exaustão. Não se trata de mero
modismo. Sobretudo no contexto brasileiro e hispano-americano, a voga coincidiu
com o processo de redemocratização e com a reconquista do espaço público tanto
pelas vítimas diretas da repressão militar como por novos atores e minorias –
étnicas, sexuais ou religiosas – que afirmam os ‘direitos da lembrança’, na
fórmula com que Beatriz Sarlo abre seu novo livro, Tempo Passado. Cultura da
memória e guinada subjetiva.


Não é a primeira vez que ela se ocupa do tema. Em A Paixão e a Exceção, de
2005, ela já se dedicara a desemaranhar a trama de memória pessoal e pública em
torno de um acontecimento que dividiu as águas na Argentina dos anos 70 – o
julgamento e o assassinato do general Aramburu às mãos da guerrilha montonera.
Não se tratava apenas de reconstituir as próprias lembranças, mas de examiná-las
à luz de outras ordens de testemunho e de reflexão, que iam do imaginário em
torno ao corpo seqüestrado de Eva Perón à obra narrativa de Jorge Luis
Borges.


O novo livro leva adiante a investigação. Avança em termos cronológicos e
aborda os anos 80, os trabalhos da comissão Nunca más, presidida pelo escritor
Ernesto Sábato, e a verdadeira erupção da memória por ocasião dos processos
contra os torturadores. Nesses teatros públicos e jurídicos da memória, a
memória individual, o testemunho de quem ‘sofreu na própria pele’ vem afirmar
seus direitos morais irretorquíveis e funciona como ponta-de-lança do movimento
de reconstituição do contrato social desfeito pela violência de Estado. Nesse
ímpeto, a memória individual, sobretudo a memória do trauma, reclama para si a
condição de instância última, de único lugar legítimo de recordação e
interpretação do passado.


Para dar conta dessa nova configuração, Sarlo vai além do livro anterior
também em termos teóricos e históricos, e talvez resida aí o interesse principal
deste livro tão breve e instigante. Primeiro, Sarlo amplia o horizonte histórico
e lembra que as guerras da memória na Argentina e na AL inscrevem-se na
seqüência de grandes choques que o século 20 impôs à experiência individual: as
duas guerras mundiais, o Gulag e o Holocausto. Depois, Sarlo recorda que essa
nova onda começou a emergir justamente quando as décadas anteriores pareciam ter
promovido, melancólica ou euforicamente, o enterro do sujeito, substituído por
‘linguagens’ e ‘estruturas’ que pareciam prescindir dele. Finalmente, Sarlo
observa que esse renascimento da memória em âmbito político se dá no exato
momento em que a coalizão indigesta de pós-modernidade e indústria cultural
fazia da ‘identidade’ e da ‘memória’ dois de seus veios principais, na forma de
parques temáticos, filmes históricos, enxurradas de autobiografias e
‘testemunhos’ de ‘não-ficção’, seja lá o que isso for.


Daí a pergunta central de Tempo Passado: como conciliar o lugar central do
sujeito na vida política – decisivo e desejável – e as suspeitas que pesam sobre
ele, como construção factícia ou, pior, mercadológica? A saída mais fácil
consistiria em simplesmente fechar os olhos e torcer para que a esfera política
e a esfera cultural não se contaminassem.


Ocorre que a ‘guinada subjetiva’ detectada por Sarlo vem aos poucos
colonizando a política em direções muitas vezes opostas ao do impulso libertário
inicial. Como se, após expulsar do discurso político e mesmo historiográfico os
grandes sujeitos (a Nação, a Revolução, o Estado), substituindo-os por uma
pluralidade de sujeitos irredutíveis, o indivíduo almejasse o mesmo direito à
letra maiúscula, como Indivíduo ou, melhor, como Indivíduos (Sarlo anota,
ironicamente, que hoje um plural bem posto opera milagres). Ora, tanto a mera
reiteração da memória como a obstinada afirmação da identidade esvaziam o campo
da política e do debate social. De fato, como argumentar em termos políticos,
num terreno social minimamente comum, com quem, no Golfo Pérsico ou no Bible
Belt americano, se aferra à afirmação de si mesmo? Como sair do xeque-mate que
os políticos parecem ter preparado para si mesmos?


A resposta não virá, certamente, da mídia ou dos grandes partidos políticos.
Sarlo também não tem solução mágica para sacar do bolso. Mas seu livro termina
com uma nota que dá o que pensar: e se a literatura se arriscasse a fundo no
terreno minado da memória e do trauma, não para revivê-lo ou resgatá-lo
infinitamente, e sim para entendê-lo? E se, para usar a frase de Arendt citada
por Sarlo, convidássemos a imaginação literária a nos visitar e propor os termos
de um novo contrato – ficcional e social? É o que esboça o elogio de Sarlo a
autores como o Saer de Glosa ou o Sebald de Austerlitz. O elogio, breve, ocupa
as páginas finais de seu livro, mas é bastante para que recordemos a ótima
crítica literária que Sarlo também é – e para que esperemos pelo próximo
livro.’


LADO B
Ubiratan Brasil


Sérgio Augusto, o homem que sabia (e ainda sabe) demais


‘Faz mais de cinco anos que Lado B (Record) chegou às livrarias e sua leitura
ainda continua obrigatória – ali, sob a brincadeira com o lado B do velho disco
de vinil, que muitas vezes trazia a melhor e mais cult faixa do disco, o
jornalista Sérgio Augusto, colaborador do Estado, reuniu as melhores crônicas
que até então publicara nas revistas Bravo! e Bundas. Nada de textos efêmeros:
por colaborar com a interpretação do espírito de uma época, trata-se de um
material que pertence a ‘uma longa e exemplar trajetória intelectual’.


A definição partiu de outro intelectual, Moacyr Scliar, que faz a
apresentação de As Penas do Ofício, nova seleção de textos, agora os publicados
apenas na Bravo!, recentemente lançada pela editora Agir. E, passados cinco
anos, a constatação é triste: se Sérgio Augusto continua conduzindo o leitor com
segurança pelo amplo universo da cultura – afinal, trata-se de um homem
renascentista em pleno século 21, capaz de escrever com erudição sobre artes
plásticas, cinema, literatura, música, teatro -, a decadência do jornalismo dito
cultural é ‘tão indiscutível e aparentemente irreversível quanto o aquecimento
global’, como disse ele com propriedade em uma entrevista ao newsletter
Digestivo Cultural.


Um dos principais motivos, aponta, é a deformidade educacional, que
impossibilita a flexibilização mental em larga escala. Aos leitores que buscam
uma ‘oxigenação cerebral’ restam, ao menos, os textos de Sérgio Augusto, como
comprovam os que lêem suas crônicas no Estado. Até pela multiplicidade do seu
conhecimento artístico, ele tem um pudor exagerado em se definir como crítico.
Daí seus textos não virem com o verniz tradicional dos intelectuais declarados,
preferindo apostar no ritmo hipnotizante das frases simples e bem
encadeadas.


Desincumbido do papel do crítico sisudo, Sérgio Augusto flutua acima do
festival de besteiras que assolam o País – note-se, por exemplo, o artigo que dá
título ao livro: ao detalhar o trabalho do escritor em diversas épocas, ele se
ocupa de detalhes importantes mas normalmente despercebidos, como o papel
utilizado, a pena, a tinta, a caneta, os hábitos, as esquisitices diversas.


Já em O Buster Keaton das Alagoas, Sérgio Augusto parte do genial cômico dos
filmes mudos, famoso por não sorrir, para fazer uma feliz alusão a Graciliano
Ramos, outro mestre que não gostava de exibir os dentes. ‘Só lhe conheço uma
foto em que aparece rindo, uma raridade, de resto, guardada no museu com que lhe
honraram a memória em Quebrangulo, sua cidade natal’, observa.


O cinema, aliás, permite ainda uma surpreendente constatação: a de que o
autor de Vidas Secas adorava assistir a filmes estrangeiros, desprezando os
nacionais, fato curioso por ter sido Graciliano um dos grandes defensores das
artes brasileiras, sofrendo de uma teimosa xenofobia.


Com a mesma verve e ironia que esbanjava quando era um dos editores do
semanário Pasquim, Sérgio Augusto sabe lidar com o passado sem cair em
saudosismo. Ao traçar o perfil de Millôr Fernandes em Livre como um Táxi, ele
consegue a proeza de apresentar a face circunspecta de um dos maiores humoristas
da imprensa brasileira sem perder a graça. ‘Lições para toda a vida’, constata,
certeiro.


E há, claro, a paixão pelo cinema, que parece dividir com a música popular
brasileira (especialmente as canções de carnaval) sua preferência. Da
importância do documentário à divertida brincadeira sobre quais filmes deveriam
ter sido rodados, Sérgio Augusto não insulta a inteligência do cinéfilo nem
empina o nariz para o neófito. Como marca de seu trabalho, ele busca, mais que a
compreensão, a cumplicidade.


As Penas do Ofício, Sérgio Augusto, Agir, 310 págs., R$ 35′


TELEVISÃO
Renato Janine Ribeiro


Injustiça nacional com as domésticas


‘As novelas se caracterizam – talvez não todas, mas pelo menos as das nove
horas da noite – por defenderem alguns valores éticos, uns dos quais são
incontroversos mas estão sendo pouco aplicados na prática, outros que despertam
polêmica. Com o passar do tempo, mesmo os valores polêmicos acabam sendo
incorporados pela sociedade. A lista não é pequena. O grande valor que a
teledramaturgia inclui na agenda nacional foi o da igualdade entre os sexos. Não
diminui em nada o mérito das militantes feministas dizer que foi a televisão que
deu ressonância a causas que, sem ela, teriam tido maior dificuldade em passar.
É difícil datar o começo da luta pela igualdade das mulheres nas novelas, mas o
tema já aparecia em Gabriela e em Dancing Days, na década de 1970, e foi
consistente na seqüência.


Outros valores surgiram. A defesa dos negros foi mais difícil, porque,
afinal, o preconceito contra eles não é apenas uma questão ‘de cabeça’, é também
fortemente social; não é só racial, mas se ancora na distinção entre pobres e
ricos. Mas é cada vez mais presente, na novela, o negro. A dos homossexuais
homens passou com facilidade maior que a das lésbicas, mas cada vez mais temos
personagens de ambas as orientações em papéis dignos e respeitados. Uma
preconceituosa contra os negros foi para a cadeia em Belíssima. Um casal de
homens vivia junto e pensava em adotar um filho, em Páginas da Vida. Manuel
Carlos, aliás, soma a essa luta contra os preconceitos usuais a preocupação com
o que diz respeito à saúde. Sua grande causa, em Páginas, foi a da aceitação dos
portadores de síndrome de Down. O Brasil não será o mesmo antes e depois dessa
novela. Pode-se fazer maior elogio do que esse a um noveleiro? As centenas ou
milhares, talvez dezenas de milhares, de Downs que após Páginas se viram mais
bem tratados no País devem isso, antes de mais nada, a essa novela. Este ponto é
tão significativo que, se mudarmos da Globo e passarmos a uma novela importada,
não veremos essas causas nobres, que têm sido uma constante entre 21 e 22
horas.


Ninguém poderá dizer, então, que tenho preconceitos contra as novelas das
nove ou que lhes nego uma dignidade moral, que por sinal elas não precisavam
ter. Poderiam ser mero entretenimento. Poderiam, talvez, confinar-se na
choradeira enorme que eram nos anos 60: filhos rejeitados, preconceitos de
classe, figuras más e caricatas. Nelas havia, sim, um sentido de justiça – basta
lembrar que uma se chamava O Direito de Nascer – mas este era elementar e
simplista. A preocupação ética nas novelas foi algo que o mercado não impôs, que
não fazia parte da essência do gênero, que parece ter vindo das convicções
pessoais de seus autores e que foi assumido sem ressalvas pela empresa líder de
audiência. Os elogios estão feitos.


Por isso mesmo me incomoda a condição das empregadas domésticas nas novelas.
Elas são indispensáveis ao gênero, vamos dizendo logo. Não há novela sem
contraste de condições sociais – e sem ascensão social, antes de mais nada pelo
amor. Uma novela de mundos estanques, isto é, em que ricos, classe média e
pobres convivem só no interior de seu grupo, teria dramaticidade fraquíssima. O
que o povo quer é amor, sofrimento e mobilidade social. A ascensão pelo trabalho
é mais difícil e menos dramática. Já a mudança de classe pelo amor, além de ser
aparentemente mais fácil, traz consigo a vantagem de pôr em cena a luta entre o
sentimento amoroso e o preconceito social dos familiares, a oposição entre a
mocinha boa e pobre e a prometida má e rica, entre o rapaz rico e apaixonado e
sua família também rica mas mais calculista. A paixão amorosa é um dos grandes
atrativos da teledramaturgia e um dos grandes valores da juventude, que de certa
forma dita os valores de nossa sociedade. Quando é somada a uma visão da
sociedade, em especial de uma sociedade hierarquizada e injusta como a nossa,
ela surge como se o que temos de melhor em nós – o amor pelo outro – se batesse
contra o que há de pior na estrutura social. Além disso, a doméstica – ou o
doméstico, como o jardineiro, o motorista, o caseiro – introduzem um convívio
imediato, em que as pessoas são como são, em que se despem da capa que vestem no
trabalho ou na rua.


Contudo, a condição dos domésticos é a única que, até hoje, não vi contestada
nas novelas. Em Belíssima, cada vez que a empregada da família greco-turca,
Regina da Glória, opinava, ouvia um dos patrões, do casal mais velho até o filho
mais novo, mandá-la para a cozinha. Esse, aliás, era um dos bordões mais
engraçados da novela: ‘Para a cocina, Recina da Glória!’ Havia um tom de piada e
de diversão num ato de preconceito que, em sua essência, não era muito diferente
do intolerável modo como a preconceituosa dona do açougue tratava a namorada
negra do filho. Em Páginas da Vida, a situação se tornou mais séria porque
adquiriu conotações quase trágicas. Sandra, a personagem vivida por Daniele
Winits, é desde o começo apresentada como má e interesseira, contrastando com a
mãe discreta e dedicada e, a partir de um certo momento, com a irmã humilde e
premiada, Telma (Grazi Massafera). Ora, Sandra esteve grávida do filho da
família e, na ocasião, foi levada por ele a fazer um aborto. Quando o patriarca
da família, Tide (Tarcísio Meira), fica sabendo disso, passados vários anos e
quando Sandra se tornou amarga por seu amor desprezado, a reação dele – um
personagem apresentado como altamente moral – é de revolta. ‘Vocês não podiam
fazer isso’, diz. E avisa que vai punir. Mas não castiga o filho que seduziu a
adolescente, nem a filha que a levou a uma clínica de aborto. Decide deportar
Sandra para a fazenda; ela se revolta, e desde então empreende a sedução de um
dos genros do patriarca, com sucesso. No final da novela, o seu antigo amado, o
seu eterno amado, casa com a própria irmã dela, a empregada que aceitou sua
condição e com sua modéstia conquistou-lhe o coração.


O espantoso na história é que tudo isso passe com absoluta normalidade. A
empregada que aceita seu papel é premiada com o amor do patrãozinho. A que se
revolta encarna o mal. Contudo, o que diz Sandra é muito certo. Por que uns têm
tudo e outros tão pouco? Por que a família dela aceita migalhas como jóias? E o
que ela não diz – que foi usada sexualmente, é verdade que com seu consentimento
e desejo, mas que depois disso foi descartada como um traste incômodo – também é
grave. Com isso, a personagem despenca. Numa novela em que há condutas elogiadas
e outras, condenadas, em que há um forte senso moral e exemplar, em que a
ganância, a homofobia, o preconceito racial e a aversão aos portadores de
deficiência, a persistência de um papel inferior para a doméstica causa
surpresa.


Não pretendo, com isso, criticar o autor da novela. Sinto-me até mesmo
constrangido de cobrar dele, que ninguém obrigava a fazer uma shopping list do
bem, que se preocupasse com um tema a mais. Mas o que noto é a persistência do
que chamei, em outro lugar, o afeto autoritário. Esse tipo de afeto foi um traço
forte de nossa política, mas saiu dela. Em Salvador, ACM ganhava eleições com um
emblema de coração substituindo o ‘O’ do nome da cidade. Em São Paulo, Maluf se
elegeu proclamando que amava a cidade. Ambos venciam nas eleições uma visão mais
republicana, mais seca, mais civil, que era a dos tucanos e seus próximos. Esses
grandes mestres do afeto autoritário perderam poder na cena pública e política.
Mas o afeto autoritário, no campo doméstico, é uma das constantes mais incômodas
das novelas. Os patrões tratam as empregadas e os domésticos em geral com
afeição, que é retribuída. Não aparece conflito social entre eles. Mas é raro o
‘obrigado’, o ‘por favor’. E é freqüente a expressão pelos patrões de
sentimentos ríspidos, que contudo não perturbam o arcabouço geral da relação
afetiva. Por isso falei em afeto autoritário. A relação entre quem manda e quem
obedece, na casa, não é seca nem neutra. Não é puramente profissional. As
pessoas se gostam – mesmo aquelas que não se amam, isto é, aquelas que não se
casam entre si, o que, repito, é quase condição para existir uma novela ‘séria’,
das nove. Mas, se não surgir o amor a igualar suas condições, haverá as ordens
injustas, as irritações, o silenciamento da Regina da Glória quando se atreve a
dar sua opinião (muitas vezes, bem razoável), a condenação da má Sandra e a
exaltação da boa Telminha.


Mais do que uma eventual crítica à novela – ou de uma pretensiosa
recomendação minha para que em novelas futuras haja um trato mais civilizado do
mundo do emprego doméstico – o que quero aqui é assinalar um traço de nossa
cultura. Não é um problema da autoria da novela e sim de sua recepção, do
público e não do autor. Fomos admitindo, mais e mais, direitos humanos nas
novelas. Deu trabalho, mas uma parte razoável do processo civilizador dos
sentimentos em nosso país se deve a meia dúzia de noveleiros. No entanto, por
que nossa sociedade aceita tão bem assistir a uma injustiça como essa? Porque,
na dramaturgia televisiva, o injusto é sempre apontado e punido. Há injustiças
que não aparecem ou que seria difícil mudar: baixos salários, desemprego, em
suma, as condições sociais cuja mudança não está ao alcance dos personagens de
uma novela, nem – infelizmente – dos espectadores dispersos em suas salas. Mas,
do que aparece, há hoje um único elemento injusto que permanece ileso a tudo. É
a condição das empregadas. Parece que há uma tolerância ou uma aceitação de
nossa sociedade em face disso. Parece que temos dificuldade de estabelecer uma
relação de respeito e de civilidade com elas. Isso precisa mudar.


Renato Janine Ribeiro é professor de ética na USP e autor de O Afeto
Autoritário – Televisão, Ética, Democracia’


Cristina Padiglione e Julia Contier


Caipira é ignorar isso aí


‘A Bandeirantes acaba de botar no ar um programa sertanejo, ou new sertanejo,
bem ao modo daquele gênero que, não faz nem 10 anos, provocava duelos de milhões
entre Globo e SBT. De produção própria, o Terra Nativa substituiu o terceirizado
Terra Sertaneja, rendendo 4 pontos de média no Ibope em São Paulo, ou 217 mil
domicílios. É um feito para as noites de sexta-feira (22h) do canal. À frente do
auditório, nenhum dos Amigos (Zezé Di Camargo&Luciano,
Chitãozinho&Xororó e Leandro&Leonardo) que estampavam o clube dos
milhões antes que a pirataria e a internet brecassem as cifras da indústria
fonográfica no mundo todo. Guilherme e Santiago, os apresentadores da vez, são
dupla oriunda de Goiânia (mais uma) e figuram entre os mais tocados por
emissoras de rádio desse segmento. Da era Amigos (título que rendeu cinco
especiais de fim de ano na Globo e um programa semanal em 1999) para cá, ainda
que a venda de discos não contribua para escancarar os astros pop do universo
rural, um imenso público mal tem chances de se sentir representado pelas grandes
redes.


O.K., se você é daqueles que torcem o nariz para essa turma disposta a imitar
caubói americano, entenda que o genuíno chapéu de palha também entra na conta.
Dispa-se do preconceito e mire o PIB do interior do Estado de São Paulo – sem
falar nos de Goiás, Minas e Mato Grosso, e os milhões de migrantes que, hoje em
território urbano, buscam alguma identificação em canções como Saudade da Minha
Terra. Há um potencial de público, e portanto de consumo, gigantesco que só se
reflete nas grandes redes comerciais em horários periféricos.


Os astros da nova geração não se queixam. Preferem a comparação com a era
pré-Amigos, ou pré 1988, quando Chitãozinho e Xororó romperam a barreira da
programação paulistana da madrugada do rádio para serem ouvidos em plena luz do
dia. Isso foi no tempo em que fio de cabelo grudava no paletó.


‘Antigamente, o espaço para a música sertaneja era muito menor do que é
hoje’, conforma-se Guilherme, o par de Santiago no palco do Terra Nativa. ‘
Depois que os meninos estouraram, Chitão, Leonardo e Zezé, a música sertaneja se
tornou muito popular e a Globo viu que se ela não fizesse o programa, alguém ia
fazer. E, de lá para cá, apesar de não ter programas específicos, tem muito mais
espaço na mídia.’


É verdade que Guilherme e Santiago não comeram o pão que o diabo amassou,
digo, a cruz do sucesso já não lhes renderia um enredo como o do filme Dois
Filhos de Francisco. Mas os ‘novatos’ em questão já somam 12 anos de estrada e
11 discos. Não são como Big Brothers que surgem da noite para o dia. Nas contas
de Guilherme, já venderam 1,5 milhão de discos. ‘Hoje a vendagem no Brasil é
quase irrelevante, mas a agenda de shows aumenta muito, o termômetro passou a
ser outro’.


Quando se pergunta a Guilherme, a Aline Lima (repórter do Terra Nativa e
filha de Chitãozinho), ou mesmo ao pai dela e a Luciano Camargo: afinal, o
espaço para o gênero emagreceu nas grandes redes? Não crêem. Argumentam que o
espaço é o mesmo, distribuído em programas dispostos a embalar qualquer ritmo –
Faustão, Hebe, Luciano Huck, etc.


Segmentação versus comércio


É Luciano, o irmão de Zezé, quem sintetiza o diagnóstico atual: ‘Não é que
isso tenha acontecido com o universo rural, aconteceu com qualquer universo
específico. A televisão, hoje, não tem interesse em atender a um único público:
o ideal, para esse mercado, é atender ao maior número possível de gostos, pelo
menor custo’, afirma.


Assim, qualquer espaço aberto nesse segmento encontra eco – eis por que
Chitãozinho comemora, mas não se surpreende com o ibope do Terra Nativa. ‘Quando
nós fazíamos nosso programa na Record também tínhamos ótimos resultados no
ibope’, lembra o pai de Aline – no ano de 2005, ele e Xororó comandaram um
programa semanal na Record.


Diretora de pesquisas da TV Cultura, Fátima Pacheco Jordão endossa o
diagnóstico de Luciano Camargo. ‘A maioria dos canais não pode encarar a
segmentação, que para nós é uma missão’, afirma Fátima.


A Cultura tem um programa inteiramente voltado ao universo rural, e título
mais apegado às raízes que o Viola Minha Viola não há, e tem ainda o Senhor
Brasil, de Rolando Boldrin, que segue na contramão country do Terra Nativa e se
norteia pela música brasileira regional.


O Viola vai ao ar aos sábados, às 21h, e o Sr. Brasil, às terças, 22h40.
Curioso é observar que só nas manhãs de domingo, quando são reprisados um colado
ao outro, 40% do público de um se sobrepõe ao do outro. Boldrin tem 75% de sua
platéia no segmento ABC, enquanto Inezita tem 77% de seus telespectadores na
faixa CDE.


‘O público da Inezita é mais popular. O do Boldrin é mais classe média,
concebido num momento em que o tipo de música regional é importante no Brasil,
mas não tem exposição na TV’, explica Fátima.


Convém dizer que toda a base de confiança para levar as emissoras a apostar
ou não no universo rural está centrada no território urbano da Grande São Paulo.
O Ibope não faz medição instantânea no interior – e pesquisas mais minuciosas
custam um bocado. Dito isso, vem a certeza de que esses programas ganham fôlego
sem recorrer à sua maior platéia, concentrada no campo e conformada em ser
ouvida por meio de cartas e e-mails aos produtores dos grandes
canais.’


***


Negócios valem a cena


‘No ar há dois anos, o canal Terra Viva, do grupo Bandeirantes, é todo feito
para atender aos anseios do universo rural. Ainda carece do interesse das
operadoras ligadas à Globo (a Net não abriga nenhum dos três canais pagos da
Bandeirantes), mas o Terra Viva alcança as mais de 14 milhões de parabólicas
espalhadas pelo País, segue via cabo para alguns municípios e via Sky, além do
sistema TecSat. Um pacote da programação do Terra Viva também é embalado rumo
aos Estados Unidos. A RFD TV exibe aos sábados o Brazil Agricultural Report, com
foco na nossa agricultura e pecuária. Chega a 50 estados americanos via DirecTV,
Dish Network e Cable TV.


A Globo descobriu o potencial do negócio em 1980. Um texto comemorativo pelos
25 anos do Globo Rural, em 2005, sustenta que, naqueles idos, a TV havia chegado
ao homem do campo, ‘mas não havia na programação das redes um produto onde ele e
sua atividade fossem os personagens principais’. Em seis meses, o Globo Rural
dobraria de meia hora para uma hora e, em outubro de 2000, passou de semanal a
diário.


É um nicho que não conhece crise de anunciantes e tem potencial publicitário
também regional. Alguns programas na linha Globo Rural se espalham pelo interior
do País com acesso restrito às suas regiões. Um dos mais aclamados é o Terra da
Gente, produzido em Campinas pela EPTV, rede retransmissora da Globo. O programa
vai ao ar por 20 emissoras de sinal aberto em seis Estados, somando cerca de 38
milhões de pessoas. Desde janeiro de 2002, é exibido para todo o País via
parabólica e vai ao ar pela Globo Internacional para 55 países nos cinco
continentes.


Na balada


Aqui entre essas fronteiras, enquanto parte da platéia se esmera nos
agronegócios, a turma da balada não escolhe poeira ou asfalto para ornamentar
seu guarda-roupa com fivelonas, chapéus, botas e peças de jeans justinhas. Os
brasileiros adeptos da linha country se organizam em comitivas para cair na
noite ou nos rodeios.


O Estado acompanhou Aline Lima em uma reportagem para o programa Terra Nativa
justamente sobre as comitivas. Convém recorrer ao glossário (ao lado, um resumo
dele) local para se enturmar. Com figurino quase uniformizado, o grupo é
facilmente identificado por engatar coreografias previamente ensaiadas. Em São
Paulo, vão a casas como Villa Country, Estância Alto da Serra, Cervejaria
Estância, Rampas e Papagaio Vintém. Em Campinas, o point é o Terra Tombada e, em
Osasco, o Rancho Musical. ‘A gente entra no Habib’s tudo ‘traiado’ (vestido à
moda country) e o pessoal fica olhando’, conta Jaime Cowboy, da comitiva Rédea
Curta, que agrega 60 participantes.


Glossário


Abeia – É o sujeito que tenta se vestir e se comportar como caubói, mas não
consegue


Bicharedo – Pessoa legal.


Bitelo – Boa pinta.


Boqueta – Coisa ruim.


Cabeceira – Excelente caubói.


Carregado – Quem usa roupa country com muitas franjas e bordas.


Chaiene – Mulher bonita.


Consolação – Cachê recebido pelo peão.


Cumpa – Amigo.


Dar febre – Incomodar, dar trabalho e preocupação.


Dirrubada – Péssimo rodeio.


Espritado – Pessoa agitada. Pode ser usado também para cavalos e bois.


Fervo – Festa boa.


Isso não vira não – Não vai dar certo.


Jogar pedra nas pombinhas – Segurar vela, atrapalhar a paquera de alguém.


Mofete – Pessoas chatas.


Moiá as palavras – Tomar cachaça.


Pialo – Tombo.


Sedém no talo – Calça jeans bem apertada. Tá no náilon – Mulher conquistada.


Traiado ou ‘na traia’ – Adepto de roupa country legítima e completa.


Tem base? – Dá pra acreditar?’


Leila Reis


TV é coisa séria


‘Na quinta-feira, ao dar posse aos ministros de seu segundo mandato, o
presidente Lula aproveitou para explicitar o que pretende com a polêmica TV
pública que incumbiu o jornalista Franklin Martins de criar. Embalado pelo
entusiasmo com a própria retórica, o presidente disse que ‘essa TV deve ser
séria’ e fazer ‘o que muitas vezes a TV privada não faz’, tratar a informação
com seriedade e não ser ‘chapa branca’.


Não vem ao caso discutir aqui se este país precisa de mais uma rede nacional,
chapa branca ou não. O fato é que como todos os governos anteriores, o de Lula
toma iniciativas nesse setor que passam longe da missão de fiscalizar a
qualidade do conteúdo do que ele chama de ‘TV privada’, que vem a ser uma
concessão pública.


A nova classificação indicativa da programação por faixa etária, a cargo do
Ministério da Justiça, por exemplo, ainda hoje é combatida pelas emissoras. Está
no ar a propaganda na qual a Globo defende a tese de que os pais é que são os
responsáveis pelo que os filhos vêem na TV. A recíproca, no entanto, não é
verdadeira. Em nenhum momento o escalão principal da República saiu na defesa
dessa precária classificação para o conteúdo que entra diariamente em 98% dos
domicílios brasileiros (IBGE).


Diante dessa postura indiferente, as redes vão tocando sua programação com
base na única linguagem que conhecem: a do mercado. Colocam no ar o que acham
que vai dar audiência e não o que tem qualidade.


Nesse cenário, o SBT coloca no ar um programa que se pretende de humor,
chamado Sem Controle (quarta, 22h). Perto dele, os pouco sutis A Praça É Nossa e
Zorra Total parecem humor inglês.


O programa, que até tem gente boa no elenco, junta os piores estereótipos
utilizados pelo humor mais rasteiro já feito no Brasil e ainda abaixa um pouco
mais o nível.


Sem Controle é constrangedor. Esquete 1: dois médicos vão testar uma
enfermeira para contratação. Falam do tamanho dos seus ‘termômetros’, dizem que
suas ‘seringas’ estão em ponto de bala, despem a boazuda (claro que tinha que
ser), medem suas formas para o uniforme e disparam um amontoado de piadas
grosseiras e sem graça.


Esquete 2: um policial conversa com o presidiário (de roupa listrada) que
chega da rua com a encomenda que ele pediu. O diálogo explicita a corrupção do
policial o tempo todo e quando o preso volta para a cela, o policial tira um
revólver, diz ‘agora se suicida’ e dispara!


Esquete 3: o marido chega em casa e a esposa diz que conseguiu realizar o
sonho dele: o de adotar uma menina. Entra uma gostosona vestida de criança, com
uma boneca no colo e uma saia curtíssima. As piadas foram na linha do ‘precisa
aprender a sentar no colo do padrinho’ e outras coisas irreproduzíveis.


Está certo que a TV não é obrigada a apresentar só comédias de Shakespeare
quando quer fazer humor. Mas nada justifica o show bizarro apresentado pelo SBT
que, infelizmente, registrou até uma média boa no Ibope (9 pontos na Grande São
Paulo). Mas algum discernimento é preciso enfiar na cabeça dos que fazem a TV
privada a que Lula se referiu.


Os programas, quaisquer que sejam o tipo, não podem utilizar a pedofilia,
violência policial, o desrespeito à mulher e aos gays como motes para fazer
graça. Como disse o presidente, a TV deve ser séria, mas não apenas a que ele
decidiu criar. Alguém tem de olhar para a programação e ajudar os que produzem a
entender o que é respeito à cidadania, à inteligência e ao bom gosto brasileiro.


E-mail: leilareis@terra.com.br


CRÔNICA
Sérgio Augusto


Lambanças no velho mundo


‘É com você mesmo que estou falando. Você, que se envergonha de ser
brasileiro, que lamenta não ter nascido na Europa ou nos EUA, mesmo sabendo que
o rabino Henry Sobel nasceu em Lisboa e criou-se em Nova York. Fico a imaginar a
sensação de desalento que de você se apossou, nos últimos dias, ao tomar
conhecimento de que dois filhos do presidente Lula encheram a cara e aprontaram
na noite brasiliense, que a nadadora olímpica Joanna Bezerra de Mello foi
espancada pelo pai após ser desclassificada numa prova importante, que o filho
de Fernando Henrique Cardoso se meteu com contrabando de armas, e que o general
Garrastazu Médici conquistou o 1º lugar numa enquete sobre ‘os maiores
brasileiros de todos os tempos’.


Primeiro de abril? Até podia ser, mas não é. Minha única intenção é mostrar
como a cafajestice, a truculência, a criminalidade e a estupidez coletiva também
abundam entre os povos ditos civilizados e desenvolvidos.


Quem, na semana passada, encheu a cara e aprontou em diferentes casas
noturnas da Inglaterra foram os dois netos da rainha Elizabeth II. Quem apanhou
do pai por não ter se classificado para as semifinais dos 100m de costas no
Mundial de Esportes Aquáticos, em Melbourne (Austrália), foi a nadadora
ucraniana Kateryna Zubkov. Quem corre o risco de ir para o xadrez por ter
vendido armas a Angola, entre 1993 e 2000, é o filho do ex-presidente François
Mitterrand, Jean-Christophe Mitterrand. Se a Rede Globo patrocinasse uma
enquete, por telefone ou email, sobre os maiores brasileiros de todos os tempos,
JK e Getúlio Vargas talvez chegassem na frente, possivelmente acossados ou
ultrapassados por Tiradentes, Ruy Barbosa, Ayrton Senna, Pelé e Villa-Lobos. Nem
voto dos milicos Garrastazu Médici teria.


Já o ditador português Oliveira Salazar…Temos de reconhecer: é um fenômeno.
Há dias ganhou sua primeira eleição, num pleito post mortem, como convém a um
ditador que morreu quatro vezes: em 1968, quando uma doença afastou-o da vida
pública; em 1970, quando efetivamente baixou sepultura; em 1974, quando a
Revolução dos Cravos acabou com os últimos resquícios do salazarismo; em 1986,
com a entrada de Portugal na Comunidade Européia. O que, afinal, deu nos
portugueses, que, através de uma pesquisa da RTP, elegeram Salazar a maior
figura histórica do país?


Arraigado culto ao autoritarismo, diagnosticou um comentarista do jornal
lisboeta Público; parecer que também explica a segunda colocação obtida pelo
comunista linha-dura Álvaro Cunhal, morto em 2005. Recorrente e doentio
saudosismo, palpitaram outros, lamentando que só em duas outras enquetes,
simultâneas e menos badaladas que a da RTP, D. Afonso Henriques e Camões tenham
chegado na frente, deixando Salazar e Cunhal comendo poeira.


O sociólogo Eduardo Lourenço, mesmo minimizando a importância da enquete,
falou em ‘morte simbólica do 25 de abril’, como se a maioria dos seus patrícios
suspirasse pelo atraso e o autoritarismo que marcaram as quatro décadas da
ditadura salazarista. Prefiro pensar na morte simbólica do sebastianismo, até
pouco tempo o maior fetiche dos portugueses, pelo visto, substituído por outro,
quatro séculos mais novo (ou menos velho).


Portugal arquivou a monarquia em 1910. Os ingleses, por boas razões, não
abrem mão da sua. A aristocracia lusa sempre foi monótona e sensaborona, a
britânica é uma pândega permanente, desde, pelo menos, o século 18. Só nos
últimos dez dias, a família real, aparentemente insaciada pela exposição que lhe
vem dando o filme de Stephen Frears, desdobrou-se para renovar seu repertório de
plebéias baixarias.


Numa casa noturna de Bournemouth, sul da Inglaterra, o príncipe William
exagerou na sambucca, dançou com uma mulher que não era sua namorada, meteu a
mão no peito de uma pernambucana, Ana Laise Ferreira, e foi parar, outra vez, na
primeira página dos tablóides. A julgar pelas fotos, Ana apreciou deveras a
apalpada que levou, os dois dias de fama que a ‘gutter press’ londrina lhe
assegurou e as libras que o flagrante lhe rendeu, exatamente nessa ordem. Nada
se disse sobre a possibilidade de o primogênito de Lady Di enviar um cartão
postal de Bagdá para a brasileira.


Em outra casa noturna, em Londres, Harry, o caçula de Lady Di e o terceiro na
linha sucessória ao trono inglês, entornou algumas doses a mais de vodca, enfiou
o braço num paparazzo e estatelou-se na calçada. A rainha, como é do seu feitio,
suspirou e deu de ombros, aliviando a consciência com a desconfiança de que os
genes ruins dos netinhos vieram da família Spencer.


Os antimonarquistas aproveitaram para desaguar sua ira nas seções de cartas
dos diários londrinos e na blogosfera. ‘Cortem suas cabeças!’, bradou um leitor
do Guardian, referindo-se às cabeças de Harry e William, ‘dois parasitas que
mereciam ser abolidos’, na opinião de outro. Dando vivas à república, um
terceiro reivindicou o confisco das terras e propriedades da família real.
Houve, mesmo, quem sugerisse a devoração dela e agregados, no melhor estilo
canibalesco.


A ninguém ocorreu que os dois filhos de Charles, o príncipe-tampão, pudessem
estar sob os efeitos da TPE, tensão pré-efemérides. Pois são muitas as
efemérides, neste mês e nos vindouros, envolvendo a velha e pérfida Albion.
Estamos em plena comemoração dos 50 anos da Comunidade Européia e dos 25 anos da
guerra das Malvinas. Faltam 152 dias para os dez anos de morte de Lady Di. Na
terça-feira , comemorou-se o bicentenário da abolição do tráfico de escravos
pela coroa inglesa, com uma missa na Abadia de Westminster. Antes não o tivessem
comemorado.


Entretia-se a corte com o seu babado mais recente (a aparição de um filho
ilegítimo da finada princesa Margaret com o finado piloto Peter Townsend: Robert
Brown, 51 anos, contador em Jersey, de olho nas ‘esmeraldas de Cambridge’ que
pertenciam à irmã caçula de Elizabeth), quando um negro chamado Toyin Agbetu,
militante do grupo Ligali, saiu de onde estava e, encarando de frente a rainha e
seu séquito, começou a gritar: ‘Vocês deveriam ter vergonha na cara! Vocês não
podiam estar aqui! Isso é um insulto a todos nós!’ – e, em seguida, exortou
todos os cristãos africanos presentes a sairem dali com ele. Mas Agbetu saiu
acompanhado de apenas três guardas. Foi bem menos incomodado pela polícia que o
rabino Sobel. Mas, ai dele se tivesse roubado cinco gravatas.


SEGUNDA, 26 DE MARÇO


Eleição Póstuma


A eleição do ‘maior português de todos os tempos’, feita por meio de uma
enquete da Rádio e Televisão de Portugal (RTP), emissora pública, foi vencida
pelo ditador António de Oliveira Salazar. Ele ficou na frente de Camões e
Fernando Pessoa, por exemplo.


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