Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O evolucionismo de cada redator

Duas colunas publicadas na edição da Folha de S.Paulo no domingo [27/9] chamaram a atenção: ‘O criacionismo de Marina’, de Marcelo Leite, e ‘A primeira causa’, de Marcelo Gleiser. Quero ponderar o que cada autor separadamente defende, ressaltando suas perspectivas peculiares, e isso a despeito de os dois combaterem (declarada ou implicitamente) o mesmo ‘adversário’: o criacionismo.

Marcelo Leite foca seus questionamentos no envolvimento dúbio da ex-ministra Marina Silva, pré-candidata à presidência, com o ensino do criacionismo nas escolas. Cita dois fatos que demonstram ambiguidade da parte de Marina: uma entrevista ao site Éoqhá [Matheus Siqueira, entrevista com a ministra do Meio Ambiente, Marina Silva] e outra ao programa Roda Viva. Na primeira, ela apoiara timidamente o criacionismo; na segunda, Marina nega que o tenha feito.

Leite, então, analisa alguns trechos da entrevista ao Éoqhá e dá seu veredito: ‘Não é uma resposta aceitável, vinda de ministra de um Estado laico. Devemos fazer distinção, fundamental, entre ensino de ciências e ensino de religião.’ A problemática do parágrafo nos leva a considerar dois pontos: o entendimento de Estado laico e a natureza do criacionismo.

Descobertas não mudam orientação filosófica

O que é um Estado laico? Certamente, a expressão ‘laico’ não adquire o sentido de ‘irreligioso’ ou ‘ateu’. Num Estado laico, não se pode beneficiar uma religião em detrimento de outras, o que caracterizaria favoritismo. Todos têm o direito de crer no que quiserem, isso é fato. Agora, cabe refletirmos: ensinar, ou mesmo cogitar a possibilidade alternativa de se ensinar o criacionismo (como proposta científica) iria prejudicar a democracia em que? Desde que alunos tenham a possibilidade de avaliar modelos de origens ou visões distintas da ciência, a democracia estaria salvaguarda – muito mais do que ao se beneficiar um modelo em detrimento de outros.

Um exemplo pode ser útil. Imagine que uma corrente de pensamento, que defendesse a infidelidade de Capitu (do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis), se impusesse nos livros didáticos de literatura. Entretanto, após a aceitação generalizada dessa corrente, surgisse uma outra, advogando justamente o oposto – a inocência de Capitu. Até aí, seria uma disputa justa entre formas opostas de pensamento. Mas, e se os professores que advogassem a primeira corrente conseguissem apoio e, através da sanção de uma lei, impedissem o ensino do pensamento diferente? Seria isso democrático? Favoreceria os educandos confiná-los ao acesso a uma forma de ver as coisas?

Quanto ao segundo ponto, o que dizer de uma suposta ‘distinção fundamental’ entre ciência e religião? Trata-se de uma típica falácia argumentum ad nauseam (na qual algo que é repetido à exaustão adquire foros de verdade). Criacionismo não é religião. Claramente, o criacionismo tem pressupostos calcados no teísmo bíblico (isso, no Ocidente; os muçulmanos também advogam um outro tipo de criacionismo, o que não interessa aos propósitos dessa discussão). Se pensarmos no evolucionismo, poderemos notar que sua matriz filosófica também norteia uma determinada praxis. Ambos os modelos trabalham com inferências, levantamento de dados, avaliação, hipóteses, construções de teorias etc. As descobertas que fazem agregam conhecimento, mas não mudam a orientação filosófica dos modelos. Nesse aspecto, criacionismo e evolucionismo são similares. A prova é que os primeiros a empregarem o método científico eram… criacionistas!

‘Nem sabemos que perguntas são’

O segundo Marcelo se preocupa com uma questão antiga: o argumento da primeira causa, que remonta aos filósofos gregos e a Agostinho. Tudo tem uma causa, o que pressupõe uma sucessão de causas concomitantes e sucessivas desencadeadas por uma causa primeira, ela própria incausada. Tal argumentação lógica tem servido como inferência da ação criadora de Deus, encarado como a primeira causa.

Marcelo Gleiser trabalha no sentido de negar a necessidade de uma causa tal. ‘[…] Esse é um debate ferrenho que, infelizmente, entrava o progresso cultural.’ Deveríamos perguntar a Gleiser como ele justificaria essa afirmação, se hoje é sabido que tais questionamentos, de natureza teológica e filosófica, acabaram criando o pano de fundo para o desenvolvimento da ciência, ainda durante a Idade Média e, mais tarde, para a revolução ocorrida a partir do século 27. Uma vez que Gleiser fez a afirmação, que ele se encarregue do ônus da prova.

À frente, ele continua: ‘[…] A ciência não se propõe a responder a todas as perguntas. E por um motivo simples: nós nem sabemos que perguntas são essas. Dado que jamais teremos um conhecimento completo da realidade, jamais poderemos construir uma narrativa científica completa.’

Falácia genética

Oposto ao triunfalismo disfarçado de Marcelo Leite, que desqualifica o criacionismo, vociferando que só o evolucionismo é ciência, o seu homônimo expõe a debilidade da ciência, afirmando coisas que fariam Dawkins corar – de raiva! Em seu livro O Capelão do Diabo, Richard Dawkins escreve um capítulo contra o relativismo na ciência, reivindicando a condição da ciência como detentora do verdadeiro conhecimento [Richard Dawkins, O capelão do Diabo, São Paulo, SP, ed. Companhia das Letras, 2005, p.36]. Contudo, Gleiser prefere a essa certeza máxima a ‘simplicidade do não-saber’. Curiosamente, os darwinistas acusam cristãos de fomentar a ignorância e de crerem no que não podem explicar!

A declaração final de Gleiser é tentadora, no sentido de favorecer uma leitura que a ampliasse, tornando-a um severo juízo sobre a própria cosmovisão evolucionista (embora, muito provavelmente, o autor não quisesse dar a entender isso): ‘[…] Prefiro continuar tentando [ao invés de admitir Deus como causa primeira] e aceitar que, por ser humano, minha visão de mundo tem limites.’

Nas duas colunas analisadas, percebe-se que velhos preconceitos impedem os autores de encarar pressupostos com base religiosa apenas pela própria base religiosa. Este tipo de falácia genética, infelizmente, tem marcado a nossa época, impedindo uma averiguação racional de pressupostos cristãos. Esperemos que mais consideração sobre causas e efeitos favoreçam o debate, substituindo o preconceito, promotor de um não-debate, o qual a ninguém favorece.

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Pastor adventista; autor do blog Questão de Confiança