Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O jogo maniqueísta da sucessão

O fantasma da transição tem rondado Cuba desde que Fidel Castro caiu enfermo e viu-se obrigado a passar o poder ao irmão, Raúl Castro, designado seu sucessor em 1997. É a primeira vez que el comandante, perto de completar 80 anos, se ausenta da cena. Mas, apesar de óbvia nas atuais circunstâncias, ‘transição’ é uma palavra que não pode ser pronunciada na ilha. Conforme noticiou Granma, o jornal oficial do partido cubano, ‘a mal chamada transição é uma palavra que não faz parte do vocabulário dos cubanos de cá’. O mau agouro fica por conta dos cubanos de ‘lá’, os que vivem em Miami e vibraram com as notícias do agravamento do estado de saúde de Fidel.

Impronunciável ou não, o caminho para a transição está pavimentado na ilha. Na mesma edição, Granma traz matéria apologética sobre Raúl Castro, com o fac-símile de uma notícia divulgada no jornal Oriente, de Cuba, em 30 de julho de 1953. Com o título ‘Lo que no se puede ignorar’, a matéria anuncia a prisão de Raúl após a tentativa frustrada da célebre invasão do palácio La Moncada, em Havana, da qual participou Fidel Castro. Trata-se de uma cartada para vender uma imagem de herói do comandante jefe interino da nação cubana. Com Fidel ainda vivo, projeta-se um cenário maniqueísta sobre a situação do regime cubano, um jogo ao qual a imprensa tem se dedicado nos últimos dias. O socialismo realmente existente sobreviverá na ilha, com o desaparecimento do mito Fidel? Ou se desmanchará, como já ocorreu com todos os outros países comunistas?

Contradições

No artigo ‘The man in Havana’, publicado na revista eletrônica Slate, Ian Bremmer levanta a lebre do culto à personalidade, exemplarmente tipificado no caso do regime castrista: ‘Em geral, Estados autoritários só permanecem estáveis com a manutenção de um líder individual no poder ou uma pequena camarilha. São as personalidades – não as instituições – que importam em tais países. Cuba tem um presidente, mas não uma presidência. Fidel Castro é a revolução. Lealdade ao governo cubano é lealdade a Fidel. Quando ele morrer finalmente, a questão da sucessão gerará forte incerteza e potencial instabilidade’. Como o carisma não é genético, indaga-se se Raúl, mesmo se tornando o novo mandatário, obterá êxito em levar adiante os ideais da revolución. Ian Bremmer indaga: ‘Que tipo de presidente ele será? Dado que já está com 75 anos, poderá ser um presidente de vida curta’. E ainda: ‘Como Washington poderá responder à transição de liderança?’

Embora apropriadas, são questões que se movem num terreno meramente especulativo, reforçando tendência da mídia neste momento. No entanto, numa extensa reportagem da prestigiosa revista New Yorker, o jornalista Jon Lee Anderson desce ao rés-do-chão da ilha caribenha e, como um bom repórter, revela com acuidade o processo de desgaste do regime. Em ‘Castro’s last battle’, Lee Anderson, ex-correspondente de guerra em Bagdá (dele a Editora Objetiva publicou A queda de Bagdá e Che Guevara – uma biografia), faz longo inventário das difíceis condições de vida em Cuba.

Lee Anderson ouviu dezenas de fontes, de cubanos anônimos, pró e anti-castristas a personalidades do círculo íntimo do poder em Cuba. Na reportagem, o que aparece é um país carcomido pela falta de oportunidades e pela luta da população para sobreviver. É pelas inúmeras contradições do cotidiano em Havana e cidades do interior que Lee Anderson mostra que a transição é uma bomba-relógio cujo gatilho já foi há muito acionado. Lee Anderson viveu cerca de uma década em Cuba. Em seu relato, consegue manter razoável eqüidistância dos fatos que observa.

Seu texto é também um pequeno compêndio sobre a história cubana pós-revolução. Lá está o registro da façanha de Fidel e companheiros destronando o governo corrupto de Fulgêncio Batista; o embargo americano; a crise dos mísseis no governo Kennedy e a tentativa de invasão da Baía dos Porcos; o golpe sofrido pela retirada do apoio soviético, levando Fidel a autorizar pequenas iniciativas capitalistas na ilha; os incidentes recentes envolvendo a guarda do menino Elián González e detalhes da família pouco conhecida de Fidel.

Assédio

Em sua narrativa, Lee Anderson conta que ouviu de um veterano membro do partido cubano que Fidel ‘se sentia angustiado com sua idade avançada e obcecado com a idéia de que o socialismo não poderia sobreviver sem sua presença’. Para perpetuar o regime, Fidel idealizou a Batalha das Idéias. ‘O objetivo de Castro’ – escreveu Lee Anderson – ‘é reengajar os cubanos nos ideais da revolução, especialmente os jovens cubanos’. Conforme Lee Anderson, quando surgiu nas páginas da Forbes como um dos líderes mais ricos do mundo, Fidel não hesitou em usar a ideologia em seu próprio favor: ‘Devemos continuar a pulverizar as mentiras que falam contra nós… Isto é a batalha ideológica, tudo é a Batalha das Idéias’, teria dito Fidel num de seus intermináveis discursos.

Mas, na vida prática do povo cubano, o esforço do líder não tem surtido muito efeito. ‘Privadamente, muitos cubanos vêem a Batalha das Idéias como um espetáculo que devem tolerar, mas que é irrelevante para suas vidas. A maioria deles não ganha o suficiente para comer bem, muito menos para viver confortavelmente. Como resultado da escassez endêmica, quase todo mundo tem algum contato com o mercado negro em Cuba’, escreveu Lee Anderson.

Esse abismo entre o discurso oficial e a realidade é uma constante, a ponto de o repórter ouvir de um casal de amigos cubanos um desabafo dramático: ‘Para viver em Cuba, temos apenas três alternativas, conhecidas como os três Rs: robar, remar ou rezingarse’, que significaria ‘f…-se’, já que ‘rezingarse’ oculta um jogo de palavras entre ‘resignar’ e ‘zingar’, gíria cubana para ‘f…’. Em suma, não resta muita coisa. A última alternativa virou um amplo comércio que atrai estrangeiros para o turismo na ilha. As jineteras, como são chamadas as prostitutas em Cuba, ainda que mais escassas hoje em dia, são vistas em alguns lugares. O próprio repórter conta que foi assediado por uma garota que aparentava não ter mais de 15 anos.

Tema-tabu

As contradições da sociedade cubana, segundo Lee Anderson, são evidentes. As antenas de tevê por satélite, por exemplo, estão proibidas, mas mesmo assim a pessoas as instalam em segredo e freqüentemente sintonizam emissoras anti-Castro de Miami. Afora isso, a própria influência do timoneiro tem sido posta em xeque. Uma fonte pertencente ao partido revelou a Lee Anderson que Fidel não tem mais o que dizer. ‘As pessoas ainda o respeitam, embora não lhe dêem mais ouvidos. Depois dele, não há mais ninguém. Seus sucessores terão que fazer uma abertura, não são estúpidos. O povo já se cansou’.

Sobre a longevidade de Fidel no poder, ou sua imortalidade, não faltam, segundo Lee Anderson, piadas circulando em Havana. Numa delas, Fidel está no caixão exposto à visitação pública. Dele se aproxima Felipe Pérez Roque, ministro do Exterior de 41 anos. Ele se posiciona diante do caixão, de cabeça baixa, e assim permanece por um longo tempo. Logo atrás dele está Ricardo Alarcón, presidente da Assembléia Nacional de Cuba. O tempo passa, Ricardo se impacienta e dá um leve tapa no ombro de Felipe, sussurando: ‘O que você está esperando? Ele está morto, e você sabe.’ Felipe sussurra de volta: ‘Eu sei que está. Só estou imaginando uma maneira de contar isso a ele.’

Segundo Lee Anderson, poucos cubanos falam oficialmente sobre a sucessão. Fidel afirmou a um jornalista europeu que, caso ele morresse, não tinha dúvidas de que seu irmão Raúl seria confirmado no poder pela Assembléia Nacional. Todavia, por causa da idade de Raúl, o poder será dividido com um triunvirato formado por Felipe Pérez Roque, Ricardo Alarcón e Carlos Lage, o czar da economia cubana. É só uma questão de tempo para descobrir se Cuba continuará como ‘a Disneylândia das esquerdas’ (crédito para o jornalista Sérgio Augusto), ou se tornará a última fronteira desbravada pelo capitalismo.

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Jornalista, editor do Balaio de Notícias