Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O discreto charme do grotesco

Uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo, publicada no domingo (16/2), com repercussão na edição de segunda-feira, “revela” como o narcotráfico se apossou de uma extensa área próxima à Avenida Paulista, frequentada por adolescentes e jovens nos finais de semana. O texto e as imagens descrevem o rápido processo de deterioração urbana, que em alguns trechos parece conduzir o bairro a um estado semelhante ao da chamada “cracolândia”, no centro da cidade.

Como nos piores momentos do Times Square, em Nova York, e em outras cidades onde o crime substituiu os agentes do Estado, o cenário é de terra arrasada, com paredes pichadas, vidros quebrados, menores de 18 anos em estado de coma alcoólica e traficantes ameaçando moradores e comerciantes. Até um posto de gasolina foi ocupado e transformado em ponto de distribuição de drogas, sob as vistas da polícia.

Desenvolve-se ali também uma espécie de turismo sexual energizado por cocaína e álcool. O público preferencial dos criminosos é formado exatamente por menores de idade, que não podem entrar nas “baladas” da Rua Augusta e promovem seus encontros nas calçadas.

Gangues disputam o território, marcando as paredes com suas pichações, e o quadro pintado pela reportagem descreve um cenário de decadência acelerada. Percebe-se ali um culto ao charme do grotesco que acompanha certas expressões da sociedade contemporânea.

Na segunda-feira (17), entrevistado pelo Estado, o governador Geraldo Alckmin promete “ação vigorosa”. Um especialista convidado pelo jornal a comentar o caso observa que não cabe ao governador anunciar o que será feito, mas explicar à sociedade o que estaria fazendo.

Segundo o jornal, já na noite do domingo, após a publicação da reportagem inicial, os traficantes desapareceram da região. Mas os moradores entrevistados pela reportagem apostam que eles voltarão assim que o assunto cair no esquecimento. Eles sabem que os jornalistas vão comparecer para acompanhar as prováveis operações policiais, e depois tudo será como dantes.

Duas realidades

O caso suscita algumas reflexões que não costumam frequentar o campo do jornalismo. Primeiro, embora a função da segurança pública seja do governo estadual, não se pode eximir a Prefeitura da responsabilidade pela ocupação ilegal do espaço urbano. Assim como extensas áreas da periferia continuam sendo invadidas de forma organizada por “empreendedores” imobiliários clandestinos e transformadas em favelas, o poder municipal parece não ter olhos para a deterioração acelerada de algumas regiões no chamado centro expandido de São Paulo. Portanto, o problema não tem somente uma origem e a solução não será apenas tornar efetivo o policiamento.

Em segundo lugar, e não menos importante, é preciso questionar uma certa tolerância desenvolvida pela sociedade e estimulada pela imprensa com relação a comportamentos delinquenciais: toda discussão sobre os direitos individuais acaba resvalando para uma condenação a qualquer proposta de limites para ações antissociais. Esse aspecto da cultura brasileira, talvez reflexo de velhos traumas criados no período da ditadura, produziu um esgarçamento do necessário equilíbrio entre direitos e deveres.

A vida em sociedade exige essa moderação, difícil de ser alcançada nas faixas etárias mais vulneráveis, principalmente a dos adolescentes e jovens. É dever da família, da sociedade e do Estado protegê-los, mas estabeleceu-se que eles devem ter liberdade irrestrita. E é nesse espaço de uma autonomia tão improvável quanto ilusória que se inserem os empreendedores das drogas e a indústria legalizada do álcool. Então, o álcool acaba servindo como argumento para o discurso que procura minimizar a percepção de riscos e danos das drogas ilegais.

Em terceiro lugar, não se deve perder de vista que a imprensa enxerga a cidade com duas lentes: numa delas, saúda o avanço dos empreendimentos imobiliários nas regiões onde o poder público cuida da infraestrutura; na outra, costuma glamourizar certos usos do espaço urbano que tendem a contribuir para a decadência desses mesmos espaços.

Aquela região da cidade ganhou, nos anos recentes, o charmoso nome de “baixo Augusta”, como denominação de um território onde tudo é permitido. Ao mesmo tempo, tem sido tema de reportagens sobre a profusão de novos edifícios.

As duas realidades não podem conviver no mesmo espaço.