Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os impactos da digitalização

Nos últimos anos, a troca de informação em suporte digital tem se ampliado fortemente, mudando inclusive meios que tradicionalmente funcionam com tecnologia analógica, como telefonia, televisão e rádio. Este processo, chamado comumente de digitalização ou de convergência tecnológica, não pode ser entendido apenas como um conjunto de evoluções técnicas, mas sim como uma resposta do setor de comunicações e tecnologias da informação à nova organização do sistema capitalista nos últimos 30 anos. Esta foi a reflexão predominantes no encontro da União Latina de Economia Política da Informação, Comunicação e Cultura (Ulepicc), realizado em Bauru entre os dias 13 e 15 de agosto.


Segundo o professor César Bolaño, da Universidade Federal de Sergipe, o capitalismo contemporâneo encontra-se desde o último quarto do século 20 em uma crise estrutural após um período de expansão no pós-guerra. ‘A mudança está relacionada ao âmago do próprio processo produtivo e tem a microeletrônica como gênese’, analisa Bolaño. ‘Ela aparece aí como elemento central do processo de reestruturação [do processo produtivo] e vai fazer com que as relações de trabalho possam ser transformadas.’


Ainda de acordo com o pesquisador, esta nova tecnologia vai cumprir um papel fundamental na flexibilização da dinâmica industrial, possibilitando a conexão de locais de produção descentralizados como alternativa de redução de custos. Bolaño argumenta que isso ocorre como uma das formas de retomada da hegemonia estadunidense no capitalismo global. ‘O interesse dos EUA era muito claro: eles tinham perdido a hegemonia do setor anterior, o automobilístico, e vão atuar pressionando na indústria das telecomunicações.’


A abertura para esta ascensão do setor de telecomunicações e a retomada estadunidense se dão com a identificação da necessidade de se massificar as tecnologias de informação e o surgimento de novas formas de relação do indivíduo e das famílias com os meios de comunicação. ‘A digitalização faz parte deste processo’, aponta Bolaño. A tecnologia digital, conclui o professor, deve ser entendida como parte do processo social.


Sociedade midiatizada


Para o professor da Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos) Valério Brittos, as Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) não só se desenvolvem neste momento, como assumem uma posição central na sociedade. ‘A sociabilidade é vivenciada através da mídia. Mesmo as pessoas com relação não tão presente com a mídia também vivem nesta sociedade midiatizada.’


As tecnologias digitais passam a cumprir o papel não só de viabilizar a nova lógica produtiva, mas também moldar os hábitos de consumo aos novos produtos, menos massificados. ‘Há uma mercantilização de setores de forma que não havia sido feita antes’, diz Anita Simis, professora da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp). ‘Neste sentido, a indústria cultural tende a atender e controlar gostos, valores, preferências de todos os segmentos do mercado. É diferente do início do século 20, quando havia uma indústria mais voltada para as massas.’


Esta característica também passa a definir o próprio setor de comunicações. Valério Brittos classifica esta fase como de ‘multiplicidade da oferta’, na qual a concorrência intramídia (entre, por exemplo, diferentes emissoras de televisão) assume um caráter intermídia (televisão versus internet).


A segmentação dos meios de comunicação a partir da invenção de diversos dispositivos (televisão a cabo, por satélite, telefones móveis, computadores pessoais), acrescenta Anita Simis, exige uma produção cultural intensa e incessante, que é acompanhada pelo aumento do tempo médio para desfrutá-la. No entanto, a maior quantidade não se traduz em mais qualidade. ‘A concorrência da mídia não leva à variedade da fala, mas a um espaço competitivo em torno do mesmo discurso’, afirma Brittos.


Lógica da exclusão


A organização desses meios não só reflete como potencializa a lógica de exclusão no capitalismo contemporâneo. Quanto mais e mais novos artefatos, menos pessoas têm acesso a eles. A concorrência intermídia manifesta-se apenas nas áreas com potencial de consumo, deixando o restante dos territórios mundiais alijados das novas possibilidades. ‘A sociedade midiatizada não exclui formas de convivência presencial e as formas de exploração tradicionais, mas ela inclui uma nova camada de exploração e exclusão’, completa o professor da Unisinos.


Na avaliação do professor Murilo Ramos, da Universidade de Brasília (UnB), o foco não deve ser o aparato tecnológico, mas sim a já antiga luta pela democratização do setor. ‘O fascínio da técnica nos leva para longe daquilo que é necessário, das políticas democráticas de comunicação.’


Valério Brittos endossa a posição sobre a importância de retomada do conceito de democratização da comunicação e de seus princípios, como a afirmação do indivíduo como elemento ativo e não objeto da comunicação, a ampliação constante da variedade das mensagens intercambiadas e o aumento do grau e da qualidade da representação social nos meios de comunicação, implicando um controle social da mídia.


Ao final do encontro, os acadêmicos presentes reafirmaram a importância de aprofundar as pesquisas sobre os meios de comunicação neste novo ambiente sem perder de vista que neles se manifestam, sob novas bases, velhos problemas da cultura no capitalismo, como a concentração e falta de pluralidade e a exclusão do acesso aos meios de produção de informação e cultura.

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Do Observatório do Direito à Comunicação