Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Os riscos de um caminho sem volta

O governo estabeleceu na sexta-feira (11/3) um novo prazo para que o Comitê de Desenvolvimento do Sistema Brasileiro de TV Digital apresente o modelo de referência para o sistema que será adotado no Brasil. A nova data é 10 de fevereiro de 2006. Dois meses antes, os trabalhos das instituições de pesquisa financiadas pelo governo e conveniadas com a Finep deverão ter seus trabalhos finalizados.

O modelo de referência é a base sobre a qual se assenta toda a atividade de TV digital terrestre no país. Mas evidentemente não esgota a questão. Há decisões políticas da maior relevância a serem tomadas. Uma delas está na eleição da maneira pela qual a TV digital será explorada no país.

Há vários cenários possíveis, que vão da hegemonia do HDTV em todo o espectro autorizado, até a utilização de definição standard com uma gama maior de serviços. É uma questão aparentemente técnica, mas que na verdade tem um impacto muito profundo sobre o que representará para a sociedade brasileira, nas próximas décadas, a televisão digital.

Vários prazos para a definição do sistema foram estabelecidos antes. Durante muito tempo, por exemplo, trabalhou-se com a certeza de que a definição sairia antes das eleições presidenciais de 2002. Bem no final do mandato de Fernando Henrique Cardoso, o adiamento surgiu como um presente de boas-vindas ao recém-eleito presidente Lula. Agora, o novo prazo se esgota apenas oito meses antes da escolha do seu sucessor.

Parece impossível adiá-lo mais uma vez, não apenas por questões políticas mas também por razões técnicas e econômicas. Em virtualmente todo o mundo, o processo de transição do analógico para o digital já começou há bastante tempo. Em cidades como Berlim ele já se completou e na maior parte da Europa e dos EUA estará completado em 2007 – ano em que, na melhor das hipóteses, estará se iniciando no Brasil.

Assim, se o presidente Lula de fato quiser assistir a Copa de 2006 em HDTV, como tem apregoado repetidamente, ele terá que fazê-lo numa estação experimental, ou então viajando para fora do Brasil.

Velocidade exponencial

As repetidas indefinições dos ministros encarregados de tocar a implantação da TV digital no país geraram um atraso que chegou ao seu limite – e cuja conseqüência não é apenas a quebra de expectativas da indústria de eletroeletrônicos.

A urgência neste momento é para que o Brasil possa definir o seu modelo de negócios na esfera da TV digital e estabelecer uma estratégia em que se inclua, de maneira prioritária, a construção de modelos de conteúdo. Este é um ponto que se reflete diretamente em questões ligadas à soberania nacional. Não podemos nos dar ao luxo de importar programação na mesma medida em que isso vem sendo feito, especialmente no caso da TV por assinatura, sem garantir uma contrapartida séria aos produtores de conteúdo brasileiro.

Para perceber essa necessidade com clareza, é preciso que se entenda duas situações diferentes, que convergem neste momento. Uma é o desenvolvimento da produção de conteúdo em ambientes digitais; outra, é a trajetória dos modelos de empacotamento e organização da programação durante esses primeiros 60 anos da televisão.

É necessário também que se diferencie o que vem a ser produção de conteúdo para ambientes digitais e produção digital de conteúdo, que são coisas completamente diferentes. No que diz respeito à produção de conteúdo audiovisual em si, deve-se lembrar que isto já opera há algum tempo em ambientes preponderantemente digitais. Poucas câmeras de TV fabricadas hoje não são equipadas com sistemas de captação digitais, incluindo as mini-DV domésticas; as ilhas de edição não-lineares, com que quase todos os editores operam, são igualmente digitais.

Em muito pouco tempo, as fitas deixarão por completo de ser utilizadas, cedendo lugar, como já acontece em velocidade exponencial, a discos ou cartões em que imagem e som são registrados com todas as informações necessárias para seu processamento durante a edição.

Grande parte da distribuição de sinais de TV por satélite ou a cabo já é também digital. Os assinantes de operadoras de DTH, como Sky ou DirecTV, já recebem digitalmente a maior parte da programação, assim como os assinantes de operadoras de cabo ou MMDS (NET ou TVA, por exemplo) o fazem de forma crescente.

Modelos de produção

Produção para ambiente digital é outra coisa – e ganha relevância em função das peculiaridades deste ambiente. Entre elas, as que dizem respeito às competências exclusivas de plataformas de transmissão e recepção digitais – competências como a interatividade, por exemplo, entre muitas outras.

Onde hoje a transmissão já se dá digitalmente, essas competências são reduzidas a mínimos denominadores comuns – por duas razões: os televisores analógicos não têm capacidade de processar informações digitais e, mesmo que tivessem, não existe conteúdo disponível para isso.

Que mínimos denominadores comuns são esses? Gerenciadores de programação on-screen e artefatos como os PVRs, por exemplo, espécie de videocassetes que são capazes de armazenar alguns minutos de programação e resgatá-los logo depois, dando ao espectador a impressão de que, com sua breve ausência, a programação ao vivo esperou por ele para continuar.

Quando se fala em televisão digital, no entanto, estamos na verdade falando em plataformas digitais de transmissão e recepção terrestres, aquelas pelas quais recebemos hoje os canais abertos nos nossos televisores. É aí que se dá a revolução – e para que se entenda como essa revolução se processa e de que maneira ela pode nos afetar, para o bem ou para o mal, é necessário que se observe como se dá a lógica da distribuição e do empacotamento de conteúdo em televisão.

De uma forma bem simplificada, pode-se dividir esse processo em três fases. A primeira, que vai das origens da televisão até os anos 1960, quando o meio se organizava em emissoras regionais. A segunda, que começa com o advento das transmissões em microondas e o aparecimento dos satélites de comunicação, quando a televisão passa a se organizar em torno de redes abertas, de abrangência nacional – cada rede cobrindo uma boa parte ou a totalidade de seu país. E a terceira, que se inicia com o advento dos novos mecanismos de distribuição de sinais (MMDS, cabo e em particular os satélites em banda Ku, que começam a aparecer na passagem dos anos 1980 para os 1990), quando a nova televisão, a TV por assinatura, passa a se organizar através de redes internacionais, com abrangência não mais limitada ao país de onde ela está sendo gerada, mas à grande parte, ou quase a totalidade, do planeta.

Esse é um efeito extraordinariamente visível de um mundo globalizado: uma televisão sem fronteiras, organizada a partir de redes internacionais que passam a ser hegemônicas na constituição dos lineups de todos os operadores em qualquer parte do mundo. E faz com que todas essas grades, não importa em que parte do mundo sejam montadas, se assemelhem ao ponto de parecerem iguais.

Um primeiro efeito é a aparência de permitir a circulação internacional da produção cultural de muitas nações, de muitas culturas. Mas o que acontece na prática não está nem perto disso, simplesmente porque os sinais distribuídos pelas operadoras transitam numa só direção. Se fazem isso é porque as sociedades resignaram-se a se dividir entre produtoras e consumidoras de conteúdo audiovisual.

Dificilmente se poderia pensar num efeito mais desastroso promovido por um meio de comunicação em um ambiente globalizado. A invasão monocultural, numa primeira instância, molda comportamentos e valores homogêneos, não importa as características da sociedade em que esteja penetrando. Num plano imediatamente posterior, determina em cada uma dessas sociedades modelos de produção cultural grosseiramente estranhos a seus interesses – e este é desgraçadamente um caminho sem volta.

Criação de demanda

Ao contrário do que muitas vezes se apregoa, o ambiente de TV por assinatura dominado pelas programadoras estrangeiras – e pelas poucas programadoras brasileiras que nelas se espelham – não veio a agregar qualidade, mas sim a uniformização da banalidade à televisão brasileira. Redes iguais em tudo difundem modelos estéticos semelhantes, que o público percebe como os únicos possíveis para o meio.

Em meados dos anos 1980, quando os meios alternativos de distribuição de sinais ganharam impulso e construiu-se o modelo de TV por assinatura nos EUA, foram criadas cerca de 300 redes de TV por assinatura – no início locais, mas que logo passaram a distribuir seus sinais para todo o mundo.

Redes a princípio pequenas, como Discovery, ESPN, Cartoon, CNN, logo se tornaram grandes empresas e foram, em sua maioria, absorvidas por grandes corporações. Hoje, são menos de dez as grandes corporações internacionais que dominam mais de 80% do espaço televisivo em todo o mundo.

Decorridos mais de 13 anos desde a implantação dos modelos de TV por assinatura no Brasil, nenhuma grande rede independente foi criada, sequer nacionalmente. O volume de importação não apenas de imagens, mas sobretudo de modelos de construção de televisão, cresceu exponencialmente neste período.

Os produtores brasileiros de conteúdo resignaram-se a produzir o que as grandes corporações estrangeiras gostam, da maneira como seus comissioning editors pensam. E estes comissioning editors não são mais que yuppies desinformados que ganharam empregos satisfatórios em Miami e com eles estão moldando a cara da televisão em todo o mundo. Nenhum outro meio, em qualquer outra época, sofreu humilhação maior.

Há um novo cronograma para o início da implantação da TV digital no Brasil, mas é preciso que haja também a consciência do que isso representa para a identidade brasileira.

Na maioria dos lugares onde a TV digital já foi implantada, esta continua repetindo o modelo da TV analógica. É um atraso que por enquanto nos beneficia, porque vai reduzir as conseqüências da demora na definição do nosso sistema. Mas isso não vai durar para sempre.

Na verdade, não estamos falando apenas do aperfeiçoamento tecnológico da televisão, mas do nascimento de um veículo com parte de suas características e que em muito pouco tempo o substituirá. Entre as suas responsabilidades está a da criação de uma grande demanda por um conteúdo específico.

Para os yuppies de Miami, o Brasil é apenas um mercado com 60 milhões de televisores e a televisão em si é uma mercadoria como outra qualquer. Para nós, o Brasil e a televisão podem ser bem mais do que isso.