Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Pequeno manual para vencer na política

‘Até dezembro deste ano, estarão no comando de programas de rádio e de televisão 24,32% dos 74 políticos com mandatos na Câmara Municipal de Manaus, na Assembléia Legislativa, no Congresso Nacional e no Executivo Estadual.’ (A Crítica, Manaus, 06/11/2005)

O voto, no panorama da frágil democracia brasileira, já enfrentou diferentes vicissitudes na sua relação com a comunicação. Quando se pesquisa a história da imprensa no Amazonas, depara-se com o caso do jornal Quo Vadis? (1902-1904). Ele exercitava certa independência com relação ao poder político local e, certa noite, sua sede começou a arder em chamas. Chamado o Corpo de Bombeiros, este não se demorou. Mas o que despertou curiosidade nas pessoas que passavam pelo local é que quanto mais as mangueiras despejavam líquido sobre o fogo, mais as labaredas se espalhavam e ganhavam força. Descobriu-se, depois, que em vez de água despejava-se querosene.

Naquele ano, o chefe político local elegeu seu irmão mais novo para sucedê-lo no governo do Estado e, ele próprio, ganhou um mandato de senador da República. Eram tempos de República Velha, com a Amazônia vivendo o auge do Ciclo da Borracha, em que poucos votavam porque poucos eram os letrados – portanto a imprensa jogava importante papel nesse segmento.

Entre meados dos anos 1950 até 1964, o Amazonas viveu o auge do período chamado de populista, com os governos trabalhistas. Aqui já se defendia o voto do analfabeto e buscava-se ganhar os corações e as mentes pelo clima de intimidação mesclado com a festa. Muita festa. Muito comício. Muita música. Tinha-se a nítida certeza de estar participando de um processo, embora, na verdade, essa participação fosse duvidosa; no máximo, vicária. O rádio desempenhava então um papel primordial.

Depois vieram os militares, com seus modos sisudos, e as campanhas – somente para os parlamentos, nos níveis municipal, estadual e federal – acabaram restritas aos nomes, números e pequena ficha biográfica dos candidatos. Pela televisão, podia-se ver, no máximo, a foto 3 por 4. E nada mais.

Com a redemocratização, já instalado o protagonismo da televisão, inaugura-se nova fase na captação dos votos, inserindo-se, nessa lógica, ainda grande parte das emissoras de rádio. Afinal, a oralidade continuava sendo a alma do negócio no país que tem por tradição o pouco cultivo das letras e das idéias. O populismo deslocava-se da festa para a condição de telespectador. O populismo eletrônico.

Neste artigo pretendo traçar algumas recomendações básicas para um infalível sucesso na política, tomando por base minha condição de telespectador e ouvinte de emissoras de rádio.

Regra nº 1

O leitor pode criar um programa, no estilo Bronca na TV ou Canal Livre e sair surfando sobre o clima de violência e insegurança, transformando-se, ele próprio, enquanto apresentador, numa espécie de ‘comunicador-xerife’. Acompanhado por câmeras, empunhando microfone, pode realizar buscas em casas de jovens da periferia ligados a gangues, os chamados ‘galerosos’, que infernizam a vida já tumultuada de quem vive nessas áreas. Pode também sair em busca do marginal ‘pé-rapado’, procurando reparar, pelo espetáculo midiático, a ausência de um aparato policial que qualquer sociedade minimamente constituída precisa dispor para que a impunidade não se transforme em regra. Precisa, além disso, de dispor de um pequeno discurso sobre a necessidade da moralidade e dos bons costumes (para os outros), sintetizando sua fala com algum fecho grandiloqüente, na linha ‘só a pena de morte pode resolver esse tipo de problema!’.

Regra nº 2

Se sua tendência é para ser um ‘comunicador’ ou ‘comunicadora’ mais light, pode fazer a opção por algo como SOS na TV ou O Povo Fala, ou mesmo adotar um nome à primeira vista inócuo, como Câmera 13, e ali reunir um exército de desesperados e desamparados do quotidiano para desfiarem suas tragédias pessoais. Aparecerá alguém com enfermidade muito grave, mas que não consegue leito em hospital; outro que perambula, há anos, nas filas do INSS; outro mais que tem um parente entrevado no fundo de uma rede; outro ainda, cujo filho, ou filha, ainda bebê, precisa de tratamento em centro de maiores recursos… O pai de família que há meses amarga o desemprego; a mãe que deseja uma vaga como doméstica, tanto faz…

Como ato de piedade, dependendo de sua expressão facial, alguém há de telefonar oferecendo seus préstimos para resolver aqueles exatos problemas que estão sendo mostrados. É prudente, então, pedir uma salva de palmas para o coração generoso que ligou e outros telefonemas se sucederão, oferecendo auxílios para outros desamparados pela sorte. Nada de inserir discussões complicadas da política, como a falência do sistema de previdência e da assistência. Ou sobre o problema do desemprego no país.

Regra nº 3

Se você é jovem, com a beleza natural dos 20 anos, pode muito bem esboçar uma retórica de ‘ajudar os outros’ da mesma faixa – promovendo competições, festinhas e, aqui e ali, entre exaltações das qualidades juvenis, falar ligeiramente sobre a necessidade do primeiro emprego, mas também sem entrar em discussão muito complexa sobre o mundo adverso em que hoje vivemos, cujas maiores vítimas são os próprios jovens entre 15 e 25 anos, sobretudo quando se trata da violência urbana. Estimular esportes radicais, pode crer, é uma boa! Sem muita encucação.

Regra nº 4

Se você tem um grau mínimo de sofisticação, pode encaminhar-se para o formato tipo Sociedade em Questão ou Programa da Esperança. Nada de muita profundidade, que acene com qualquer questão de fundo. Ou mesmo que desperte qualquer esperança. Essa linha também pode fazer você se transformar num campeão de votos, tudo dependendo do charme e da maneira como a câmera o fotografa.

Por fim, se você já chegou ao topo, precisa conservar a posição. E pode entrar com programa do tipo Fala Governador!, na linha do Fala Presidente!. Lembre-se que a reeleição para os executivos é lei.

Regras válidas em todas as opções

Qualquer que seja o modelo de sua opção – e aqui destacamos apenas as principais –, você deve passar uma confiabilidade compungida diante das tragédias da vida amazonense e brasileira. É preciso ter em mente, também, que algumas das características descritas podem ser fundidas e recombinadas, oferecendo ilimitadas possibilidades de triunfos.

Outro ponto essencial é você passar para seu ouvinte, ou telespectador, a imagem de um homem bom, ou mulher igualmente generosa, mas que sabe também mostrar-se em estado de ira na hora de reivindicar punição severa, pena de morte até, para aquele que transgrediu a lei e a ordem. A produção do seu programa precisa ter a sensibilidade para escolher os casos mais chocantes para serem mostrados, ou transmitidos pelo rádio.

Se no decorrer do seu mandato precisar mudar de partido, não deixe de fazê-lo mesmo que isso implique mudar de canal ou de emissora de rádio. Algumas centenas de outdoors nas zonas periféricas da cidade podem indicar seu novo endereço eletrônico.

Já terá ficado subentendido, também, que você não pode perder tempo com desgastantes e chatas análises de conjuntura, nem buscar as causas de problemas, como a da violência urbana, do atravancamento das cidades, do desemprego, ou questões abstratas como distribuição de renda e justiça social. Tudo o que você apresentar precisa vir no concreto, na batata, como dizia Nelson Rodrigues: ao expor as vísceras de um ser em dificuldades, já disse tudo. O impacto é a alma do negócio.

Regra de ouro: estas recomendações finais precisam ser bem observadas; nada de recorrer a conceitos gregos de que a política é a gestão da polis, ou de que a sociedade precisa se organizar para promover mudanças estruturais e conquistar a vida democrática.

Nem pensar!

Cair nessa armadilha pode transformar você, um campeão de votos, num Zé Ninguém qualquer, sem programa de rádio ou televisão. E, pior, sem cadeira no parlamento, sem possibilidade de um dia tornar-se o próprio dono do seu canal; portanto, sem futuro na política e na vida.

E também que fique longe a idéia de querer apagar incêndio com querosene – isso é coisa do passado. Como você já observou, temos, em nossos dias, recursos infinitamente mais persuasivos para impor nossas meias verdades.

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Jornalista e professor do Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia e do Departamento de Comunicação Social da Universidade Federal do Amazonas