Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Por que as emissoras de TV querem o ISDB

O noticiário da grande imprensa sobre a TV digital tem sido marcado pela disputa entre as emissoras de televisão e as operadoras de telecomunicações. A briga existe. Mas, o principal receio das emissoras de TV é outro e, por isso mesmo, tem sido evitado pelos principais jornais e TVs. Chama-se canal de 6 MHz. E você vai entender porque.

Ocorre que, no Brasil, cada canal de TV ocupa um espaço de 6 MHz no espectro eletromagnético. Ou seja, tal como em uma régua, cada canal ocupada seis unidades de MHz. Na TV analógica esse era o espaço necessário para se colocar uma única programação. Assim, quando uma emissora conseguia uma outorga de TV, ela obtinha junto este espaço, a fim de transmitir sua programação. É isso que chamamos de canais de televisão, tanto para o VHF quanto para o UHF.

Na TV digital, neste mesmo espaço, é possível colocar muito mais coisas. Especialmente se o Brasil optar pelo codec de vídeo chamado H 264 (MPEG 4) que permite uma compressão de imagem muito melhor e maior do que o seu antecessor, o MPEG 2. Por exemplo, caso seja usada a definição de imagem chamada standard (imagem igual a de um DVD, sem chuviscos ou fantasmas, com som surround), o mesmo espaço de 6 MHz que antes comportava apenas uma única programação de TV hoje suporta até quatro programações simultâneas e ainda sobra algum espaço para a transmissão de dados (típica dos serviços interativos).

Neste contexto é que surge a proposta de se criar no Brasil o chamado ‘operador de rede’. As emissoras deixariam de transmitir cada uma sua própria programação, a partir de sua antena exclusiva. Elas simplesmente entregariam suas grades de programação para um operador de rede, que reuniria todas as grades de programação e transmitiria tudo junto a partir de uma única antena. Assim, as emissoras não precisariam investir na digitalização de suas torres de transmissão, bastando pagar uma mensalidade para o operador de rede. O que terminaria favorecendo as emissoras menores que dispõem de menos recursos. Ao mesmo tempo, poderia-se pensar em formas de subsídio cruzado, com o operador de rede sendo obrigado a transmitir, sem nada cobrar por isso, as programações das emissoras públicas e comunitárias.

(Claro que este operador de rede teria que ser fortemente regulado, para garantir que todas as emissoras fossem tratadas de forma isonômica e que ele não pudesse exercer nenhum tipo de controle e/ou censura em relação às grades de programação que serão transmitidas)

Mas, fundamentalmente, o operador de rede permite otimizar o espectro eletromagnético. Assim, ele poderia pegar quatro programações diferentes e colocá-las todas dentro de uma mesmo canal de 6 MHz que atualmente transporta apenas uma única programação. Seria uma espécie de reforma agrária do ar. Se uma emissora recebeu do Estado um espaço necessário para transportar a sua programação, mas agora neste mesmo espaço é possível colocar mais emissoras, é justo promover uma redistribuição do espectro eletromagnético, permitindo que mais emissoras passem a existir.

E é exatamente isso que as emissoras comerciais (Globo à frente) não querem.

Segmentação espectral

O projeto da Globo passa, em primeiro lugar, por evitar a adoção do operador de rede. Assim, as emissoras continuariam transmitindo de suas próprias antenas e cada uma permaneceria dona de seu canal de 6 MHz.

Neste canal (agora um imenso latifúndio), a Globo transmitiria três vezes a mesma programação, mas com definições de imagens diferentes (o que chamamos de ‘segmentação espectral’): 1) para aqueles que possuem TVs de alta definição (‘HD ready’, com telas não menores do que 42´´); 2) para aqueles que continuam com suas TVs atuais, mas que compraram terminais de acesso (aquelas caixinhas iguais às das TVs pagas) a fim de receber o sinal digital; 3) para aqueles que assistem TV em movimento (telefones celulares, handhelds ou mesmo pequenas TVs colocadas em carros e ônibus).

Nada de novas emissoras com outras grades de programação. Apenas as mesmas emissoras atuais, com uma imagem muito melhor (para quem puder pagar pelo aparelho) ou assistindo no seu carro.

Mas, não é verdade o que a imprensa tem dito que outros padrões de modulação não permitem que se transmita para recepção em movimento (veja aqui) ou em alta definição. Seria possível fazer o que a Globo quer usando o europeu DVB, por exemplo.

Então, por que a Globo tanto deseja o japonês ISDB?

Porque, com o DVB europeu seria impossível transmitir dentro do mesmo canal de 6 MHz estas três diferentes definições de imagem.

Com o DVB seria perfeitamente viável dividir o canal de 6 MHz em mais de uma programação, colocando outras emissoras, mas o DVB não faz a segmentação espectral. Dentro de um mesmo canal, vai tudo em alta definição ou em definição standard ou em low definition (para recepção em movimento). Caso a Globo quisesse transmitir a sua programação com os três diferentes tipos de definição, ela teria que adotar o operador de rede. Assim, o operador colocaria em alguns canais as programações das emissoras que transmitissem em alta definição, em outros canais as programações em standard e em outros canais as programações para recepção em movimento.

A Globo continuaria mantendo a estratégia comercial de transmitir a sua programação com três diferentes definições de imagem. Mas, e esse é o ponto central de nossa história, seria obrigada a abrir mão do controle do espectro eletromagnético em troca da adoção do operador de rede. E ficaria sujeita ao discurso a favor de uma redistribuição deste espectro para que o operador de rede pudesse colocar no mesmo espaço mais emissoras de TV.

No fundo, a briga é pela propriedade e pelo controle sobre o uso de um dos bens públicos mais escassos das sociedades contemporâneas: o espectro eletromagnético. E não tem nada que ver com receber ou não a imagem em celulares.

SORCER

O mais cruel de toda essa história, contudo, é saber que mesmo que concordássemos com os planos da Globo, seria possível desenvolver a mesma estratégia comercial usando um outro padrão de modulação, o brasileiro SORCER, desenvolvido pela equipe da PUC-RS, que também permite o uso da segmentação espectral.

Então, por que a Globo prefere desenvolver a sua estratégia de controle do espectro eletromagnético usando uma tecnologia importada, que implicaria, em tese, no pagamento de royalties?

A Globo foi dona, durante muitos anos, da subsidiária brasileira da japonesa NEC. Ao mesmo tempo, possui forte relação comercial com outra japonesa, a Sony. No site da revista Produção Profissional podemos ler uma entrevista com o Diretor de Tecnologia da Globo, Fernando Bittencourt, onde este afirma que a Sony já chegou a desenvolver um equipamento de VT especialmente para atender as demandas da Globo.

E aqui podemos juntar outra parte desse quebra-cabeça.

Enquanto a imprensa noticia a disputa por uma fábrica de semicondutores, a Câmara de Comércio Exterior (Camex) publicou no Diário Oficial da União, do dia 25 de fevereiro, decisão de reduzir de 16% para 2% a alíquota do Imposto de Importação sobre três tipos de equipamentos utilizados por emissoras de televisão. Foram incluídos na lista de bens de informática e telecomunicações, na condição de ex-tarifários, aparelhos de mixagem e processamento de sinais de áudio digital, mesas de computação de sinais de vídeo e monitores de forma de onda, que medem a qualidade do sinal de televisão. Também foi renovada a redução, para 2%, da alíquota do Imposto de Importação para monitores de vídeo profissional para estúdios de TV, utilizados em ilha de edição ou unidades móveis das emissoras. A redução ficará em vigor até 31 de dezembro de 2007.

Assim, além de garantir o seu controle sobre o espectro eletromagnético, evitando que novas emissoras entre no ar, a escolha pelo ISDB permite à Globo realizar excelentes acordos comerciais com seus antigos parceiros, sob a benção do governo que reduz os impostos de importação.

Agora que sabemos o que as emissoras comerciais, especialmente a Globo, ganham com a adoção do ISDB, resta saber o que eu, você e o restante da população perdemos com isso.

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Jornalista, mestre em Comunicação, coordenador-geral do Instituto de Estudos e Projetos em Comunicação e Cultura (Indecs) e integrante do Coletivo Intervozes