Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

‘Rádio comunitária é transferência de poder’

Entrou em vigor no dia 24 de junho, em São Paulo capital, a lei municipal que regulamenta os Serviços de Radiodifusão Comunitária. O prefeito José Serra sancionou a Lei nº 14.013, que dá direito às rádios comunitárias de operarem legalmente, mesmo sem concessão federal – o que, segundo pesquisas, só se obtém com padrinhos políticos [ver remissão abaixo]. A nova lei é fruto do Projeto de Lei 145/2001, dos vereadores Carlos Neder (PT), atualmente deputado estadual, e de Ricardo Montoro (PSDB), com ajuda do juiz federal aposentado Paulo Fernando Silveira, especialista no tema.

O juiz é autor do livro Rádios Comunitárias (Editora Del Rei), no qual esclarece questões técnicas – derruba inclusive mitos como o de que a freqüência da rádio comunitária derruba aviões. Também elucida supostos conflitos legais. Para ele, a rádios comunitárias têm sido fechadas pela Polícia Federal por uma leitura incorreta da Constituição. O artigo 22 dá ao Congresso Nacional e ao Poder Executivo o direito de legislar sobre radiodifusão, mas está no artigo 30, inciso primeiro, que todo assunto local é competência do município. ‘Portanto, a União está usurpando a competência municipal’.

‘Todo indivíduo tem o direito de se comunicar sem autorização do governo’, defende o juiz na entrevista que se segue. Ele considera muito sadio e importante para o povo e a democracia que uma cidade tenha várias rádios comunitárias, porque fica difícil para o governo local controlar todas elas. Sobre a nova lei paulistana, afirma: ‘Estamos fazendo a maior transferência de poder político da história, desde a República.’

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Como sustentar esta lei municipal de São Paulo, já que a mesma está sendo considerada inconstitucional?

Paulo Fernando Silveira – Essa lei é o resultado de um trabalho que iniciamos em Uberaba, em 1996. Eu, como juiz federal da região, abrangendo mais de 50 cidades, comecei a dar as liminares a favor das rádios comunitárias, porque, na época, não existia lei alguma disciplinando essas rádios. E, por sua vez, o MEC se recusava, normalmente, a conceder as outorgas. Depois, veio a lei de 1998, uma lei federal, regulamentando as rádios comunitárias. Mas essa lei é inconstitucional. E aí eu apresentei um projeto de lei, municipalizando a outorga das rádios comunitárias. Fiz debate no país inteiro, desde Porto Velho, passando por Fortaleza, João Pessoa, Salvador, Rio de Janeiro, Florianópolis, Santa Catarina, Belo Horizonte, São Paulo, entre outros. E debati também o assunto no Senado Federal, na Câmara dos deputados e em algumas universidades. Em todo o lugar debatemos o assunto para apurar a verdade.

Escrevi um livro chamado Rádios comunitárias, onde abordo dois pontos fundamentais: a instalação de uma rádio é um direito fundamental. Ou seja, todo indivíduo tem o direito de se comunicar sem autorização do governo. Nós temos o direito de trocar idéias, de informar e de sermos informados adequadamente. O Estado não pode intervir nesse direito fundamental. Se uma pessoa quiser abrir um jornal, não precisa de autorização do governo, e nem o governo pode proibir ou exigir concessão para autorizar a abertura de um jornal. E numa rádio comunitária é semelhante, a única diferença é que o governo, nesse caso, tem o direito (e deve mesmo) coordenar para que todos usem os sinais adequadamente, para um não interferir no outro. Então, a função do governo é meramente administrativa, apenas de coordenar o uso comum do espectro eletromagnético. Infelizmente, aqui no Brasil aconteceu o inverso. O governo se apropriou desse direito e passou a decidir se concede, a quem concede, quando concede ou se engaveta o processo. Passou a ser dono, inverteu. Em vez de ser apenas um administrador de um direito público usa a concessão, normalmente, como meio de troca nas votações do Congresso. De modo que isso está ferindo a Constituição Federal, que coloca claramente a comunicação entre os direitos fundamentais do indivíduo.

Só para dar uma idéia do que é um direito fundamental, semelhante à informação, num exemplo bem simples: existe um rio e nós, como seres humanos, precisamos tomar água. Então, todos nós temos o direito fundamental de ir ao rio e beber água. O governo não pode dizer que só pode beber água a pessoa que obtiver uma concessão, ou seja, quem não tiver a concessão é clandestino ou criminoso. Porque, neste caso, está invertendo a situação. O direito de ir tomar água é fundamental e é nosso, não é do governo.

Mas o governo interfere…

P.F.S. – É que o governo tem o direito de administrar o modo de beber água. Por exemplo, se alguém está tomando água ‘em baixo’ e outra está jogando esgoto ‘em cima’, o governo pode disciplinar, dizendo que todos podem tomar água ‘em cima’ e o esgoto será na parte ‘de baixo’. Ou então, que todos vão tomar água em casa, porque colocará uma companhia levando água até sua casa, mediante pagamento de uma taxa, isso é lícito o governo fazer. Porém, não pode impedir uma pessoa de beber água, porque, senão, fere um direito fundamental que é o direito à vida.

E ocorre o mesmo com as rádios comunitárias…

P.F.S. – Com as rádios comunitárias é a mesma coisa, nós temos o direito de informar, de sermos informados, de instalar rádios. Principalmente nas pequenas cidades, onde não há rádio nenhuma, o povo fica na ignorância, no analfabetismo, sem informação alguma. Inclusive, controlado politicamente pelos ‘coronéis’. Essas rádios são de suma importância para poder fornecer informações verdadeiras e diversificadas. Em algumas pequenas cidades, mesmo quando há jornais, às vezes os jornais são ‘chapa-branca’. Há uma aliança muito forte desses órgãos da imprensa como o governo. A população acaba não tendo acesso a uma informação de fonte diversificada, para poder tirar uma conclusão lógica e correta dos fatos. Aqui no Brasil, o MEC passou a ser o dono, concede a quem quer, ninguém fica sabendo quem são e por quais motivos obtiveram a concessão.

E o segundo ponto tratado no seu livro?

P.F.S. – É o seguinte: se o governo tem o poder de interferir no direito fundamental, apenas para facilitar o uso comum, para um não prejudicar o uso do outro, qual esfera do governo é competente para isso? A federal, a estadual ou a municipal? A Constituição Federal fala no artigo 30, inciso primeiro, que todo assunto local é competência do município. Como a rádio comunitária é de pequena potência e alcance restrito, não envolve interesse nacional para justificar a atuação da União. O Brasil adota o princípio federalista, pelo qual o poder político é dividido entre três esferas governamentais.

O poder exercido pelo município deve ser submetido ao poder federal?

P.F.S. – Muita gente acha que uma lei federal vale mais do que uma municipal, não é verdade. Pela nossa Constituição, cada ente político tem a sua esfera de atuação e o outro não pode invadir. No caso das rádios comunitárias, a União está usurpando a competência municipal, invadindo e tomando o poder legislativo municipal. Isso está bem claro na Constituição, artigo 30, inciso primeiro.

E o artigo 22?

P.F.S. – Alguns vêm argumentando com o artigo 22, que diz que compete, privativamente, à União legislar sobre radiodifusão e telecomunicação. É verdade, mas naquilo que for da esfera de competência dela, observado o princípio federalista. Do contrário, estaria anulando o artigo 30, inciso primeiro. O princípio vale mais do que a norma, do que a regra. Toda vez que houver conflito de regras temos que observar o princípio. E o princípio diz o seguinte: em todo assunto nacional, ou envolvendo mais de um estado, a competência é da União. Por exemplo, comércio interestadual, bancos. Mas tudo que é assunto regional é do estado-membro da Federação. Todo assunto local, que não envolva interesse nacional nem estadual é do município, está muito claro. É só uma questão de leitura correta da Constituição Federal. A Constituição diz que todo direito fundamental é auto-exercitável, não depende de lei. O governo, para interferir nesses direitos fundamentais, é quem tem que justificar que tem um motivo justo para atuar no interesse da comunidade.

As ondas do rádio não ultrapassam as fronteiras do município?

P.F.S. – A lei federal estipulou em 25 Wats, tem município em que é o suficiente. Outros, como São Paulo, precisam de 200 Wats para poder alcançar todo o território. Em princípio, as rádios vão se circunscrever ao município. Como ela é aérea, pode até ultrapassar o município, mas não causa prejuízo ao município vizinho. Cada um tem a sua faixa.

É possível um município ouvir rádio comunitária de outro município?

P.F.S. – É possível, como eu, aqui em Uberaba, posso ouvir uma rádio comunitária aí do Rio de Janeiro, quando de alta potência.

Mas, nesse caso, na lei, sendo municipal, não existe um equívoco? Se eu posso ouvir a rádio comunitária não apenas no município…

P.F.S. – Não. Você não pode prejudicar um direito sem que haja prejuízo. Se o município vizinho tiver algum prejuízo, o conflito entre os dois municípios será resolvido pelo estado-membro, por lei estadual, delimitando como resolver aquele conflito, se, eventualmente, acontecer. De um modo geral, não acontece, porque cada rádio tem seu número, sua faixa. Ouve quem quer ouvir.

Outra coisa que qualifica o município a legislar sobre o assunto é o relevo. Numa rádio comercial de alta potência, que vai atingir vários estados, o relevo é de pouco interesse. Se numa cidade não pega bem, na outra vai pegar, o objetivo é nacional. Por exemplo, uma rádio do Estado do Rio ou de São Paulo de alta potência eu posso ouvir bem aqui de Uberaba, mas, numa cidade vizinha, pode não pegar tão bem. Quanto a uma rádio de pequena potência e alcance restrito, como é o caso das rádios Comunitárias, o relevo é fundamental. Neste caso, só o município sabe e pode determinar onde devem ser colocadas as antenas e qual a altura máxima permitida. Uma rádio de pequena potência não atravessa montanhas. Então, é o município que deve determinar a altura da antena, a localização, o direcionamento e a quantidade de antenas permitida para cobrir o território do município.

O espectro eletromagnético que permite as rádios veicularem é limitado?

P.F.S. – Esse argumento já foi, tecnicamente, rebatido. Esse assunto que o espectro não comporta já foi debatido, inclusive, nos Estados Unidos e consta no meu livro. Hoje, com a tecnologia moderna, dá para, numa cidade moderna, como o Rio de Janeiro e São Paulo, colocar 200 ou 300 rádios, sem nenhum problema.

E quanto ao argumento do excesso de rádios comunitárias poder derrubar aviões?

P.F.S. – Falavam até isso, que as rádios comunitárias derrubam avião, e, com esse argumento tolo, tentavam desmerecer e deixar de outorgar um direito fundamental. Em meu livro, eu explico tudo tecnicamente, procurei peritos para mostrar que não derruba por diversos motivos: o avião é como uma caixa fechada, não recebe ondas. Ao contrário, a hora em que ele quer entra em contato com as torres. Outra coisa, as faixas das rádios comunitárias vão até 108, as torres operam acima de 111. Se uma rádio pudesse derrubar avião, as rádios comerciais teriam muito mais chances de fazê-lo, porque são de alta potência. Esse argumento não é científico, não têm fundamento algum. No entanto, muitos juízes mandam apreender as rádios usando esse argumento, sem justificarem, não pedem uma perícia para provar isso.

Então, podemos dizer que a barreira é exclusivamente das rádios comerciais?

P.F.S. – Aí há dois interesses. O interesse financeiro e o político. O financeiro é que toda prefeitura, todo estado e a União têm verbas publicitárias. E as rádios comerciais já implantadas não querem a concorrência das rádios comunitárias na participação nem da verba publicitária do governo e nem da concorrência de clientes como comerciantes. Por exemplo, numa rádio comunitária o comerciante do bairro pode fazer uma propaganda do seu comércio, pagando 10 ou 20 vezes menos que numa rádio comercial. Eles não querem isso, porque a rádio comunitária é de alta eficiência, já que é de baixo custo operacional. Esse é o motivo financeiro (de governo e de concorrência). E tem o motivo político. As rádios, principalmente em cidades pequenas, fazem o político. Há uma simbiose muito grande entre o governo e a imprensa local. Podendo deter cargos no governo por influência política e participação na verba pública e, ao mesmo tempo, ajudar a fazer aqueles candidatos que o governo quer que sejam apresentados à sociedade como os melhores; além de não denunciar os erros de administração.

Tendo várias rádios comunitárias (em Uberaba chegamos a 24) é muito difícil para o governo municipal controlar e dominar todas elas, de modo que o cidadão sempre terá alternativas para reclamar em alguma rádio, ou alguma rádio denunciar uma má administração. Isso é muito sadio e importante para o povo e a democracia.

Em São Gonçalo (RJ), apesar de o município ser protegido por uma lei municipal como esta de SP, houve rádios comunitárias fechadas…

P.F.S. – Isso é porque está havendo abuso de autoridade. O prefeito, quando assume o cargo, o faz com o compromisso de fazer cumprir as leis municipais, sob pena de impeachment. Então, compete ao prefeito não deixar nem o governo federal nem a Anatel fecharem as rádios, colocando a guarda municipal protegendo. Porque a questão passa a ser um conflito de normas entre a lei municipal e a lei federal, que tem que ser resolvido no Judiciário. Ninguém tem o poder de dizer que a sua lei vale mais que a do outro. Então, a polícia federal e a Anatel não podem desrespeitar a lei municipal.

Em Uberaba, o Ministério Público Federal requereu ação cautelar e a juíza federal deferiu para fazer apreensões às rádios. E, como tinha uma ordem judicial, as apreensões foram feitas. Mas, a Câmara Municipal reagiu e fez uma monção de repúdio ao ato da juíza federal e do procurador da república e publicou nos jornais locais esse ato de repúdio. Há várias formas de lutar contra o abuso.

Já que uma rádio comunitária não pode ter fins lucrativos, o que significa, segundo a lei, no raio de 1 km ela poder interagir com o comércio?

P.F.S. – Sem fins lucrativos não quer dizer que não tenha que ganhar algum dinheiro não… Por exemplo, algumas universidades particulares, como a Uniube, de Uberaba, não têm fins lucrativos, no entanto recebem verbas federais de apoio a bibliotecas, ampliação de campus. E ainda cobram mensalidade dos alunos. Como uma rádio comunitária vai sobreviver, comprar equipamentos, pagar aluguel, luz, água, os funcionários, assinar carteira de trabalho? Como ela vai fazer se não vender publicidade em forma de apoio cultural para os comerciantes? Sem fins lucrativos, hoje, pela nossa Constituição e pelas leis, é só para efeito fiscal. Por exemplo, essas entidades filantrópicas, sem fins lucrativos, para terem direito à isenção de impostos federais, estaduais, INSS, têm critérios a seguir, mas é só a fim de obtenção de recursos públicos ou isenção de impostos.

Essa lei municipal funciona como saída, tendo em vista que as rádios comunitárias que conseguem a concessão têm um apadrinhamento político…

P.F.S. – No Brasil, a regra é essa. Nós estamos fazendo, pela primeira vez na história do país, a maior dispersão do poder político. Durante a Monarquia, até 1889, todo o poder político estava concentrado no imperador. Depois, com a República (em 1889) esse poder, que era monolítico, foi fatiado de duas formas: verticalmente, em três pedaços (Executivo, Legislativo, Judiciário). Três pedaços que deveriam ser iguais, mas, no Brasil, não o são, o Executivo pegou quase a metade do bolo. A segunda forma de fatiar é no sentido horizontal (União, estado, município), ou seja, dividir o poder político. Nenhuma pessoa, ou grupo de pessoas teria poder demais para assumir o poder pela ditadura. Mas, como nós viemos de uma monarquia, de um Executivo muito forte, a nossa história está cheia de golpes de estado (Estado Novo do Getúlio Vargas – 15 anos de ditadura; depois o golpe militar de 64). A nossa história é toda de ditadura, porque o Executivo domina tudo.

Aí está o problema, a União Federal quer dominar até as rádios comunitárias, o que é assunto municipal. Nós estamos fazendo a maior transferência de poder político da história, desde a República. Ou seja, estamos tirando de Brasília esse poder de concessão e distribuindo por todos os municípios do Brasil, independentemente da coloração partidária. Cada município vai baixar a sua lei, estipular as suas regras de rádios comunitárias e terá como fiscalizar se elas realmente são comunitárias, exercem funções beneméritas, culturais… Essa fiscalização tem que ser de perto, porque não se controla o que está acontecendo em Brasília, mas o que está acontecendo na sua cidade, principalmente numa cidade pequena. Fica mais fácil saber quem pegou uma rádio, se aquela rádio é filantrópica, benemérita, cultural, ou não.

Precisamos fazer as coisas ficarem mais próximas do povo, para o povo controlar o governo. Deixar de ficar tudo em Brasília e o resto do país ficar inerte, parado, esperando decisões de Brasília. Cada município tem que ser um laboratório particular, onde testa uma lei. E, se não der certo, só prejudica o município, o resto do país não é prejudicado. E, se der certo, é copiada pelo resto do país. Toda lei federal que sai de Brasília ou atrapalha, engessa, prejudica o Brasil inteiro, ou beneficia o Brasil inteiro. Numa federação temos que dividir o poder.

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Estudantes de Jornalismo das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha), Rio de Janeiro