Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Radiodifusores comemoram decreto de Lula

Em 29 de junho, durante a Copa do Mundo, e dias após ser obrigado pela legislação eleitoral a se assumir candidato à reeleição, o presidente Lula assinou o Decreto 5.820/06 que implanta o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (VHF e UHF).

O que o Decreto diz

O pequeno Decreto que implanta a TV digital aberta no Brasil apresenta poucas definições e remete boa parte das medidas a serem tomadas para uma futura regulamentação, mas as duas principais reivindicações dos radiodifusores são uns dos poucos itens que estão bem definidos no Decreto.

O Decreto determina que o Brasil será o segundo país do mundo a usar a tecnologia japonesa ISDB. Antes dele, apenas o Japão empregava tal modulação. Este foi um pleito das emissoras que alegavam que o ISDB tinha se saído melhor nos testes de campo realizados pela Universidade Mackenzie (embora nenhum dos três padrões testados tenha conseguido ser captado por 100% dos pontos de recepção) e que somente o ISDB era capaz de segmentar o espectro (escondendo que a tecnologia brasileira chamada Sorcer também realizava o mesmo processo). Na verdade, o ISDB permite manter a estreita relação comercial entre a maior emissora brasileira e os fornecedores japoneses de equipamentos eletrônicos (especialmente NEC e Sony).

O ponto mais polêmico do Decreto é a ‘consignação’ de uma faixa extra de espectro para cada emissora (geradora e retransmissora) existente. A figura da consignação pressupõe que se trata do mesmo serviço prestado pela TV analógica, que agora demandaria uma faixa extra para continuar a ser oferecido. Na prática, contudo, o Decreto permite que novas outorgas sejam dadas aos atuais radiodifusores sem que a decisão passe pelo Congresso Nacional. Isso porque alta definição, multiprogramação e interatividade claramente constituem um novo serviço, diferente da atual radiodifusão analógica.

Se cada emissora receber uma outorga nova (agora disfarçada de ‘consignação’ de faixa extra do espectro), segundo o Plano Básico de Distribuição de Canais de Televisão Digital (PBTVD), da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e citado pelo próprio Decreto, não haverá espaço para novos canais de TV durante o processo de transição (que o Decreto prevê que dure 10 anos) pelo menos nas áreas metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro.

O Decreto também menciona que a União ‘poderá’ explorar quatro canais de TV, sendo um para o Executivo, outro para educação, um para cultura e um ‘de cidadania’. O uso do verbo ‘poder’ (e não de ‘dever’) claramente se remete ao fato de que não haverá espaço para estes canais nas principais áreas metropolitanas do país. Segundo o texto do Decreto, tais canais serão geridos pela União e à sociedade civil caberá apenas dividir o canal ‘de cidadania’, desde que a entidade que deseje participar seja aprovada por convênio do Ministério das Comunicações (que, portanto, terá o poder de definir quem terá acesso ao novo canal). As TVs Senado, Câmara dos Deputados, das assembléias legislativas e das câmaras de vereadores também terão que dividir o mesmo espaço no canal ‘de cidadania’.

Por fim, o Decreto menciona a criação do Fórum do SBTVD que assessorará o Comitê de Desenvolvimento (formado exclusivamente por membros do governo) na definição de quais inovações tecnológicas brasileiras serão incorporadas à TV digital brasileira. Fazem parte deste fórum os radiodifusores, a indústria e a academia. E fica excluída a participação da sociedade civil.

O que o Decreto não diz

Além das suas polêmicas definições, o Decreto 5.820/06 também apresenta uma série de lacunas.

Apesar de já se definir pela escolha da modulação japonesa, o Decreto nada menciona sobre quais tecnologias nacionais serão incorporadas (embora fique óbvio que as pesquisas brasileiras em modulação serão desperdiçadas, em troca da adoção da modulação japonesa).

Também não há definições sobre a política industrial que tornará possível a TV digital no Brasil. Não ficou definido se (e como) haverá transferência de tecnologia e os critérios para pagamento de royalties. Nem mesmo a tão falada fábrica de semi-condutores foi mencionada.

Mantidas as atuais regras brasileiras de política industrial (conhecidas como Processo Produtivo Básico), criadas no governo Collor e em funcionamento até hoje, o Estado tende a permitir (e até mesmo estimular, por meio de isenção fiscal) a instalação de simples ‘maquiladoras’, cujos laboratórios permanecerão no Japão.

Tudo ficou para ser definido posteriormente, a partir de um acordo entre os dois países que o governo Lula ainda não tornou público, mesmo depois da solicitação oficial dos deputados Orlando Fantazzini (PSOL-SP) e Luiza Erundina (PSB-SP).

Por que o ISDB?

O primeiro Decreto editado no governo Lula sobre a TV digital (4.901/03) mencionava a existência de um relatório a ser produzido pelo Comitê de Desenvolvimento do SBTVD, que teria, entre outras, a função de justificar a escolha de um padrão de TV digital para o país. O novo Decreto, porém, determina a escolha do ISDB sem que este relatório jamais tenha sido divulgado.

O único teste realizado entre as três modulações então existentes (norte-americana, européia e japonesa) jamais foi considerado conclusivo, nem mesmo pela Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel), que o havia encomendado. Por isso, inclusive, o Plano Básico de Distribuição dos Canais de Televisão Digital (PBTVD) trabalha com as três hipóteses de escolha para a modulação, sem eliminar nenhuma.

Posteriormente, o próprio governo financiou pesquisas sobre modulação, que produziram dois resultados expressivos, tanto na PUC-RS (Sorcer) quando no Inatel (SBTVD-MI). Porém, jamais foram feitos testes para a comparação entre as soluções brasileiras e os padrões estrangeiros.

Como o atual Decreto também não possui uma exposição de motivos (como seria comum nestes casos), resta a dúvida sobre quais motivos levaram à escolha do ISDB japonês.

Multiprogramação

Como o Decreto entrega todo um novo canal para cada emissora existente e não menciona a proibição à multiprogramação, nada impede que os radiodifusores ocupem este espaço com várias programações simultâneas. Assim, ao invés de termos um canal ocupado por quatro novas emissoras, poderemos ter 4 Bandeirantes, 4 RedesTV, 4 CNTs, 4 Records, 4 SBTs e 4 Globos, por exemplo. Ao invés de diversidade, mais do mesmo.

Interatividade

O Decreto prevê que as emissoras usem a interatividade como um serviço de valor agregado às suas programações, mas não obriga que esta interatividade seja gratuita. O que significa permitir que as emissoras façam acordos com as operadoras de telecomunicações em torno do acesso ao canal de retorno pago, criando, em relação à TV aberta, dois tipos de cidadãos: aqueles que podem pagar pela interatividade e aqueles que continuarão com uma TV unidirecional.

Toda a gama de novos serviços que poderiam estar disponíveis na TV digital (como educação à distância, tele-medicina, e-mail, e-gov e e-bank, por exemplo) terá que dividir espaço com as emissoras dos poderes públicos e as entidades da sociedade civil no canal chamado ‘de cidadania’. E apenas nas cidades onde houver espaço disponível no espectro de UHF.

Conclusão

O Decreto 5.820/06, que procura implantar a TV digital no Brasil, pode ser resumido em poucos pontos.

Ele contempla as principais demandas dos radiodifusores, garantindo a permanência do oligopólio privado pelo menos nos próximos dez anos (período de transição).

Ao mesmo tempo, o governo Lula acena com migalhas para os pesquisadores e para a sociedade civil que demandava a democratização da TV brasileira, sinalizando a aliança estratégica deste governo com os radiodifusores privados.

Resta saber, agora, qual será a posição dos movimentos sociais que lutam pela democratização das comunicações.