Tuesday, 19 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1279

Rastreamento de dinheiro leva ao ninho tucano

Políticos e seus assessores nas campanhas eleitorais devem estar debruçados sobre o relatório de 172 páginas datado de 4 de julho passado e assinado pelo delegado Luís Flávio Zampronha de Oliveira, da Polícia Federal, mas que só veio a público graças ao Consultor Jurídico). Os políticos espertos estarão em busca das falhas da campanha de reeleição do governador Eduardo Azeredo, em 1998. Falhas que possibilitaram o indiciamento em crimes de peculato de Marcos Valério e seus sócios nas empresas de publicidade SMP&B e DNA e de presidentes e diretores de estatais mineiras importantes, além de alguns de seus assessores de imprensa, que começaram a carreira em jornais mineiros e em sucursais de jornais de outros estados.


O relatório, porém, está incompleto, como admite o próprio delegado Zampronha, que, na página 172, sugere ao Ministério Público Federal, na pessoa do procurador-geral da República, a necessidade de realização de quatro providências, entre elas a quebra de sigilo da Samos Participações Ltda., empresa do ministro das Relações Institucionais, Walfrido dos Mares Guia. Para jornalistas e donos de empresas jornalísticas de Minas, no entanto, a providência que deve mais chamar a atenção é a segunda:




‘2. A continuação do rastreamento da trilha do dinheiro (paper trail) recebido por Amadeu Machado Filho, indicado como beneficiário do cheque compensado no dia 01/09/1998 no valor de R$ 242.271,17, e por Valter Eustáquio Cruz Gonçalves, que recebeu três cheques da SMP&B Comunicação, dois no valor de R$ 420.000,00, nos dias 08/09/1998 e 29/09/2006, e outro, em 20/08/1998, no valor de R$ 280.000,00, perfazendo o total de R$ 1.120.000,00, devendo ser solicitado o afastamento do sigilo bancário das contas onde foram depositadas tais quantias visando à análise de suas movimentações’.


Prática comum


A atenção de editores e donos de empresas jornalísticas, evidentemente, não está no erro de digitação do ano da emissão do cheque (1998, e não 2006), mas nas conseqüências que tais investigações podem ter para eles. Muitos receberam dinheiro no caixa 2 sem contabilizar – e, às vezes, até sem que outros dirigentes da empresa ficassem sabendo – para publicar releases feitos pela campanha de Azeredo. Tudo indica que tais repasses foram feitos por Valter Cruz, um conhecido agenciador de anúncios de Belo Horizonte.


Aqueles cheques não foram depositados pela SMP&B na empresa de Valter Cruz, mas na conta pessoal dele no Bank Boston, agência 16, conforme admitiu em depoimento na Polícia Federal, que estava rastreando onde havia sido gasto o empréstimo de R$ 9 milhões tomado pela DNA Propaganda no Banco Rural. Diz o relatório: ‘O próprio Marcos Valério, referendado por Cláudio Mourão (responsável financeiro pela campanha de Azeredo), admitiu que tal empréstimo foi destinado à campanha de reeleição do governador Eduardo Azeredo.’ Segundo o relatório, Valter ‘não diz a verdade’ ao responder que não se recorda de tais repasses, ‘mas que provavelmente sejam em razão de suas relações comerciais com a SMP&B’.


É uma prática relativamente comum, na imprensa mineira, sobretudo no jornal Estado de Minas, cobrar dos comitês eleitorais para publicar notícia sobre os candidatos. Pessoas de dentro do Estado de Minas me informaram que, no ano passado, o jornal de Assis Chateaubriand (que na década de 1950 cobrou uma fortuna do governador paulista Adhemar de Barros para publicar o lançamento de sua candidatura à Presidência da República em seus jornais, conforme se lê em Chatô, o Rei do Brasil, do jornalista Fernando Morais) deixou de fazer essa cobrança dos políticos. Se verdadeira a informação, é um bom resultado da investigação que vinha sendo feita pela equipe do delegado Zampronha.


Lavagem de dinheiro


Espera-se que o ministro Joaquim Barbosa, do Supremo Tribunal Federal, a quem é dirigido o relatório do delegado Zampronha, tenha concedido um prazo maior para o aprofundamento das investigações e também para a correção de algumas falhas evidentes.


Por exemplo, em nenhum momento o relatório tipifica os crimes em que poderiam ter incorrido o senador Eduardo Azeredo e o ministro Walfrido dos Mares Guia, embora o faça em relação a outros investigados. Diz, por exemplo, que incorreram no crime tipificado no art. 312 do Código Penal sete dirigentes da estatal Comig, três da Copasa, seis do Grupo Bemge, seis da Cemig, seis da SMP&B e DNA, entre outros, incluindo aí pessoas registradas como jornalistas profissionais no Ministério do Trabalho, mas que exerciam o cargo de secretário de Comunicação Social do Governo (Eduardo Guedes) na época da campanha, ou de assessoria de imprensa na Cemig (Francisco Stheling Neto, Luiz Henrique Michalik e Donaldo Dinardi) e na Copasa (Henrique Bandeira de Melo).


Nessa questão de possíveis crimes praticados, o que mais se destaca no relatório é a presidente do Banco Rural, Katia Rabello, que ‘deve ser enquadrada no crime de gestão fraudulenta tipificado no art. 4º da Lei 7.492/1986’. E vai mais longe, o delegado Zampronha, ao dizer: ‘Realmente, deve ser considerado que o Banco Rural é uma instituição voltada para a prática de crimes, principalmente a lavagem de dinheiro, sendo imperioso que suas atividades sejam, imediatamente, suspensas…’


Para o delegado, ‘constatou-se a existência de complexa organização criminosa que atuava a partir de uma divisão muito aprofundada de tarefas, disposta de estruturas herméticas e hierarquizadas, constituída de maneira metódica e duradoura, com o objetivo claro de obter ganhos os mais elevados possíveis através da prática de ilícitos e do exercício de influência na política e economia locais’. Ele acha que ficou demonstrada a similitude da técnica de lavagem de dinheiro usada por Marcos Valério no mensalão e na campanha eleitoral de Azeredo.


Os métodos da quadrilha


Em ambas, os recursos repassados a partidos políticos tinham sua origem justificada por empréstimos obtidos em instituições financeiras de Minas Gerais. Os laudos periciais contábeis das agências de publicidade SMP&B e DNA, das quais Marcos Valério era sócio, comprovam que elas eram usadas com o fim de promover ‘a lavagem de ativos financeiros apropriados por agentes públicos, com largo emprego de falsificações, simulações, fraudes e omissões em seus registros comerciais e fiscais’, escreveu o delegado.


O relatório mostra como tucanos e pefelistas bem postos na política mineira se valeram da expertise de um ex-bancário travestido de publicitário para montar um esquema de lavagem de dinheiro, com o objetivo de obter dinheiro para a campanha de reeleição do governador Eduardo Azeredo (PSDB), em 1998. A quadrilha teria levantado pelo menos R$ 28 milhões de empresas estatais, de recursos do Tesouro Estadual e de empresas privadas, para amargar, no fim, um retumbante fracasso nas urnas.


Além do senador Azeredo, que conseguiu se eleger em 2002 e chegou a presidente nacional do PSDB – cargo a que renunciou quando Marcos Valério se tornou o mais conhecido carequinha brasileiro, em 2005 –, o relatório deixa mal o ministro Walfrido dos Mares Guia, que era vice-governador em 1998, e outros políticos e empresários mineiros.


O delegado Zampronha diz que a quadrilha usava dois métodos para desviar recursos públicos para a campanha: 1. patrocínios fictícios de eventos esportivos realizados pelas estatais Copasa, Comig e Grupo Bemge; 2. simulação de gastos publicitários da Cemig, cuja agência era a SMP&B.


Legitimar custo da campanha


Marcos Valério também realizou, em 1998, procedimentos ilícitos junto à Fundação Jorge Duprat Figueiredo de Segurança e Medicina do Trabalho (Fundacentro), vinculada ao Ministério do Trabalho, ‘utilizando a mesma técnica de branqueamento de fundos desviados através da prestação de serviços publicitários inexistentes ou superfaturados’, segundo Zampronha.


A investigação começou depois que o ministro Nelson Jobim, então no Supremo Tribunal Federal, determinou o desmembramento do Inquérito nº 2280-2/140-STF, que apurava o mensalão, de forma a abranger o período iniciado em 1998, quando Marcos Valério se revelou um competente operador do mercado interbancário de lavagem de dinheiro.


Segundo o relatório, a estrutura político-eleitoral criada em 1998 por Eduardo Azeredo para disputar a reeleição precisava implementar um esquema que visasse legitimar todo o capital reunido para custear a campanha. ‘No caso analisado, tratavam-se de fundos públicos desviados das administrações direta e indireta do estado de Minas Gerais e de valores repassados à coligação eleitoral por empresários, empreiteiros e banqueiros com interesses econômicos junto ao poder público do Estado’, diz o delegado Zampronha.


Caso da Fazenda Santa Rosa


De acordo com o relatório, Marcos Valério entrou na SMP&B juntamente com Clésio Andrade, que era presidente do PFL mineiro e candidato a vice-governador na chapa de reeleição de Eduardo Azeredo. ‘Seu ingresso foi estruturado com base em operação de crédito irregular junto ao Credireal’, diz Zampronha, que cita um inquérito em andamento na Superintendência da Polícia Federal em Minas (Inquérito Policial nº 934/2005).


Em maio de 1996, o governo de Minas assinou com a SMP&B um contrato por meio do qual ela se tornaria a principal agência de publicidade dos órgãos da administração direta e também da Cemig, a maior estatal mineira.


Menos de dois meses depois, no dia 26 de junho de 1996, o Credireal, que estava em processo de privatização pelo governo Eduardo Azeredo, emprestou à SMP&B um total de R$ 1.674.150,00. Passados mais 14 dias, Clésio Andrade se tornou sócio dessa agência de publicidade.


O encadeamento dos fatos não pára aí. Alguns meses antes, Marcos Valério e os dois donos da SMP&B, Cristiano Paz e Ramon Cardoso, compraram do pai de Clésio Andrade, por R$ 140 mil, a Fazenda Santa Rosa, em Juatuba, a 40 quilômetros da capital. Essa fazenda foi dada em outubro de 1996 ao Credireal como pagamento daquele empréstimo. Ela foi avaliada pelo banco em R$ 2.422.783,00.


Nem Newton Cardoso, quando governador na década de 1980, conseguia lucrar tanto com a compra de fazendas em Minas…


Cemig, Copasa e Comig


Marcos Valério teria pago a Clésio Andrade R$ 1.154.000,00 para comprar a participação acionária dele na SMP&B e DNA. Pelo menos, essa foi a explicação ouvida pela Polícia Federal para o depósito daquela quantia, feito em 1998 pela SMP&B na conta do Instituto João Alfredo de Andrade Ltda., de propriedade de Clésio. Outros R$ 545 mil foram depositados, com o mesmo objetivo, na conta da Carbo Cia. de Artefatos de Borracha Ltda., da qual Clésio é sócio. A Carbo obteve, entre julho e agosto de 98, R$ 5 milhões em empréstimos do Banco Rural, com aval de Marcos Valério e Clésio, segundo a CPI dos Correios. (Para quem não sabe, Clésio preside há 14 anos a Confederação Nacional de Transportes, para a qual é reeleito por aclamação.)


Nessa altura, a lavanderia de dinheiro montada por Marcos Valério já funcionava sem tempo ocioso. Segundo o relatório de Zamprona, a análise feita pelo Instituto Nacional de Criminalística (INC) da Polícia Federal identificou 27 empréstimos tomados pela SMP&B e DNA, em 1998, na operação de branqueamento de capitais. As investigações indicam que ao menos R$ 28 milhões 515 mil foram transferidos por Marcos Valério para a coordenação financeira da campanha de Eduardo Azeredo, ‘após serem submetidos ao processo de legitimação conduzido pelo empresário’.


O INC, segundo o relatório, identificou recursos desviados das estatais e usados na campanha de Azeredo. Os valores comprovados seriam estes: R$ 1.673.981,90 da Cemig; R$ 1,5 milhão da Copasa; R$ 1,5 milhão da Comig; R$ 500 mil do Grupo Bemge. Além disso, teria havido um desvio, de acordo com o INC, de R$ 4.576.000,00 do Tesouro estadual.


Walfrido e Azeredo, os avalistas


O delegado Zampronha aponta que o presidente da Cemig, Carlos Eloy, no cargo desde 3 de abril de 1992, se licenciou em julho de 1998 para ser o coordenador político da campanha do governador. O presidente da Copasa, Ruy Lage, nomeado pelo governador Hélio Garcia e mantido por Azeredo, se licenciou, a pedido do governador, para ajudar na sua campanha na região de Montes Claros, onde Lage tinha uma fábrica de parafusos e propriedades rurais. O presidente da Comig, Carlos Cotta, licenciou-se em junho de 1998 para atuar como coordenador político da campanha na Região Metropolitana.


Participavam também da direção da campanha o vice-governador Walfrido dos Mares Guia, o secretário da Fazenda João Heraldo (que foi ser diretor do Banco Rural quando acabou o governo Eduardo Azeredo) e outro secretário de Estado, Cláudio Mourão. Este último era responsável pela administração financeira da campanha da coligação PSDB/PFL, juntamente com Denise Pereira Landim e Teófilo Pereira. Depois da derrota de seu candidato, Cláudio Mourão ficou em apuros, pois uma empresa dele havia comprado carros para serem usados na campanha e não havia dinheiro para reembolsá-la. Por isso, entrou com ação indenizatória contra Eduardo Azeredo e Clésio Andrade.


Segundo o relatório, ele desistiu da ação devido a um acordo extrajudicial com Azeredo, que ‘consistiu no pagamento de R$ 700 mil através da SMP&B e Banco Rural’. Nessa época, o ex-secretário da Fazenda já era diretor do banco e teria facilitado um empréstimo de R$ 507.134,00 à Samos Participações, usados para pagar a Cláudio Mourão. Walfrido dos Mares Guia disse à Polícia Federal que a Samos é uma empresa holding patrimonial constituída para administrar seus bens e os de sua família, com sede no seu próprio endereço residencial. Segundo o delegado Zampronha, Walfrido e Azeredo eram os avalistas do empréstimo concedido pelo Rural. Esse empréstimo foi liquidado em 19/12/2002 mediante crédito originado na conta corrente da própria Samos no Banque Nationale de Paris Brasil S.A.


Dificuldades nas investigações


Há muito mais coisas no relatório, como a famosa ‘Lista do Mourão’, que fala em arrecadação de cerca de R$ 100 milhões durante a campanha (os declarados ao Tribunal Regional Eleitoral foram apenas R$ 8.555.878,97). Nessa lista, há nomes de candidatos a deputado que receberam dinheiro da campanha, entre eles Aécio Neves, candidato à reeleição para a Câmara dos Deputados pelo PSDB, que teria sido contemplado com R$ 110 mil, de um total de mais de R$ 10,8 milhões que teriam sido repassados a candidatos, partidos políticos e até sindicatos. Esse documento acena com uma arrecadação de cerca de R$ 100 milhões para a campanha de reeleição do governador Eduardo Azeredo, em 1998, mas a PF só comprovou gastos de pouco mais de R$ 28 milhões. Há ainda muitas incógnitas nesse processo.


O relatório do delegado Zampronha diz que a autenticidade do documento assinado por Cláudio Mourão, com data de 7/6/2005 e entregue por Newton Monteiro à PF (ele disse, em depoimento, ter recebido o documento do próprio Mourão, no apartamento de Danise Landim, outra responsável pelas finanças da campanha eleitoral), foi comprovada pelo INC, órgão da Polícia Federal. Ao ser confrontado com o laudo do INC, Mourão confirmou serem suas as assinaturas apostas ao documento, mas disse que não o elaborou. Só que qualquer montagem ‘teria sido facilmente detectada pelos instrumentos ópticos utilizados pela Polícia Federal nos exames’, diz Zampronha.


Em declarações à imprensa, Azeredo disse que nunca houve mensalão em Minas e nem pagamento a deputados para votar projetos de interesse do governo. De fato, o relatório não trata disso, mas de um esquema para arrecadar ilegalmente dinheiro para a campanha eleitoral. Walfrido disse que não tinha responsabilidade financeira na campanha de Azeredo e que abriu agora a contabilidade de sua empresa à Polícia Federal. Talvez, assim, ela consiga avançar mais um pouco nas investigações, nas quais o delegado Zampronha apontou muitas dificuldades até o momento de entregar seu relatório.


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Jornalista, Belo Horizonte, MG