Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Renascimento da cultura nacional

Seria possível assistir, em horário nobre na TV privada, ao seguinte enredo-documentário, que foi realizado na Costa Rica?

O cara é filho de um guerrilheiro da Nicarágua, vai morar nos Estados Unidos, entra para o exército mercenário norte-americano para faturar uma grana, é mandado para o Iraque, se incomoda com a situação, deserta, leva dois anos de cadeia, tem uma tremenda lavagem cerebral nas prisões de Tio Sam, vira mensageiro de Deus evangélico, retorna à sua terra e passa pregar a existência de um exército constitucional norte-americano que não extrapole as leis – pois mata ilegalmente – em tempo de guerra. Cinismo total, realidade que molda as consciências alienadas. Nem Globo, nem SBT, nem Record, nem Band passariam uma história real dessas em tal grade horária, privilegiada, hora de faturar alto nos anúncios. Mas a TV Brasil passou no sábado (28/1), às 21h.

O grande irmão do norte, quando não tem o que fazer com a gentalha latino-americana, empobrecida, que chega aos Estados Unidos para ganhar a vida, amortece as consciências latino-americanas na religiosidade falso moralista-monetarista, que busca convivência pacífica com a economia de guerra, sem deixar de expandi-la nem molestá-la. Não é assunto para TV privada lucrativa. Jogar o real no horário que tem que predominar o virtual seria suicídio econômico, raciocinaria, naturalmente, um empresário como Silvio Santos. E os custos de manutenção do negócio, os salários, a necessidade de dar rendimento máximo ao capital fixo e variável aplicado na produção, como ficaria?

Só lixo cultural

A guerra, portanto, segundo o pensamento mercantilista-mecanicista, seria produto de Deus que precisa ser aperfeiçoado pelos homens, constitucionalmente. A TV pública viu o assunto com outros olhos, sentidos e sensibilidade. O real fascinou-a porque o mercantilismo não é sua praia. Não teria sentido seguir o que os outros, no setor privado, fazem melhor. Na TV pública, TV Brasil, o enredo chocante da falsa moralidade fluiu sem traumas, enquanto, no mesmo momento, na TV privada, o lixo habitual ia ao ar, emburrecendo geral.

Todos os dias está passando uma coisa surpreendente na TV Brasil, fruto do projeto de estímulo à produção de documentários,os chamados DOC TVs, realizados Brasil afora. Jamais a TV privada ousou enfrentar essa criatividade nacional. Comercializa tudo. A visão meramente mercantilista joga nas gavetas o pensamento em sua diversidade, para dar lugar somente aos interesses econômicos. Filmes de Xuxa, de Dedé, Didi, Dodó e Dudu, feitos para lançar modas etc. e tal, sempre ocupam os espaços. Em tempos de férias, a Globo, a grande Globo, joga a produção norte-americana no ar. Filmes bem feitos, sem dúvida, mas distantes da realidade sul-americana, marcada pela super-concentração da renda nacional, pelas explosões de violências, pelos Bopes, febre amarela etc.

Os antagonismos, que mantêm acesas direitas e esquerdas, prontas para o suicídio político e nascimento de lideranças machistas e falso-carismáticas de todas as naturezas, não são mostrados, nem, naturalmente, estudados e discutidos culturalmente porque não há canal de expressão cultural suficiente. Só lixo cultural flui no espaço de Edorado.

Religiosidade mercantilista

O Estado, dominado pelo interesse privado, loteia a máquina pública, sanguessugando os recursos da sociedade em diversas fontes, das agências oficiais de crédito às benesses adquiridas por meio de manipulação de forças políticas no Congresso comprometidas com a alienação. Não há espaço para a liberdade cultural, salvo se rolar muito dinheiro, que compense o capital investido.

A Veja faz grandes lançamentos de filmes da terra de Tio Sam. Bilhões rolam por suas capas. Percebe-se claramente o tom do discurso das grandes empresas que colocam em circulação os produtos que vendem todos os detalhes da modernidade capitalista-hedonista: o estilo de vida, os carros, as casas, os apetrechos, as roupas, os perfumes, tudo performático, ensaiado, disponível para uma cultura do consumismo exacerbado artificial. A excessiva velocidade dos acontecimentos, as flexibilidades dos veículos ultra-velozes, tudo compatível com o artificialismo necessário para criar uma vida exterior à realidade, de modo a colocar a esquizofrenia no centro do palco humano. Alienação total. Mas aí vêm os DOC TVs e mostram, pela TV Brasil, a realidade no mesmo horário que a Globo, a Bandeirante, o SBT e a Record jogam lixeiras imundas sobre as consciências. Contraponto necessário, vital.

O SBT destaca em sua propaganda a contratação de atrações internacionais. O que é? Violência pura. Propaganda do maior brigador de luta livre do mundo, distribuindo porradas e mais porradas, ganhando bilhões com o sangue que faz jorrar dos narizes dos adversários. A excessiva dose de religiosidade mercantilista tomou da TV Record, dos bispos milionários, espalhados, como multinacional, pelo mundo afora, em 176 países, como é o caso da Igreja Universal do Reino de Deus, jogando na oligopolização religiosa mercantilista bursátil-especulativa.

Contra-pólo ao artificialismo

Tudo é dinheiro. Big Brother, banalidades aos montes. Não há espaço para a cultura popular. O mercado toma conta das cabeças com produtos descartáveis. E os necessariamente não-descartáveis, indispensáveis à formação cultural, onde ficam? Somente na TV Pública. O oligopólio estatal é veneno de cobra para combater veneno de cobra. Oligopólio público contra oligopólio privado. Getúlio Vargas transformou a Rádio Nacional na quarta maior emissora do mundo. O que foi a Nacional? O berço da cultura brasileira.

A TV Brasil, em outra escala, naturalmente, poderia ser repeteco da Rádio Nacional. Por que não? As cabeças estão todas aí para explodir. Por que nas páginas amarelas de Veja ainda não coube entrevista com Tereza Cruvinel? Não é assunto público? Quem disse que a Veja se interessa pelo público? O jogo está claro. A cultura brasileira autêntica somente sairá da toca pela TV pública, onde o público tem espaço, porque no espaço da privada não há interesse público, apenas, privado.

Isso é o capitalismo. Não cabe moralidade. O setor privado busca o espaço para o lucro. Mas todo o espaço tem que ser dele? A continuidade dos filmes verdadeiros que estão passando na TV Brasil é o contra-pólo ao artificialismo, a melhor pedida do momento.

Onda nacionalista-renascentista

O cinema nacional, a grande revolução do cinema novo, terá sua continuidade na TV pública. O exemplo internacional, nos países da social-democracia, demonstra essa evidência. Na França, por exemplo, segundo diz o cineasta Armando Lacerda, autor de Juruna – o espírito da floresta – anotem que vai acontecer em 2008 –, acaba de ser lançado festival internacional de documentários-verdade. Viva a França! O mundo capitalista desenvolvido, no tempo da tecnologia da informação on line, está cada vez mais ávido da realidade que o capital provocou na periferia capitalista em forma de misérias e riquezas, riquezas para eles, misérias para nós. É a falsa consciência em ação, desejando cultura estética rejuvenescedora auto-purgativa.

Falsa consciência que abre espaço para os artistas do terceiro mundo em geral. A música brasileira não está rebentando para todo lado? Por quê? Exposição, competência, verdade, criatividade, liberdade. Os documentaristas brasileiros estavam na geladeira. Não havia lugar para eles nas vênus platinadas tupiniquins, que cuidam somente dos seus interesses e dos distribuidores de produtos feitos para criar demanda mercantil. Poderão, agora, graças à TV pública, aparecer e, aparecendo, faturar, avançar com a cultura sul-americana rumo à união sul-americana.

O critério deve ser evolucionário, com predomínio do interesse público. Tem interesse público na jogada? Se não tiver, não pode ter dinheiro público no negócio. Se tiver, que haja conselheiros públicos no domínio privado. O BNDES, quando coloca dinheiro no setor privado, fica com assento no negócio, debêntures conversíveis em ações, até o mesmo ser liquidado. Por que não fazer o mesmo com a grande mídia, engavetadora do interesse público, forçando-a a engajar-se em onda cultural nacionalista renascentista?

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Jornalista, Brasília, DF