Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Resmungo senil

A cobertura dos últimos acontecimentos na Universidade de São Paulo mostra que, provavelmente, a maioria dos repórteres e colunistas que vem escrevendo as matérias sobre o tema não frequenta há tempos a USP. A certeza com que se têm apressadamente avaliado os fatos da última semana é digna de quem não conhece muito bem a universidade – isto, quando são de fatos, e não de suposições, que se trata.

Estranha que, provavelmente, os mesmos que na década de 1970 gritavam não confiar em ninguém com mais de trinta anos, hoje transformam a neurociência em ideologia para dizer que não podemos confiar em quem tem menos de vinte e cinco. Pessoas que frequentaram a USP, a Unicamp, a UFMG ou a UFRGS, hoje, sem qualquer pudor ou preocupação com os fatos, chamam os estudantes de bebês mimados ou cidadãos incapazes. Por não conseguirem (ou não tentarem?) entender o que se passa no espaço universitário paulista e brasileiro, preferem caracterizar qualquer movimento estudantil como o passatempo de meninos desocupados ou rebeldes sem causa. Outros afirmam que o fato de não haver mais uma ditadura militar no Brasil tornou desnecessário qualquer tipo de contestação fora dos limites das instituições.

Não foram poucas as matérias, entre reportagens, colunas e artigos, que lançaram um olhar pouco acurado sobre a controvérsia instalada a partir do estopim, que foi a abordagem de três estudantes que consumiam maconha dentro de um veículo no estacionamento do prédio da História e Geografia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH).

Escolha infeliz

Antes de mais nada, é preciso ressaltar, para o bom entendimento do assunto, que esse fato foi apenas o estopim daquilo tudo que sucedeu a partir do dia 27 de outubro (invasão e ocupação da sede administrativa da FFLCH, decisão pela desocupação e posterior invasão do prédio da reitoria). Dizer que foi esta a razão central de todos os acontecimentos é o mesmo que dizer que o assassinato do arquiduque e herdeiro do império austro-húngaro, Francisco Ferdinando, foi o leitmotif da I Guerra Mundial. O certo é que desde há muito, ao menos desde a escolha do atual reitor pelo então governador do estado de São Paulo – que, em uma lista de três nomes, optou pelo menos votado –, a legitimidade dos responsáveis pela administração da USP tem sido objeto de questionamento.

Se entendemos legitimidade como a ideia segundo a qual decisões legítimas são aquelas publicamente debatidas e aceitas, e tendo em vista critérios mínimos de responsabilização, a escolha do atual reitor, bem como as medidas tomadas por ele, nem sempre atendem a essas exigências. Aos olhos da comunidade acadêmica, formada por estudantes, professores, funcionários etc., como ficou demonstrado há bastante tempo, as decisões tomadas pela direção da USP não são defensáveis, pois, entre outras coisas, os processos mediante os quais foram produzidas não são de conhecimento geral.

Não sabemos exatamente o que levou um grupo de estudantes a contestar a decisão de uma assembleia estudantil e ocupar o prédio da reitoria, é verdade. Particularmente, discordamos frontalmente dessa infeliz escolha, seja pela unilateralidade da atitude, seja por sua inocuidade habitual.

Fato arbitrário

Mas esse está longe de ser o único mistério na Universidade de São Paulo. A nova “política de segurança” implementada pela gestão atual é, no mínimo, tão obscura quanto. Para além do fato de que foi firmado após a morte de um estudante no estacionamento da Faculdade de Economia e Administração – morte ocorrida, a propósito, no mesmo dia em que a PM fazia uma blitz dentro da universidade –, pouco se sabe sobre o convênio entre a reitoria da USP e a Polícia Militar. São quase uma incógnita, por exemplo, as cláusulas contidas nesse acordo. Os próprios diretores das unidades, a princípio os responsáveis por autorizarem a intervenção da força policial no ambiente escolar, desconheciam até a semana passada quais as prerrogativas e a finalidade dos agentes policiais no campus. Existem relatos de que os próprios policiais estão apreensivos sobre o que podem ou não fazer: podem revistar alunos sem autorização da direção? Devem aplicar as leis de trânsito? A quem se reportam? Qual o papel da guarda universitária?

O problema é que não podemos pesar ambos os lados com a mesma métrica. De um lado, um punhado de estudantes e funcionários, do outro, a administração da maior universidade pública do país. Os fatos da madrugada/manhã do dia 8 de novembro, quando uma força policial composta por quatrocentos homens armados prendeu manifestantes e moradores do bloco habitacional da USP, confirmam as suspeitas que os próprios professores, que apoiaram a escolha do reitor João Grandino Rodas, estão começando a expressar: afinal, qual é a política de segurança mais adequada para um estabelecimento de ensino? Sem um debate adequado, e dado o silêncio contumaz da reitoria, ninguém sabe como responder a essa questão.

Notemos, ademais, que o estopim da disputa – a detenção de usuários de maconha – é, ao mesmo tempo, arbitrário e ultrapassado. Arbitrário porque poderia ter ocorrido mais cedo ou mais tarde, por causa de eventos tão corriqueiros e largamente denunciados como uma revista mal-intencionada, o abuso de autoridade, ou a coibição de outras atividades ilícitas praticadas usualmente na cidade universitária. Pensemos aqui nas também “criminosas” festa do chope ou da tequila (consumo de bebida alcoólica em ambiente escolar, das quais vários estudantes saem alcoolizados e dirigindo) ou campeonatos de pôquer (jogo de azar) habitualmente patrocinado pelos grêmios estudantis de outras faculdades. Ultrapassado porque o que era um incidente simples mais uma vez acabou como uma situação de exceção policial para aqueles que trabalham, estudam e vivem na cidade universitária. Os muitos que se inflamam contra usuários de maconha o fazem sob a justificativa de que esta é uma atividade ilegal. Nenhuma objeção quanto a isso. Mas que se revoltem também contra estas outras condutas igualmente à margem da lei. Ou devemos aplicar a lei seletivamente? Esta lei tem de ser cumprida; aquela outra, não?

Indignação com o lamento

Esperamos que a reitoria possa propor algo mais sofisticado para o futuro da USP do que a iniciativa de acusar o movimento estudantil – com todas as falhas e incompetências que sabemos que possui – de “formação de quadrilha”. Esperamos, ainda, que sejam colocados às claras os processos administrativos movidos por ela que se baseiam em um estatuto administrativo de quarenta anos atrás.

Para além do que ocorre dentro dos muros da universidade, mais fechada hoje do que nunca à sociedade que a circunda, gostaríamos de ver na imprensa brasileira uma cobertura mais equilibrada e, tão importante quanto isso, bem informada sobre os acontecimentos dos últimos dias. O que se tem visto nos jornais, nas rádios e na televisão até aqui não condiz com uma sociedade que, ora a passos curtos, ora a saltos um pouco maiores, vem se democratizando e oferecendo oportunidades mais justas de participação política aos seus cidadãos. Se foi um desastre completo e uma fonte de desinformação até o momento, ainda há tempo para que a imprensa trate com a devida seriedade o que vem acontecendo na USP, deixando de lado estereótipos grosseiros e ideologias ultrapassadas.

A indignação com a inabilidade da administração em propor uma política de segurança eficaz e legítima para a comunidade uspiana, não pode ser confundida com o choro de crianças mimadas. Ao contrário, é a preocupação daqueles que gostariam que a universidade fosse administrada de maneira condizente com suas pretensões de excelência e visibilidade internacional. É a indignação com o lamento de uma estrutura de poder, infelizmente, senil.

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[Lucas Petroni e Renato Francisquini são, respectivamente, mestrando em Ciência Política (USP) e doutorando em Ciência Política (USP)]