Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Sapateiro, não vá além das sandálias

No dia 23 de junho de 1996, numa casa de praia em Guaxuma, Maceió, duas pessoas foram encontradas mortas, em circunstâncias até então desconhecidas. Teria sido um crime como centenas de outros semelhantes que acontecem todos os dias, a merecer apenas alguma nota nos jornais e condenado ao rápido esquecimento, não fosse a identidade de uma das pessoas mortas: ninguém menos que Paulo César Cavalcante Farias, o PC Farias, famoso por suas ligações com o deposto ex-presidente Fernando Collor de Mello.

Precipitadamente, algumas autoridades policiais anunciaram tratar-se de ‘crime passional’. A imprensa, e por conseqüência a opinião pública, não se conformou com a tese de crime motivado por questões sentimentais, já que a figura de PC Farias, conhecedor profundo dos bastidores do poder, ensejava suspeitas de que se tratasse de crime político, algo como ‘queima de arquivo’.

O Instituto de Criminalística (IC) e o Instituto Médico Legal (IML), de Maceió, órgãos oficiais, imparciais e isentos, procederam aos exames periciais pertinentes, iniciados já no dia dos fatos e continuados nos dias subseqüentes. No decorrer da semana, especulava-se que a perícia local poderia estar sofrendo pressões de toda sorte, o que ensejaria conclusões encomendadas, levando-a ao descrédito, suposições sem o menor fundamento, diga-se de passagem. Por esse motivo, o então governador de Alagoas, Divaldo Suruagi, solicitou a intervenção do ministro da Justiça, Nelson Jobim, para que convidasse a Unicamp, cujo Departamento de Medicina Legal gozava na época de elevado prestígio, para que auxiliasse a perícia local no desenvolvimento dos trabalhos.

Aceito o encargo, o Dr. Badan Palhares, professor da Faculdade de Medicina daquela universidade e médico legista do Instituto Médico Legal (IML) de São Paulo, formou sua equipe convidando o saudoso médico legista Antonio Francisco Bastos, os peritos criminais José Carlos Serafim e este autor, do IC/SP, Alberto C. de Almeida, do Instituto de Criminalística do Departamento da Polícia Federal (IC/DPF) e Wanderley Chagas Leal, então presidente da Associação Brasileira de Criminalística. Vale lembrar que também foi convidado a acompanhar os trabalhos periciais Anelino Resende, então presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Legal.

Sem remuneração

Assim que a equipe do DML/Unicamp chegou a Maceió, foi apresentada pelo secretário da Segurança Pública de Alagoas, coronel José de Azevedo Amaral, aos peritos criminais (IC/AL) Nivaldo Gomes Cantuária e Anita Buarque de Gusmão, e aos médicos legistas (IML/AL) Gerson Odilon Pereira, José Lopes da Silva Filho e Antonio Carlos Lima Xisto, responsáveis pelos levantamentos técnicos periciais e necroscópicos iniciais.

Durante a reunião que se seguiu, que se prolongou por mais de oito horas, os peritos e médicos legistas locais transmitiram aos colegas da equipe coordenada pelo professor-doutor José Fortunato Badan Palhares todas as informações colhidas e procedimentos tomados até aquele momento. Após a minuciosa exposição, todos os participantes resolveram reavaliar tudo o que havia sido feito, inclusive analisando o local dos fatos e efetuando exumações e novas necropsias dos cadáveres. Esses trabalhos periciais se desenvolveram por quatro dias, após os quais, o ilustre delegado geral de Polícia, Cícero Torres, face à convergência de entendimentos entre todos os participantes dos trabalhos, resolveu nomear os integrantes da equipe que chegou, incorporando-os à equipe local, para a elaboração dos trabalhos em conjunto.

Assim sendo, o resultado final dos trabalhos periciais originou o Laudo Pericial, único e de caráter oficial, apresentado às autoridades policiais e judiciárias, responsáveis pelo caso. Esse laudo, portanto, foi oficialmente emitido pelas instituições cujos brasões figuram no topo de suas páginas, quais sejam IC/IML de Alagoas, IC/IML de São Paulo, DML/Unicamp, além das honrosas e importantíssimas participações dos IC e IML de Salvador, do IC/DPF de Brasília, dos Institutos de Química e de Física e outros departamentos da Unicamp.

Entre peritos criminais, médicos legistas, técnicos e especialistas das mais variadas modalidades científicas, mais de uma centena de participantes colaboraram no rumoroso Caso PC Farias. Desnecessário dizer da responsabilidade profissional, da competência técnica e, sobretudo, da isenção de todos os participantes; porém, é absolutamente necessário salientar, com toda a ênfase, que ninguém recebeu remuneração de qualquer tipo ou sob qualquer denominação, por esse estafante trabalho de pesquisa.

Críticas ferozes

Pois bem. Concluídos os trabalhos, a equipe de peritos criminais e médicos legistas, no total de 11 profissionais, apresentou o Laudo Pericial, conclusivo, em três volumes, no qual manifestam os resultados das pesquisas, minuciosamente explicitados. Conclui o Laudo que Suzana Marcolino da Silva, utilizando-se de revólver de sua propriedade, disparou um tiro contra Paulo César Cavalcante Farias, causando sua morte imediata, sendo que, algum tempo depois, disparou com a mesma arma contra seu próprio peito, suicidando-se.

A conclusão pericial lastreou-se em dados técnicos, exaustivamente analisados sob os mais rigorosos critérios científicos, discutidos à saciedade entre os membros da equipe e, ao final, corroborada e assinada por todos.

Tal conclusão, somada aos aspectos circunstanciais envolvendo as pessoas e os fatos antecedentes ao trágico desfecho, em última análise, veio a confirmar as opiniões iniciais de algumas autoridades, de que se tratava de ‘crime passional’, ou seja, motivado por questões sentimentais.

Isso frustrou a mídia jornalística e a opinião pública, que desde o dia dos fatos especulavam tratar-se de crime por razões políticas, ‘queima de arquivo’, por envolver a figura de PC Farias.

O que se assistiu, a partir da divulgação dos resultados periciais, foi uma triste e lamentável sucessão de críticas ferozes, opiniões de ‘especialistas’ dos mais variados matizes, todos aproveitando a oportunidade de aparecer diante das câmeras de televisão, dos holofotes e dos microfones que se apresentavam à profusão. Percebia-se claramente que tais ‘opiniões’ buscavam aplacar o clamor público, ajustando-se às versões e desprezando os fatos. Alguns desses ‘especialistas’ tiveram calorosa receptividade da mídia e se apresentaram em diversos programas de televisão, dizendo aquilo que o público queria ouvir.

Oportunismo sem escrúpulos

Como desacreditar o trabalho pericial, desenvolvido com tanta dedicação e imparcialidade, senão desacreditando a figura do coordenador da equipe, o afamado professor-doutor Fortunato Badan Palhares?

Foi o que se viu.

Suprema injúria, o sadismo exercido com a maior crueldade, ocorreu durante a famigerada CPI do Narcotráfico, quando parlamentares ditos do baixo clero, alguns de passado pouco recomendável, covardemente escudados pela imunidade (impunidade?) parlamentar, se esmeraram em pisotear a dignidade de um cidadão de bem, tratando-o, em alguns momentos, como o mais execrável dos crápulas.

O cientista, o doutor, o médico, o professor que formou milhares de profissionais médicos nos bancos da prestigiada Faculdade de Medicina da Unicamp, o médico legista que labutou por décadas no Instituto Médico Legal de São Paulo, o criador e diretor do DML/Unicamp, que projetou a medicina legal além fronteiras, o cidadão honrado e pai de família exemplar, cuja biografia jamais apresentou qualquer mácula, se viu alvejado por calúnias, injúrias e humilhações de toda sorte.

Profundo, cruel e inaceitável desrespeito.

Oportunistas, sem qualquer escrúpulo, desprezando os mais elementares princípios éticos, se esbaldaram em achincalhar o impoluto profissional, taxando-o de venal, e ‘seu’ laudo pericial de ‘fraude’. Reitere-se que o laudo foi elaborado e assinado por 11 pessoas, todas co-autoras, portanto, co-responsáveis.

Jornalismo especulativo

Uma frase escrita em artigo do Dr. Badan Palhares, referindo-se à altura de Suzana Marcolino da Silva, foi pinçada do texto e essa questão pontual ensejou, como ainda enseja, discussões acaloradas de técnicos, curiosos e jornalistas, acintosamente travestidos de peritos criminais, arvorando-se no direito autoconcedido de analisar indícios, interpretar as provas e tirar suas conclusões, sempre tendentes a servirem de apoio às versões que defendem, não aos fatos, como realmente de deram.

Suzana Marcolino da Silva media 1,67m, e ponto final. Isto ficou demonstrado nos autos, em laudo pericial complementar. Discutir sua altura, mero detalhe num enorme conjunto de provas, afigura-se como discutir-se ‘a cor do sofá’, como se relata no folclore jurídico.

A propósito das opiniões ‘técnico-periciais’ manifestadas por jornalistas sobre o caso, é oportuno lembrar a frase ‘ne sutor ultra crepidam’ atribuída ao célebre pintor grego Apeles, que a teria dito a um sapateiro que observara seu quadro e que, após criticar as sandálias da figura retratada, pretendeu também criticar o resto. ‘Sapateiro, não vá além das sandálias’!

Ninguém, de meridiano bom senso, ousaria criticar o jornalismo investigativo, o poder fiscalizador da imprensa, tão importantes num regime democrático, vide caso Watergate, o caso Collor e o atualíssimo caso PT. Porém, o jornalismo meramente especulativo, alimentado pela futrica de fontes pouco ou nada confiáveis, acobertado pelo direito de opinião e pela liberdade de imprensa, que atua ‘forçando a barra’, privilegiando as versões em detrimento dos fatos, deve ser por todos repudiada.

Atribuições claras

Recentes matérias publicadas no site Observatório da Imprensa [ver remissões abaixo], trazem sérias críticas do jornalista Mário Magalhães contra seu colega Joaquim de Carvalho, que ‘ousou’ concordar com as conclusões periciais do Caso PC em sua obra Basta!. Magalhães persiste e insiste em defender sua tese de crime político, insurgindo-se contra tudo e contra todos que não comungam da mesma opinião. Aliás, a fase das opiniões se esgotou no momento em que a perícia divulgou suas conclusões finais e, reitere-se, oficiais.

Outras investigações se empreenderam, por exemplo pela Polícia Federal, com o delegado Belanger e seus agentes, novas perícias foram efetuadas por peritos dissidentes, sempre com o objetivo de desacreditar o laudo oficial, equivocada e reiteradamente chamado de ‘laudo do Dr. Badan Palhares’. Pessoas inocentes, cujo único ‘crime’ foi terem convivido com PC Farias, como seus empregados ou por parentesco, foram acusadas de planejamento e participação no seu assassinato.

Concordem ou não as pessoas que acompanharam as investigações, que especularam à saciedade, os fatos aconteceram como relatados no laudo pericial.

Nunca seria demais lembrar que a perícia oficial, representada por peritos criminais e médicos legistas, é função do Estado, revestida de presunção legal de credibilidade, isenta e imparcial. Seu compromisso é com a verdade real e, em última análise, com a Justiça. Nunca com a imprensa ou com interesses particulares.

Jamais teve a perícia entre suas atribuições emitir conclusões de molde a contentar a mídia ou aplacar o clamor público.

Descansem em paz

Os peritos criminais e médicos legistas, quando emitem um laudo pericial, assinando-o no final, assumem responsabilidades civis e criminais por aquilo que disserem naquele documento, pois estão sujeitos às penas da lei (art. 342 do Código Penal Brasileiro).

Os jornalistas, não!

Protegidos pelo direito constitucional de liberdade de opinião e pela Lei de Imprensa, julgam-se no direito de especular, em algumas oportunidades, sem que qualquer ameaça legal lhes impeça de tergiversar sobre fatos e achincalhar pessoas, expondo-as à execração pública.

Com a devida permissão do nobre jornalista Joaquim de Carvalho em usurpar-lhe o título de sua obra, magnífica, por sinal, é hora de dar um BASTA!!! às especulações infundadas e à irritante insistência em ‘forçar a barra’, concedendo às fantasiosas versões ares de veracidade que não merecem.

‘Sapateiro, não vá além das sandálias’, ou ainda ‘Quousque tandem Catilina abutere patienta nostra?’ [‘Até quando, Catilina, abusarás de nossa paciência?’: discurso de Marco Túlio Cícero (106 a.C.-43 a.C.) contra Catilina, cônsul de Roma, recitado no Templo de Júpiter em 8 de novembro de 63 a.C..]

Que Paulo César Cavalcante Farias e Suzana Marcolino da Silva descansem em paz!

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Perito criminal aposentado, membro da equipe do DML/Unicamp, coordenada pelo professor-doutor Fortunato Badan Palhares, no caso PC Farias