Tuesday, 16 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1283

Um alerta às autoridades e à sociedade

No último dia 30 de março, o Ministério das Comunicações publicou a Portaria nº 290, instituindo o Sistema Brasileiro de Rádio Digital (SBRD) e estabelecendo os objetivos do mesmo. Embora o texto da Portaria não avance muito além do que já constava no texto do Chamamento Público do ano passado, entendemos que estamos entrando em mais uma etapa do processo de definição do padrão de rádio digital a ser adotado no Brasil. Por se tratar de um tema de grande interesse público, as entidades abaixo-assinadas lançam esta carta aberta como um alerta às autoridades e um chamado à sociedade brasileira.

Entendemos que a digitalização da transmissão é fator essencial para a sustentabilidade do rádio no ambiente de convergência midiática. A mudança representará uma melhoria da qualidade de som, especialmente em relação ao AM, novos usos e funcionalidades para o aparelho receptor, incluindo a oferta de dados e serviços complementares de valor agregado, além de dispositivos tecnológicos que permitam abertura para a convergência com outros meios dentro da mesma linguagem digital. Embora o rádio já esteja presente na internet e celular, acreditamos que a digitalização da transmissão poderá integrá-lo à convergência midiática. Entretanto, para que isto ocorra de modo consistente, é indispensável que a definição tecnológica seja precedida pela definição dos modelos de serviços e de negócio, uma vez que os atuais impasses do rádio localizam-se no esgotamento dos referidos modelos.

Testes devem se ampliar e ser transparentes

Temos clara a importância social do rádio pela sua presença marcante no cotidiano da maioria da população brasileira. É o meio de informação e entretenimento por excelência, especialmente para os que estão em trânsito nas grandes cidades e para os que vivem no interior, nas pequenas cidades, na zona rural e, em particular, em macrorregiões como a Amazônia. Integra o sistema de comunicação do país de forma expressiva. São mais de oito mil emissoras em funcionamento entre comerciais, educativas e comunitárias. As comerciais oferecem mais de 300 mil empregos diretos e indiretos, e faturam por ano R$1.673 milhões (pesquisa FGV e IBRE de 2007).

Temos, também, consciência do lento processo de migração para o sistema de transmissão digital registrado em boa parte do mundo. A dificuldade está relacionada a características tecnológicas dos sistemas disponíveis que dificultam sua adaptação ao modelo de radiodifusão, ao marco regulatório e as regras de mercado em cada país. Em alguns países europeus, o sinal digital do sistema DAB (Digital Audio Broadcasting), por exemplo, não tem boa recepção dentro de edifícios, especialmente os situados em ruas com grande densidade de prédios e tráfego intenso. Sabemos que o sistema americano HD Rádio (IBOC) apresenta problemas semelhantes: o sinal é mais baixo em relação à estação de sinal analógico. Além disso, os aparelhos receptores em HD Rádio são incompatíveis com DAB e DRM.

Reconhecemos que o Ministério das Comunicações tem promovido testes em busca de um padrão que possa ser adequado ao sistema de radiodifusão brasileiro. Foram testadas apenas duas normas de rádio digital: o HD Rádio (também conhecido como IBOC), padrão proprietário dos Estados Unidos, cujos resultados dos testes parecem não terem sido os esperados, e que merecem ainda uma maior divulgação e publicização, e o DRM (Digital Radio Mondiale), de origem europeia, cujos testes estão sendo realizados em escala muito inferior ao IBOC e sequer foram concluídos. Defendemos que esse processo de testes deve se ampliar e aprofundar, e deve ganhar contornos mais transparentes e públicos.

Um debate urgente e profundo

Reconhecemos, também, que a Portaria nº 290/2010 de 31 de março de 2010 do Ministério das Comunicações que institui o Sistema Brasileiro de Rádio Digital – SBRD é positiva, porque sinaliza com valores fundamentais que devem balizar a escolha de soluções tecnológicas, dos quais destacamos: a) proporcionar a utilização eficiente do espectro de radiofrequencia; b) possibilitar a participação de instituições brasileiras de ensino e pesquisa no ajuste e melhoria do sistema de acordo com a necessidade do país; c) viabilizar soluções para transmissões em baixa potência, com custos reduzidos; d) propiciar a criação de rede de educação à distância; e) incentivar a indústria regional e local na produção de instrumentos e serviços digitais; f) propiciar a transferência de tecnologia para a indústria brasileira de transmissores e receptores, garantida, onde couber, a isenção de royalties.

Embora essas e outras diretrizes sejam essenciais, entendemos que a portaria não encerrou o debate sobre o modelo a ser adotado, nem sequer o definiu e, portanto, indica a necessidade de abertura e tempo para a sociedade apropriar-se mais das questões relativas à digitalização do rádio. É necessário garantir, ao longo dessa próxima etapa, maior transparência e controle público neste processo.

Lutamos recentemente pela realização da I Conferência Nacional de Comunicação e nela defendemos a abertura urgente de profundo e consistente debate que envolva a sociedade em um amplo processo de consultas e audiências públicas, os setores da radiodifusão (público, privado e comunitário), a indústria de equipamentos, e técnicos do Ministério das Comunicações, de Universidades brasileiras e de centros de pesquisas.

Perigos de uma decisão precoce

Nesse sentido, as instituições e entidades abaixo assinadas reivindicam do Ministério das Comunicações a constituição de um Grupo de Trabalho (GT) que tenha como objetivo traçar uma estratégia comum sobre a política de implantação do rádio digital no Brasil, bem como possibilitar o monitoramento pelas entidades sobre os próximos passos dos agentes públicos na consolidação dessa política. Num primeiro momento o grupo debateria as diretrizes políticas (diversidade, pluralidade, universalidade e gratuidade) e diretrizes técnicas (royalties, cobertura, uso do espectro, serviços agregados, entre outros) apresentadas na Portaria nº 290/2010 à luz dos resultados dos testes já realizados com HD Rádio e DRM.

Além disso, defendemos estudo comparativo de experiências internacionais com outros sistemas, tais como o DAB e sua família (DAB +), DMB, DRM, FMeXtra e o ISDB-TSB. Defendemos, portanto, uma avaliação criteriosa e comparativa desses modelos relacionando-os com os testes de eficiência já realizados.

Defendemos que o SBRD seja transformado em lei própria, a ser aprovada pelo Congresso Nacional. Mas antes disso será necessário o seu aperfeiçoamento a partir de discussões a serem realizadas pelo GT aqui proposto pelas entidades.

Lembramos que uma decisão precoce, sem a devida avaliação do seu impacto em nosso sistema de radiodifusão, poderá acarretar em baixa penetração do serviço, prejuízo para o setor de radiodifusão, reduzido interesse da população, não ampliação de postos de trabalho e ausência de políticas públicas no sentido de maximizar a inclusão digital e os serviços públicos.

Participação popular e controle público

Temos consciência que a adoção de qualquer sistema sem debate e reflexão rigorosos, ou de forma automática e sem aprimoramentos tecnológicos poderá trazer sérios problemas e não atender à realidade brasileira. Por isso, não podemos descartar a possibilidade futura do Brasil vir a optar por um SBRD com tecnologia genuinamente nacional, com a garantia do devido incentivo financeiro e estrutural para a sua realização. Sabemos que, independente do modelo a ser adotado, as adaptações poderão se fazer necessárias. E para isso torna-se estratégico saber quais são as nossas demandas para aprimoramento e como podemos envolver todos os setores capazes de contribuir para a melhoria e adaptação do sistema. O referido debate, insistimos, deve ser antecedido pelo debate sobre os modelos de serviços e de negócio, uma vez que sem modelos democráticos e acessíveis a continuidade do rádio brasileiro não está assegurada. Sobre possíveis adaptações, lembramos o que aconteceu com a TV Digital, em que o ISDB japonês sofreu uma evolução, passando a utilizar a codificação MPEG-4 e a interatividade Ginga, desenvolvida no Brasil, pelas universidades PUC-Rio e UFPB.

Como em qualquer transição será necessário compreender que o processo de construção de políticas públicas para o rádio digital precisa estar alicerçado em alguns critérios, tais como: a) garantia da manutenção da gratuidade do acesso ao rádio, por parte do ouvinte; b) a transmissão de áudio com qualidade em qualquer situação de recepção; c) adaptabilidade do padrão ao parque técnico instalado; d) coevolução e coexistência com o padrão analógico; e) aparelhos receptores de baixo custo; f) adoção de uma tecnologia não proprietária e com potencial para interconectividade com outras mídias; g) interatividade real time; h) multiprogramação; i) democratização do uso do espectro, com a ampliação do número de outorgas disponíveis e maior presença de rádios públicas e comunitárias; j) garantia de igualdades de condições para o processo de transição de padrão, incluindo aí as rádios coimunitárias.

São critérios que preservam, de alguma forma, a experiência social, histórica e cultural do meio. Integrado a um modo de vida, o rádio se vincula às identidades culturais do lugar, aos saberes cotidianos, ao partilhamento de patrimônios comuns como a língua, a música, o trabalho, os esportes, as festas, entre outros. É um espaço de reconhecimento do público como pertencente a uma dinâmica cultural local. Portanto, para ter sentido e ser útil, as intervenções das políticas públicas nas estruturas se guiam e se justificam por objetivos relacionados ao conteúdo. Significa por em relevo não somente as relações entre economia e política, mas também a dimensão do consumo. O que implica em considerar a cultura como um componente inerente à formulação de políticas públicas de transição para o rádio digital.

A migração do rádio brasileiro do padrão analógico para o padrão digital e sua integração na convergência tecnológica é uma política pública de interesse do conjunto da sociedade brasileira, interessa a empresários, profissionais da comunicação, ouvintes, gestores públicos, técnicos e cidadãos em geral. Portanto, esta política pública deve ser construída de forma amplamente democrática, ouvindo o conjunto da sociedade e garantindo ferramentas de participação popular e controle público.

Brasília, 23 de abril de 2010

Assinam esta carta aberta as seguintes entidades:

Abraço – Associação Brasileira de Rádiodifusão Comunitária

Aneate – Associação Nacional das Entidades de Artistas e Técnicos em Espetáculos de Diversão

Amarc – Associação Mundial das Rádios Comunitárias

Arpub – Associação das Rádios Públicas do Brasil

CUT – Central Única dos Trabalhadores

CFP – Conselho Federal de Psicologia

Fenaj – Federação Nacional dos Jornalistas

Fitert – Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Radiodifusão e Televisão

FNDC – Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação

Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação

Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social