Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Uma agenda comprometida

Nesse maio de 2010, mais um dia ’03’ foi comemorado: Dia Internacional da Liberdade de Imprensa. Antes de comemorar, há que se definir os termos dessa liberdade. No entorno da data, ‘a Associação Nacional de Jornais (ANJ), a Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão, a Associação Nacional de Editores de Revistas (ANER), a Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e Câmara dos Deputados promoveram a 5º Conferência Legislativa sobre Liberdade de Imprensa com objetivo de discutir a relação entre mídia e democracia participativa’, conforme o site da ANJ.

As mesmas entidades divulgaram nota elogiando a modificação do Programa Nacional de Direitos Humanos 3, e essas entidades decidiram não participar da Conferência Nacional de Comunicação realizada em 2009. A bola da vez, ou a pauta midiática, seria a auto-regulamentação. Dentre as motivações, estariam ‘fixar um mecanismo contra ameaças à liberdade de imprensa, como a criação de um conselho para `fiscalizar´ o jornalismo’ (Folha de S.Paulo, ‘Mídia nacional estuda autorregulamentação‘) e o estabelecimento de um código de conduta para o exercício da profissão.

Modelo institucional

Não deixa de ser sintomático reduzir toda a questão de liberdade de imprensa e regulamentação da mídia ao jornalismo, e soa interessante falar de mídia e democracia participativa apenas entre os grupos top-down. O Congresso estaria representando a quem?

Todavia, avante. Ao se falar de jornalismo, evoca-se uma profissão cada vez mais precarizada e pulverizada. A decisão do Supremo Tribunal Federal de extinguir a exigência de diploma para o exercício do jornalismo dificulta ainda mais a construção de um estatuto público para a profissão. Já falar de regulamentação implica falar da possibilidade de hetero-regulamentação, através de normas estatais; e da possibilidade de auto-regulamentação, entendendo-se aí a elaboração de normas através dos atores envolvidos.

Até agora, os representantes patronais eram totalmente avessos a qualquer regulamentação, numa posição libertária. Adeptos do liberalismo dos mercados, à la Adam Smith, pareciam acreditar que essa poderosa mão invisível regulava normalmente os desequilíbrios. Agora, admitem timidamente uma proposta elaborada de auto-regulamentação.

Acerca da auto-regulamentação existem diversas orientações doutrinárias. Em uma classificação, podemos ter: (1) a proposta da auto-regulação (comumente propugnada pelos empresários da comunicação, com base na capacidade de auto-fiscalização); (2) o modelo institucional top-down (ou do clube fechado, deixando a regulação para os grandes acordos e grandes negociadores, como as organizações internacionais econômicas e os conglomerados corporativos); e (3) a abordagem regulatória (no caso, ou através da governança democrática global, em torno de algumas iniciativas da Organização das Nações Unidas, ou através do próprio Estado no amplo debate com a sociedade civil, RABOY, 2005).

Já deu para perceber que o modelo requisitado no Brasil é o modelo institucional top-down, ignorando-se ou apagando os documentos elaborados na Conferência Nacional de Comunicação, em uma vertente bem mais autêntica de democracia participativa, bem como tangenciando o Código de Ética do Jornalista (CEJ), elaborado pela própria categoria no exercício de auto-regulamentação, e que traz elementos de identificação, valorização e proteção profissional.

Ressalte-se que, na declaração de inconstitucionalidade da Lei 5.250/67 pelo Supremo Tribunal Federal, pelo teor dos votos, aparentemente, surgiram elementos para se estabelecer a noção de uma postura libertária ou liberal quanto às liberdades de comunicação social, postura essa baseada no livre mercado de idéias e na mínima intervenção estatal. Então, diante do proposto pelo STF, a disposição dos grupos empresariais da mídia seria um tremendo avanço. Por outro ângulo, na declaração de não-recepção constitucional da exigência do diploma para jornalista, em julgamento de controle difuso de constitucionalidade, surgem elementos para classificar a postura do Supremo entre a auto-regulatória e a do modelo institucional top-down, em consensos nada surpreendentes.

Conversa de um só

O Brasil tem demonstrado pouquíssima boa fé ao discutir a agenda midiática. Mesmo no afã liberalizante de alguns governos, o país sinalizou reconhecer a importância estratégica de várias áreas, estabelecendo normas gerais e agências reguladoras para mediar os setores de energia elétrica, petróleo, cinema, aviação civil, transportes, água, vigilância sanitária e telecomunicações. Enterrou, porém, o Conselho de Comunicação Social do Senado, e faz tabula rasa da Constituição no que toca à mídia.

No que respeita a um órgão para regular questões de mídia, vários países ocidentais representativos possuem esses entes, como Portugal, com a entidade administrativa independente (foi designado anteriormente de Alta Autoridade para a Comunicação Social). Na França, tem-se o Conselho Superior de Audiovisual, incumbido de fiscalizar a atividade da radiodifusão; na Inglaterra, organizou-se o Independent Television Commission, responsável pelas concessões e qualidade da programação; na Holanda, estruturou-se a Comissão para os media, um modelo de autoridade administrativa. Nos Estados Unidos, existe a Federal Communication Commission (FCC), uma agência governamental independente criada em 1934, e responsável por regular as comunicações por rádio, televisão, cabo, satélite e cabo. A Espanha tem algumas experiências regionalizadas nas comunidades históricas, como o Conselho de Audiovisual de Cataluña. Só para exemplificar.

Acerca da tal liberdade, agora mesmo, o jornalista Felipe Milanez, editor da revista National Geographic Brasil (Grupo Abril), foi demitido por criticar, no Twitter, a revista Veja, carro-chefe da editora. O redator-chefe da National, Matthew Shirts, teria confirmado que Milanez foi demitido pelos comentários no Twitter. ‘Foi demitido por comentário do Twitter com críticas pesadas à revista. A Editora Abril paga o salário dele e tomou a decisão’, disse ele ao Portal Imprensa.

O que aconteceu com a liberdade de imprensa?

Talvez Gilmar Ferreira Mendes tenha alguma pista para esclarecer a questão. Afinal, segundo ele, em seu voto contrário à exigibilidade do diploma para jornalista, o jornalismo seria o exercício profissional da liberdade de opinião. Interessante verificar que a mídia enquanto setor econômico passa por pesadas baixas, com seu modelo monolítico ameaçado por novas tecnologias e experiências. Nem assim, os grupos patronais brasileiros levam em consideração seus stakeholders, ou partes interessadas, insistindo, com a cumplicidade do Congresso, do Executivo e, agora, do Judiciário, em reger uma conversa onde apenas um ator fala.

Concessionários de radiodifusão

Levando em consideração que, de qualquer forma, a auto-regulamentação não pode ignorar a Constituição e a hetero-regulamentação já existente, a agenda dos empresários necessita explicitar, obrigatoriamente, os modelos de controle e os agentes responsáveis, as respostas públicas ou instrumentos de satisfação ao público, o procedimento do direito de resposta, e o grau de vinculação da mídia, por sua própria proposição, aos direitos fundamentais do público e dos profissionais de mídia. Os meios de comunicação têm algum compromisso com a liberdade interna, de opinião ou de consciência de seus integrantes?

A despeito disso tudo, os poderes/funções estatais dão mostra de uma debilidade infinita, fruto de seus próprios compromissos enquanto empresários de mídia e detentores de concessões, permissões e autorizações de serviços públicos de rádio e TV. Voltando ao começo: que liberdade de imprensa?

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Jornalista e professora dos cursos de Comunicação da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Mossoró, RN