Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Uma guerra de mentirinha

A guerra entre a TV Globo e a Band é uma guerra de anúncios, de mentirinha. Não vai melhorar a qualidade da cobertura jornalística na TV brasileira nem, muito menos, ajudar o eleitor a escolher melhor os seus candidatos – sobretudo no Legislativo.


O primeiro anúncio (da Globo) estava correto. Prometia investimentos na cobertura televisiva e oferecia ao conhecimento do público as normas que os seus profissionais seguirão na cobertura eleitoral. É assim que se faz. A Band preferiu partir para a briga e lembrou antigas falhas da concorrente.


Essa roupa-suja não interessa ao cidadão-telespectador, é puro marketing. O telespectador quer que as emissoras de TV impeçam a recandidatura dos mensaleiros e dos sanguessugas, quer que os escândalos sejam acompanhados com afinco e o caixa 2 seja impedido de funcionar novamente.


Mas é bom saber que as emissoras estão brigando. Significa que elas querem aperfeiçoar as suas coberturas, querem acabar com as abobrinhas e significa, sobretudo, que vão acabar com o pool que impedia qualquer diversidade.


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Promessas, promessas


Marcelo Beraba (*) # copyright Folha de S.Paulo, 6/8/2006


Há uma boa disputa no ar. A TV Globo publicou, há dias, um anúncio de página dupla em que promete ‘isenção, transparência e compromisso com a verdade’. O título da peça publicitária reproduz propositalmente um clichê eleitoral, ‘Eu prometo’. A TV Bandeirantes respondeu com outro anúncio: ‘Eles prometem. A Band cumpre’.


A Globo propagou que vai ‘fazer a maior cobertura jornalística que uma eleição já teve no Brasil’. Segundo o anúncio, a rede vai mobilizar mais de 4.500 profissionais em todo o país para ‘revelar a notícia em primeira mão, estimular o debate e aproximar o Brasil da sua casa com reportagens especiais’. A Band relacionou vários fatos políticos ocorridos a partir de 1979 em que considera que fez melhor cobertura que ‘eles’ [referência à Globo não explicitada no anúncio] e, no final, foi bem sucinta: promete fazer ‘a cobertura mais precisa e imparcial da TV brasileira’.


É um erro imaginar que as duas emissoras, separadas por um abismo de espectadores e faturamento, estejam, com estes anúncios, apenas disputando audiência. O principal objetivo é a disputa pelo bem mais precioso do jornalismo, a credibilidade. Para isso, as duas foram buscar palavras-chave como isenção, transparência, verdade, precisão, imparcialidade. Aí está o grande problema das empresas jornalísticas, e não apenas no Brasil. Não adianta volume de informação, não adianta exército de profissionais, não adianta liderança comercial sem credibilidade. E não há oportunidade melhor para tentar fixar a imagem de credibilidade do que durante as campanhas eleitorais ou ao longo das coberturas de crises políticas.


Normas de conduta


Não são só as duas emissoras que aproveitam o momento político e eleitoral para fixar uma imagem positiva através de anúncios institucionais ou comerciais. O Globo publicou, faz um mês, um anúncio para divulgar o seu ‘Estatuto das Eleições 2006’, com normas internas que devem ser seguidas por seus profissionais para prestar informação ‘isenta e transparente’. A íntegra do estatuto já tinha sido editada em forma de notícia uma semana antes.


A Folha está vendendo assinaturas com peças que fazem referências diretas à política: ‘Um jornal precisa ter muita credibilidade em um país onde acontecem tantas coisas difíceis de acreditar’ e ‘Eles tentam varrer a sujeira pra debaixo do tapete, e a gente coloca em cima do seu capacho’.


A TV Globo também criou, como O Globo, normas internas que devem ser seguidas por seus funcionários, e há dois capítulos voltados para os profissionais da Central Globo de Jornalismo. São orientações que pretendem garantir ‘isenção’ e ‘equilíbrio editorial’ durante a cobertura. Até a Radiobrás, a empresa pública federal de radiodifusão, lançou um ‘Protocolo de compromisso com o cidadão’ e um ‘Código de conduta’ para o período eleitoral.


A boa cobertura


Os anúncios publicitários com promessas de coberturas isentas e a divulgação de normas de comportamento para as Redações são um bom sinal, independentemente dos objetivos comerciais que têm por trás. Logo saberemos se o compromisso público com valores como isenção, imparcialidade, apartidarismo, pluralismo é para valer ou é apenas marketing. E, tão importante, logo veremos se as megacoberturas anunciadas têm qualidade e senso crítico, se cumprirão de fato com a responsabilidade de bem informar e de ajudar a formar cidadãos com opinião própria.


O que temos assistido neste início de campanha eleitoral – principalmente nos telejornais, mas não apenas neles – são coberturas superficiais, dependentes das agendas dos candidatos e sem contextualização. Há uma sociedade inquieta que ainda não apareceu nas telas das TVs nem nas páginas dos jornais.


É provável que, com o desenrolar da campanha, os meios se debrucem sobre a história dos candidatos, avaliem as suas passagens pela administração pública, analisem os fracassos e os sucessos das políticas públicas implementadas nos últimos anos, aprofundem as discussões sobre os principais problemas nacionais e confrontem os programas e promessas dos candidatos à Presidência da República e aos governos estaduais.


É o que se espera, assim como se espera um olhar inovador para uma cobertura sempre negligenciada, a do Legislativo (Senado, Câmara dos Deputados e Assembléias estaduais). A boa cobertura não será avaliada pelo número de quilômetros rodados, pela quantidade de jornalistas envolvidos ou pelo volume de papel impresso. Assim espero.


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O dever da mídia # copyright Folha de S.Paulo, 6/8/2006


Participei, no início da semana, de um seminário sobre ‘media accountability systems’ (MAS) – que vêm a ser sistemas de responsabilização da mídia. São iniciativas que os jornalistas, as empresas jornalísticas e a sociedade – e não os governos – foram criando ao longo do século 20 e continuam a criar para garantir a responsabilidade da imprensa de prestar contas à sociedade.


Um MAS, define Claude-Jean Bertrand na edição brasileira de seu livro O Arsenal da Democracia (Edusc), ‘é qualquer meio de incitar a mídia a cumprir adequadamente seu papel’: ele indica ‘claramente ao público que os jornalistas têm princípios e regras, que eles se preocupam em descobrir as necessidades e desejos de seus leitores/ouvintes/espectadores e, enfim, que eles estão prontos a prestar contas, a reconhecer suas faltas’.


Os estatutos criados pela TV Globo, O Globo e Radiobrás para as eleições podem ser vistos, como definiu Bertrand, como ‘armas pacíficas’ capazes ‘de garantir ao mesmo tempo a liberdade e a excelência dos meios de comunicação’. Os códigos de ética, os manuais de Redação, a função de ombudsman, os conselhos de leitores, a publicação regular de correções e de autocríticas são outras armas, entre mais de 60, deste arsenal.


O problema no Brasil é que poucos meios adotam esses sistemas de transparência, correção, integração (com os leitores, os ouvintes e os espectadores) e prestação pública de contas. A maioria ainda não assimilou que são empresas privadas, mas prestam um serviço público.


(*) Ombudsman da Folha de S.Paulo