Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O que a mídia não viu

Não é de hoje que vejo algo muito sórdido a exalar desse enclave no rosto paulista conhecido como Pinheirinho, em São José dos Campos. Na verdade, desde os últimos dias de janeiro de 2012, quando a polícia estadual abriu caminho com documentos judiciais em mãos, tratores acostumados a ajudar na construção de moradias e a truculência habitual dos que muito podem contra os que nada podem mais perder… salvo a vida.

Tamanho acinte à dignidade humana dos moradores de Pinheirinho mostra de forma muito peculiar e característica o que o capitalismo, quando levado aos extremos, pode fazer com uma pessoa humana. Seja ela governador do estado mais rico do Brasil ou prefeito de nossa mais cosmopolita cidade latino-americana. Seja esta pessoa investida do poder da lei, lei que sequestra dos que nada têm (famílias expulsas de seus lares) para os que sempre muito tiveram (o megaespeculador Naji Nahas).

É um caminho formado por labirintos em que tudo parece conspirar contra os mais fracos. É como se todos os elos fracos da corrente chamada sociedade se concentrassem em um mesmo ponto de convergência. Este é o Pinheirinho real. E todos fazem questão de errar, não concedem um grama de chance para que possa da confusão emergir o clarão que somente o acerto pode engendrar.

Massas anônimas

A começar pelo poder público: todos se vestem com as togas da justiça, são como prepostos de desembargadores, juízes, doutores de uma lei que fere de morte o senso de pertencimento à espécie humana. Estes trazem no rosto questionáveis diplomas de legalidade e deixam para trás qualquer senso de humanidade. São cumpridores da lei desde que habitaram por cerca de nove meses o ventre de suas mães.

Depois, temos a cumplicidade midiática, esta forma enviesada de transformar miseráveis em marginais e de canonizar algozes sempre muito aquinhoados por riquezas acumuladas por meios, no mínimo, escusos. Os jornais refletirão meio-Pinheirinho e mostrarão em fotos adredemente escolhidas meias-verdades, levando o assunto para onde jamais deveria seguir, a visão oblíqua de ideologias tão nocivas quanto impertinentes. É quando o que será consumido como notícia pelos incautos de plantão será nada mais que a história do cumprimento da lei, que devolve a terra ao seu dono real e a sensação de “não ter para onde ir” aos desvalidos sem terra, sem posse, e que têm para lhes proteger apenas o céu. Porque este não pode cair sobre suas cabeças.

Senti falta de jornalismo decente na cobertura da tragédia chamada Pinheirinho. E senti excesso de partidarização da imprensa na forma como os dramas humanos foram relegados a um décimo plano de importância: cadê as histórias dessa gente desalojada, de uma hora para outra, de seus lares? Se já eram precarizados naquele lugar, ao menos tinham um lar, um teto, de madeira, de zinco ou papelão para lhes proteger. E agora? Faltou senso de humanidade à imprensa. E é o que um sistema fundado única e exclusivamente em valores monetários pode fazer com este que deveria ser sempre um poder a serviço das parcelas mais fracas de nosso cada vez mais fragmentado tecido social. Se a imprensa tem que tomar partido, que tome pois o partido das massas anônimas da humanidade, dos despossuídos da Terra, dos tratados como entulho a ser removido com rara eficiência e urgência por quem detenha os benefícios da lei.

Famílias sem teto

Mas ficou patente, ao menos nos telejornais e na imprensa escrita mais vistosa – essa que mesmo sem receber um mísero voto nas urnas continua empolgada com a missão autoimposta de demitir ministros de Estado e outras autoridades graúdas do primeiro escalão do governo federal –, uma pesada abstinência pelo trabalho investigativo: a serviço de quem estavam as forças da legalidade e da polícia estadual? Qual a história – remota e recente – do notório especulador Naji Nahas? E como a área chamada Pinheirinho foi parar no rol de seus bens, quase sempre indisponíveis por obra e arte dessa mesma Justiça? Onde pudemos ouvir a voz de Nahas em defesa de sua terra, um lugar tão eficientemente defendido pelos governantes de plantão? Uma pesquisa no Cartório de Títulos e Documentos em que se acha inscrita a propriedade de Nahas talvez jogasse mais luz sobre o assunto. Vasculhar a história de como os documentos de reintegração de posse foram exarados também forneceria elementos robustos para se entender o que resiste a ser enterrado em Pinheirinho.

Uma imprensa independente já deveria ter assimilado a lição, dando conta que “sempre que autoridades esgrimem a tese da legalidade” já é sinal da existência de muita coisa errada. É só investigar. E também deveria ter aprendido que para além das rusgas paroquiais PSDB vs. PT, tentam sobreviver, agora só da caridade alheia, 1.500 famílias despejadas, sem teto e sem lar. Famílias tão ou mais cheias de humanidade que a única que ostenta Nahas como sobrenome.

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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundoseu twitter]