Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Da exclusão total à política de cotas

“Sempre fui a única negra na escola. Saquei o que era injustiça ali, quando não vi ninguém igual a mim. Só quem limpava o colégio.” O desabafo é da atriz Taís Araújo em entrevista à edição de maio da revista Marie Claire. Poderia ser apenas mais uma constatação, entre tantas, da exclusão étnica escancarada em nosso país. Mas o que torna ainda mais reveladora a declaração da atriz é que o colégio de brancos onde ela estudou não fica no Leblon, em Ipanema ou qualquer bairro bacana da Zona Sul do Rio. O Metropolitano, onde apenas as funcionárias da limpeza eram negras, fica no Méier, o populoso bairro do subúrbio carioca onde Taís morava. Por ser um subúrbio, onde tradicionalmente vive a parcela da população com menor poder aquisitivo, muitos poderiam imaginar que a diversidade étnica no colégio seria um pouco maior, mesmo sendo ele particular. Até porque as mensalidades eram mais em conta do que nas escolas de elite da Zona Sul. Nada disso.

Existem exemplos muito piores de exclusão étnica do que a experiência vivida por Taís Araújo. Bem antes dela, nos anos 50, passei a infância em um subúrbio perto do Méier, o Rocha. Sempre percebi a pequena presença de negros tanto no bairro como nas duas escolas onde estudei, a Pareto e a José Veríssimo. E eram escolas públicas! Mesmo nelas, além de minoria os negros eram quase sempre mais pobres do que os outros alunos. Na José Veríssimo lembro bem das meninas do Asilo Anália Franco, na Avenida Marechal Rondon, que chegavam em grupo para estudar, disciplinadas e retraídas. Todas negras ou mestiças.

Na grande vila onde eu morava, pertinho da escola, a situação era muito pior, do ponto de vista da exclusão étnica. Na verdade, eram duas vilas paralelas com 80 casas construídas pelo antigo IAPC para comerciários. Ali, onde todas as famílias eram de classe média baixa, e onde se pagava uma taxa mensal simbólica que nem podia ser chamada de aluguel, só havia um menino negro, filho adotivo de um casal branco. Poucos sabiam seu verdadeiro nome porque era conhecido por um apelido embranquecedor: “Moreno”. Os negros que entravam nas vilas diariamente eram os garis da prefeitura, que recolhiam o lixo, as empregadas domésticas e lavadeiras.

A barreira do vestibular e dos concursos

Assim era o Rocha e suas redondezas nos anos 50: em sua esmagadora maioria, os negros viviam confinados em guetos – as favelas das redondezas: Mangueira, Matriz, Sampaio, Esqueleto eram pequenas Áfricas, como a Praça Onze da Tia Ciata. Nessas favelas, ou em periferias bem mais distantes, estava a mão-de-obra que servia à classe média baixa da região, ou mesmo às famílias da Zona Sul. Numa época em que não havia máquina de lavar, várias famílias da vila tinham lavadeiras, que chegavam sempre carregando uma ou duas trouxas pesadas. As roupas lavadas e passadas eram arrumadas de tal forma, compactadas, que pareciam se multiplicar quando a trouxa era aberta. A nossa lavadeira era a Dona Maria, uma lutadora que morava em Belford Roxo e tinha três filhos: Jeucedina, Joquebé e Benjamin. Quase sempre ela trazia um deles para ajudá-la a carregar as trouxas.

Naquela época, com boas escolas públicas, as crianças da classe média baixa dos subúrbios tinham maior chance de chegar a uma faculdade. Era um tempo em que a maioria das meninas sonhava em ser professora do ensino básico. A prova para ingressar no Instituto de Educação era considerada difícil. Lá, também, a história se repetia: as normalistas eram quase todas brancas. É preciso notar que, em todo esse processo, não havia leis de apartheid, como poderia parecer a um estrangeiro que desembarcasse no Brasil. A seleção que deixava os negros do lado de fora conseguia ser ainda mais cruel. E era vista como natural.

Com a destruição criminosa da rede pública de ensino (e de saúde), tudo piorou. A partir dos anos 80, as famílias da classe média baixa passaram a se sacrificar ainda mais para botar os filhos em colégios particulares mais baratos. E as escolas públicas destruídas – aí, sim – viraram colégios de negros e mulatos. Para se constatar, não é preciso ir ao subúrbio: basta observar a entrada ou saída de uma escola municipal ou estadual da Zona Sul carioca. Tudo isso perpetuou uma distorção cruel, desigual, feita para humilhar e acabar com a autoestima de qualquer um: a barreira do vestibular e dos concursos de um modo geral.

Uma única vestimenta

O jovem que frequenta bons colégios, cursos de idioma e cursinhos preparatórios tem chances infinitamente maiores do que aquele que só teve como opção as escolas públicas desmanteladas. Como falar em meritocracia entre desiguais? Essa injustiça provoca um efeito cascata que vai desaguar no mercado de trabalho. Quando comecei a trabalhar na imprensa, no início dos anos 70, os negros estavam quase sempre nas editorias de polícia. Ou nas manchetes policiais. Os jornais destilavam um enorme preconceito contra negros e homossexuais.

Se um negro cometia um crime – ou era simplesmente acusado –, a cor da pele era destacada na notícia. E também as “feições grosseiras”, expressão muito comum naquele tempo. Os homossexuais eram chamados de “anormais” e “invertidos sexuais”. Isso não acontecia apenas em jornais sensacionalistas, mas em todos. Pelo menos nesse ponto a situação melhorou, mas ainda hoje os negros são minoria nas redações. A não ser entre os funcionários encarregados da limpeza.

A decisão do Supremo Tribunal Federal no dia 26 de abril foi histórica. As cotas são uma medida emergencial e devem vigorar até que se garanta a todos a mesma oportunidade de um bom ensino, principalmente o ensino público, para os mais pobres. Isso tem que ser para ontem. Considero saudável o debate sobre as melhores formas de se estabelecer o sistema de cotas. Mas a ideia de que elas sejam voltadas para os pobres de um modo geral, sem considerar entre eles, prioritariamente, os negros e os índios, esbarra em uma questão de justiça: essas duas etnias foram vítimas, em passado muito recente, de uma política oficial de genocídio. Se, além de pobre, o candidato for negro ou índio, deve ter prioridade.

Não me convencem teorias simplistas, como a de que a miscigenação e a aculturação – no caso dos índios – eliminaram ou diluíram o conceito de etnia. É absurdo, cruel, inaceitável que em estados brasileiros com tamanha presença de afrodescendentes, como o Rio de Janeiro, os negros continuem trajando uma única vestimenta nos locais de trabalho, nos edifícios da classe média, nos colégios particulares e nas faculdades: o uniforme das firmas de limpeza, como bem reparou a atriz Taís Araújo.

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[Rogério Marques é jornalista]