Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

As línguas faladas no Brasil

Ao ler nesteObservatório o artigo “Os custos do monolinguismo“, de Aline da Cruz, prejulguei tratar-se de uma jornalista. Possivelmente, uma colega de profissão no início de carreira. Ou talvez um dos muitos jornalistas que fazem um bom trabalho, em meio à (o)pressão da pauta e do fechamento online do dia a dia. E, assim imaginei, não conseguiu pesquisar adequadamente antes de escrever o artigo. Afinal, estatisticamente, apenas uma minoria de brasileiros sabe que o Brasil poderá ser, no máximo, uma nação oficialmente monolíngue. Mas que, na prática, do Oiapoque ao Chuí aproximadamente 238 povos indígenas usam mais de 180 línguas.

A frase “mais de 180 línguas” é simplesmente para lembrar que centenas de milhares de indígenas praticam diariamente o multilinguismo que a autora do artigo gostaria de ver implantado no Brasil.

Eu vivenciei pessoalmente o multilinguismo indígena, bem no meio da Zona Sul do Rio de Janeiro. Em 2005, eu estava no Museu do Índio, pesquisando para escrever a primeira biografia em português do etnólogo brasileiro Curt Nimuendajú. Num intervalo, puxei papo nos jardins do museu com um homem com evidentes traços indígenas. Assim que ele me disse em português que era de uma tribo do Espírito Santo, respondi em yopará, um misto de castellano e do guarani paraguaio. Ele me respondeu no que seria o nheengatú do sudeste do Brasil. Durante a nossa conversa, ficou claro que esse indígena, além do português e do nheengatú, também falava a língua de sua aldeia.

Visão oficial

A maior surpresa do artigo, porém, estava no final: a autora é doutora em Linguística e autora de um trabalho intitulado “Fonologia e Gramática do Nheengatú”. Por que será que ela se refere ao Brasil como um país monolíngue se, por dever de ofício, sabe que (ainda) existem indígenas no país e que estes falam idiomas diferentes do português?

Na internet, li que a autora, docente da Universidade Federal de Goiás, é suplente da banca examinadora na Unicamp que, em 28 de agosto, vai avaliar a tese de doutorado “Povo Umatina: a busca da identidade linguística e cultural”. Como este povo até hoje ainda habita áreas do Mato Grosso, será a suplente o alter ego da pessoa que no artigo aponta a inexistência de “comunidades bilíngues no país”? Nele, a autora lamenta, isso sim, o pouco incentivo do governo ao aprendizado do inglês, do espanhol e do francês.

A questão não é pessoal com a autora do artigo. É pessoal com os leitores, que poderiam ver confirmada a visão oficial de que no Brasil só se fala o português. Mas principalmente com cada indígena, cuja existência é negada pelos termos do artigo.

Da minha parte, retifico o meu apressado prejulgamento, comparando uma hipotética “colega de profissão no início de carreira” a uma doutora em Linguística.

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[Salvador Pane Baruja é jornalista em Bochum, Alemanha]