Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um verão de “alarmismo construtivo”

Alarmismo construtivo? Há jornalistas que defendem ser papel da imprensa alarmar mais até do que informar. Alegam que o alarme e o escândalo deixariam acuados os responsáveis, mobilizariam o público, provocariam mudanças. A escandalosa imagem de uma criança queimada durante a Guerra do Vietnã, que sensibilizou mais que milhares e milhares de horas de informativos telejornais e ajudou a acabar com o conflito, seria um exemplo a sustentar essa tese.

Mas se O Globo pretende embarcar na linha editorial do “alarmismo construtivo”, seus leitores merecem que o jornal se esforce para manter um mínimo de bom senso. E esse mínimo ficou muito longe de ser alcançado pela reportagem da série “Dois anos depois, nada mudou”, que recebeu chamada de capa na edição da quarta-feira (12/12), com o título que sentencia: “Serra despreparada para as chuvas” e no editorial da edição seguinte. Dentro do jornal, sob outro título alarmista – “Mais um verão de medo” –, O Globo abre duas páginas para um texto que se sustenta, basicamente, sobre algo que não poderia ser mais vago e impreciso: a opinião de “especialistas”. Eles (ninguém ainda sabe quem são) alertam que bastaria metade das chuvas dos dias 11 e 12 de janeiro de 2011 para ocorrer outra tragédia igual. Impressionante!

O que os leitores assustados entenderão? Que metade da quantidade de água que caiu naqueles dias provocaria pelo menos outros mil mortos. Porque foi isso, o espantoso número de mortos, que fez da tempestade uma tragédia. Não foram ruas enlameadas, as casas que caíram ou as pedras que rolaram. As vidas que se perderam foram “a” tragédia. E o jornal O Globo diz, com base nesses nebulosos “especialistas”, que com apenas metade daquela chuva poderá haver outra catástrofe. Cria pânico entre moradores da serra e carimba uma região inteira como área de risco no verão. Pois bem, o Globo está defasado e, “os especialistas”, errados.

Faturamento zerado

O jornal parece ter esquecido que existiu um verão entre o da tragédia e o que se aproxima. Foi o verão de 2011/2012. Consultem o calendário. Repórter, redatores e editores não se preocuparam sequer em conferir se a quantidade de chuva que “os especialistas” dizem que poderá provocar uma nova tragédia não teria caído no verão passado. Pois é lamentável precisar fazer o dever de casa desses jornalistas e afirmar que sim, essa tal quantidade já caiu, e não apenas uma, mas duas vezes, e a tragédia não se repetiu. Nenhuma pessoa morta, nada de extraordinário aconteceu. É consultar o site do Inea, buscar uma das estações do instituto em Nova Friburgo. Por exemplo, a da Praça do Suspiro, onde foi registrada a mais famosa imagem da catástrofe, quando uma imensa massa de terra desceu destruindo o teleférico da cidade, a sua igreja mais famosa e deixou sua praça mais “turística” sob milhares de toneladas de lama.

Pois bem, nos dias 11 e 12 de janeiro de 2011, essa estação específica registrou um volume total de chuva de 230,2 milímetros. Foi a chuva da tragédia medida naquele ponto, onde uma parte da montanha desceu sob o foco de um cinegrafista amador. A metade de que falam “os especialistas” seria, então, 115,1 mm. Correto? Pois menos de um ano depois, entre os dias 1 e 2 de janeiro de 2012, o volume da chuva torrencial que começou a cair ainda na virada do ano chegou a 125,2 mm nessa estação (e não foram contados os 13,2 mm registrados no fim da noite anterior, entre 22h do dia 31 e o momento em que os fogos explodiam).

Nova Friburgo iniciou o ano sob forte chuva, mas sem mortes e sem tragédias. E isso a despeito de o município ter assistido poucos dias antes a posse do seu terceiro prefeito em três anos, viver uma crise por conta de seguidas denúncias de desvio das verbas enviadas para a recuperação do município e possuir uma estrutura muito, mas muito mais “despreparada” que a de agora – nem as sirenes estavam instaladas ainda. Mas além dessa chuva fortíssima, o município recebeu outra carga dos céus ainda em janeiro. Nos dias 28 e 29 a estação do Suspiro registrou mais água: 152,4 mm. E novamente o município, ainda despreparado e em crise administrativa, passou pela tempestade – com volume bem superior a tal marca fatal dos “especialistas”, de metade do volume de chuva da tragédia – sem registrar maiores ocorrências.

Portanto, não é verdade o que predisseram os especialistas. Nenhuma das fortes chuvas registradas pela estação do Suspiro reproduziu a tragédia de 2011. Mas cada reportagem preconceituosa, cada matéria generalista e alarmista, produz e prolonga uma tragédia econômica com a qual o Globo não parece se incomodar. Graças a notícias como a da série “Tudo igual na Serra”, o setor turístico de Nova Friburgo está prestes a perder a terceira alta temporada de verão seguida! São dois a três meses de faturamento zerado! Será que alguém no Globo tem ideia do que é não receber salário durante dois ou três meses?

Calor, estresse e doenças

Talvez repórteres e editores do jornal acreditem que quem vive de turismo é rico e por isso não merece maior preocupação. Por isso, não custa informar: a imensa maioria dos “empresários” desse setor, que na serra é composto por pequenos restaurantes, lojas e pousadas, tem renda média familiar em torno de 10 salários mínimos. E a esse valor, do qual saem despesas para o negócio andar, não se somam 13º, FGTS, férias, abonos, distribuição de lucros, plano de saúde, nada!

Na região de Mury, Lumiar e São Pedro da Serra, que juntas respondem por quase 70% da área total de Nova Friburgo e praticamente todo o movimento turístico da cidade, mais de 300 famílias vão passar o fim do ano sem saber como pagar as contas e com um único e grande medo, que nada tem a ver com chuva, já que nenhum ponto dessas regiões foi atingido por catástrofe alguma: o de que o jornal O Globo, a TV Globo e suas afiliadas do interior façam o setor inteiro passar o verão no vermelho. Por tudo isso, pedimos que O Globo tenha mais consideração e cuidado com a Região Serrana de uma maneira geral e com Nova Friburgo, especificamente. Que denúncias sejam feitas, se tiverem base. Que alertas sejam dados, se houver como comprovar a necessidade. Mas que o jornal pare de alimentar o preconceito sem sentido de que a imensa Região Serrana é uma área de risco no verão.

Nova Friburgo é um município enorme. Dois terços da área do município do Rio, talvez mais. Durante a forte chuva de janeiro de 2011 sequer 15% do município sofreu com desmoronamentos, deslizamentos e enchentes. Generalizar com uma região tão vasta quanto a cadeia de montanhas do nosso estado é tão equivocado quanto se um jornal da serra, ao saber de uma ressaca que jogou areia nas ruas da orla do Rio, estampasse: “Ressaca soterra o Rio em areia”. E, diante do fato de que ninguém aí nunca vai evitar uma ressaca, dois anos depois, nosso jornal publicasse a série “Tudo igual no litoral” com o título “Capital despreparada para ondas altas”.

A Serra é linda, bem preservada, uma das áreas mais ricas em biodiversidade do estado e é, sim, o melhor destino para quem quer fugir do calor, do estresse e das doenças do verão que estão aí embaixo matando – em 10 anos, mais que todas as chuvas da serra juntas! –e penalizando a população que, fora dos charmosos bairros da Zona Sul, vive sufocada, apertada, exposta a toda sorte de violência e perigos. É exagero? Não temos porque apurar direito, não é? Afinal, não moramos aí…

***

[Carlos Pinho é médico, presidente da Associação do Comércio e da Indústria de São Pedro da Serra, Nova Friburgo, RJ]