Thursday, 18 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A negação da impunidade

Ultimamente tenho deixado de lado a prática de exteriorizar uma grande preocupação que sempre tive e que se aguçou tanto quando exerci o cargo de Administradora Regional da Sé, o centro de São Paulo, como quando fui presidenta da Comissão de Relações de Trabalho na Assembleia Legislativa e me dediquei ao tema de acidentes e doenças do trabalho.

Estou falando da preocupação com a responsabilidade individual, coletiva e institucional, na prevenção em suas mais variadas faces, ou dito de outra forma, na negligência das pessoas (técnicos, autoridades etc.) quanto a responsabilidade sobre sua própria segurança física, sua vida e a dos outros. Estou falando da irritante sensação de impunidade que envolve muitas pessoas, grande parte delas muito bem informadas e supostamente bem formadas.

Vocês podem perguntar por que deixei isso de lado? Por que abandonei uma verdadeira militância que eu acreditava ser essencial além de altamente altruísta? Vou contar da maneira mais simples possível. Abdiquei de chamar a atenção e tentar atuar nesse âmbito porque sistematicamente ou as pessoas se ofendiam pois entendiam que estou duvidando de sua capacidade de não serem atingidas, ou simplesmente muitas pessoas não davam atenção e saíam da conversa me tachando de chata em inúmeras situações em que busquei alertar .

Cansei e mudei meu procedimento: tenho assistido silenciosamente às mais incríveis imprudências para evitar atritos, inclusive com amigos queridos cuja amizade quero preservar, sempre.

Mas, quando vi a notícia da tragédia de Santa Maria (RS) senti uma necessidade enorme de retomar o assunto. Chorei tanto, tanto, tanto… e ainda choro. Choro pelo ocorrido. Choro por aqueles meninos e meninas tão jovens. Choro pelo que não foi feito. Choro por essa horrível sensação de impotência de quem não pode mais fazer nada. 

Certeza traiçoeira

Provavelmente, depois de desabafar, voltarei para a situação anterior de mera observadora/constatadora, porque é muito duro você falar com as pessoas sobre suas próprias vidas e receber uma porrada de troco. Entendo isso porque sempre rejeitei os alertas de quem procurou me ajudar quando eu fumava. Entendo mas não concordo. E aproveito o momento para confessar que se há algo na minha vida de que me arrependi, é exatamente de ter fumado. E de nada mais.

Quero registrar junto a vocês, pessoas com quem convivo, trabalho, rio e choro, que fico mais e mais indignada por se tratar de coisas simples: leis, informações, procedimentos. Está tudo aí, ao alcance da mão, da internet. Não se trata de fenômenos extraordinários sobre os quais o ser humano não tem controle ou (o que é quase o mesmo) não tem conhecimento. Lamentavelmente a maioria das pessoas só se dá conta do que poderia ser feito depois da catástrofe.

Quem nunca ouviu as frases “só uma vez não faz mal”, “não se preocupe, eu dirijo bem falando ao celular”, “só faz pouco tempo que está vencido”, “pra que tanto exagero” etc. Eu poderia ficar horas a fio citando frases como essas que cansei de ouvir. Quem transa sem camisinha, quem deixa extintor vencido, quem atende celular dirigindo, quem emite alvará fora da lei e quem corrompe essas autoridades, todos fazem parte de um conluio silencioso, não declarado, às vezes até inconsciente.

Tudo que eu quero, tudo que eu sonho, é que ninguém mais faça parte desse conluio. Tudo que eu quero é que sejam incorporadas ao cotidiano das escolas, dos locais de trabalho e lazer, dos condomínios e demais ambientes, em cada família, nos meios de comunicação, as informações, os procedimentos, tudo que é necessário para fazer da prevenção uma rotina, uma normalidade.

Uma coisa é viver os perigos da vida, como ensina Guimarães Rosa. Uma coisa é fazer parte de uma geração, de um povo, que por motivos diversos se expõe a alguns perigos.

Outra coisa é deixar de fazer algo que está ao alcance da mão sem nenhum objetivo que justifique, sem nenhuma razão, sem nenhum sentido. 

Apenas movido – consciente ou inconscientemente – pela certeza traiçoeira da impunidade.

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[Clara Ant é arquiteta e diretora do Instituto Lula]