Saturday, 20 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

A representação da notícia

Com a cobertura da tragédia em Santa Maria, o Fantástico deu uma contribuição valiosa para o debate acerca do papel e da forma da iconografia jornalística em coberturas como a que se impôs a todos os jornais no último domingo (27/1). Na matéria conduzida pelo repórter César Menezes e pelo repórter cinematográfico Franklin Feitosa, que se concentrava na descrição do que ocorrera no interior da boate e dera início à tragédia, uma animação foi usada como recurso para a reconstituição da sequência dos acontecimentos. No trabalho desenvolvido pelos jornalistas ilustradores Anderson Pessanha, Carlos Sampaio, Eduardo Seabra e Pedro Figueira, figuras construídas em computador, num formato bem próximo ao dos games, ilustraram a reconstituição daqueles minutos fatais.

Longe de ser uma novidade, uma vez que tal recurso pode ser encontrado em sites jornalísticos e que a própria emissora já se valera dele em outras ocasiões, esse tipo de animação se projeta como o formato que pode separar definitivamente as reconstituições televisivas daquelas usadas por jornais e revistas impressos. É claro que não faltarão críticos para apontar os problemas que porventura esses desenhos possam apresentar, mas sua contribuição para o desenvolvimento do repertório adotado pelo jornalismo visual os supera: são desenhos que se movem (como tudo o mais) na telinha e por isso lhe são mais adequados que os desenhos estáticos que a TV adaptava dos impressos.

Mas qual seria a real importância das reconstituições (impressas ou digitais, estáticas ou animadas) para a cobertura? Por que se constituem em uma peça praticamente obrigatória para se reportar fatos dessa natureza?

Registros fotográficos para reconstituir fatos

Do ponto de vista jornalístico, elas representam a visão que não se pode atingir, o registro (fotográfico ou cinematográfico) que não pode ser feito, não por razões técnicas ou de oportunidade, mas sobretudo por motivos editoriais: são imagens explanatórias cujo objetivo é explicar como e por que ocorreu o fato em questão. Enfatizam a relação entre os personagens e objetos que fazem parte do relato jornalístico, porém sem o mesmo valor opinativo de uma charge, o compromisso descritivo de uma fotografia ou ainda sem a complexidade da narrativa do vídeo. Compõem uma espécie de síntese que ilustra o relato, além de fornecer elementos para a compreensão do que ocorreu. Tal síntese revela o esforço de apuração que lhes dá origem, além do trabalho de edição que lhes dá forma. Ao analisarmos a referida cobertura do programa (ver aqui), é possível perceber a diferença de papéis entre as distintas categorias de imagem jornalística e de que modo elas se completam na cobertura.

Curiosamente, nos impressos as reconstituições voltaram a ser tema de discussão a partir da captura e morte de Osama bin Laden, em 2011. Por conta do exagero em algumas delas, até um manifesto foi lançado na internet exigindo outra postura dos profissionais envolvidos na produção desse tipo de relato jornalístico, especialmente por causa do tom apelativo de algumas ou da pouca consistência das versões, que se ofereceram quase como obras de ficção. Apesar de justo em relação aos critérios jornalísticos, o manifesto acabou gerando interpretações equivocadas quanto ao uso da ilustração em jornalismo, sobretudo fora dos limites do gênero opinativo ou como parte de coberturas como as da tragédia de Santa Maria.

A questão do rigor jornalístico na apuração e na identificação das fontes para ilustrações desse tipo não é novidade e pode ser observada, por exemplo, nas críticas a alguns desenhos de Henrique Fleiuss na Semana Illustrada, ainda no século 19. Pelas limitações técnicas para a impressão de fotografias em jornais na época, desenhistas se valiam dos registros fotográficos para reconstituir cenários e fatos, que seriam impressos por meio de técnicas de gravura. Isso ocorreu na cobertura da Guerra de Secessão americana e na nossa Guerra do Paraguai. Fleiuss produziu algumas cenas que não existiram, como a visita de D. Pedro II a soldados feridos ainda no campo de batalha, oferecidas como registro fiel dos acontecimentos. Enquanto Henrique Fleiuss moveu-se por seu comprometimento político com a monarquia, no caso da cobertura de Bin Laden as razões para as distorções foram outras, eminentemente comerciais.

Linguagem verbal

A partir do manifesto, a presença de ilustrações em infográficos e reconstituições acabou indiscriminadamente rechaçada como se fosse uma violação dos princípios do bom jornalismo, o que não é. Pelo contrário, foi a ilustração quem deu aos jornais a primazia entre os meios jornalísticos visuais. Modificou-se ao longo dos anos em função do desenvolvimento de novas tecnologias que influíram no desenho tanto como na forma dos jornais. A ênfase conferida ao lado comercial dos jornais também interferiu nos títulos ou fotos, porém, por suas características de produção, se destacou nas ilustrações muitas vezes orientadas para serem apelativas. É esse tipo de orientação que precisa ser combatido, e não a técnica.

Do ponto de vista da edição, a ilustração usada em reconstituições e infográficos corresponde à representação de indivíduos ou objetos envolvidos no relato de modo a complementá-lo naqueles aspectos (narrativos, descritivos etc.) que escapam à linguagem verbal no espaço da página de notícias, do mesmo modo como a ilustração depende da linguagem verbal para atingir determinadas abstrações. No caso específico de textos híbridos ou multimodais como reconstituições e infográficos, é exatamente essa outra metade, a verbal, que lhes garante a compreensão e a contextualização diante dos fatos. Na cobertura de acontecimentos como os de Santa Maria, são necessárias não para comover, mas por contribuírem para esclarecer e fornecer elementos a fim de que os leitores possam se posicionar – debatendo, reivindicando, fiscalizando ou se protegendo – em relação ao estado de coisas que levou à tragédia e que, como sabemos, ainda se espalha pela sociedade.

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[Ary Moraes é jornalista e professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro]