Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

O pós-martírio do repórter televisivo

Apesar de ser um elemento usual nos telejornais de hoje, a cobertura próxima dos fatos feita pelos jornalistas de televisão, enfocando as tragédias do cotidiano não estava presente desde o início dessa prática. Nos tempos da transição do rádio para a televisão, ou seja, nos tempos do Repórter Esso, os fatos do cotidiano eram contados dentro do ambiente controlado dos estúdios, o análogo perfeito da sala de cirurgia para o jornalista onde tudo é estéril: som, imagem e jornalista.

Foi apenas nos anos 1970 que o telejornalismo brasileiro inaugurou sua faceta “hospital de front”, onde tudo era marcado pelas cores vivas do externo, bem como seus ruídos e uma postura mais envolvida do repórter. O marco dessa evolução foi a aquisição de câmeras CP [camera products] pelo jornalismo da Rede Globo que, além de serem mais leves, tanto filmavam em externa como captavam sons sem a necessidade de operador. Eis aqui a invenção daquilo que podemos chamar de tempo presente no jornalismo. As reportagens, tanto ao vivo quanto em vídeo-tape, apresentavam o gerúndio dos fatos com um eterno “estamos aqui”, mesmo sendo transmitido para o espaço-tempo diferente do telejornal.

Em um texto de análise acerca do programa Profissão Repórter, escrito pelo autor do presente texto – em coautoria com Eliza Bachega Casadei e publicado como capítulo do livro Profissão Repórter em diálogo (organizado por Rosana de Lima Soares e Mayra Rodrigues Gomes, Editora Alameda, 2012) –, há a constatação que a guinada que câmeras tais como a CP deram ao telejornalismo foram a possibilidade de utilizar duas estratégias de linguagem claras que os gregos, em seus trabalhos de retórica e argumentação, chamavam de enargia e martyria. A enargia é a estratégia que consiste na descrição clara, lúcida e vívida dos fatos enquanto a martyria é o tropo de confirmar algo pela própria experiência de alguém. Com isso, as telerreportagens com seus textos e imagens redundantes, bem como a presença do repórter no local do fato, ganharam o dia-a-dia da cobertura noticiosa, alternando entre o sensacionalismo e a prestação de serviço público.

O pós-martírio televisivo

No entanto, as tragédias recentes, tais como o incêndio da boate Kiss na cidade gaúcha de Santa Maria em janeiro de 2013, estão ganhando uma nova caracterização pelo telejornalismo brasileiro. Elas, além de apresentarem uma cobertura marcada por repórter que descrevem os fatos de maneira clara, lúcida e vívida (enargia) nos próprios locais onde a notícia está acontecendo (martyria), demonstram a possibilidade de um novo uso da confirmação de algo pela experiência de alguém. A esse uso, podemos dar o nome de pós-martyria, ou seja, pós-martírio.

O pós-martírio se caracteriza pela presença do repórter no local do fato após seu acontecimento e, especialmente, após sua cobertura inicial. Ou seja, ir ao local de um assassinato pela primeira vez ainda é martyria. Fazer uma série de reportagens diárias, sempre indo no local, temos o pós-martírio. Com isso, o pós-martírio se torna uma ótima opção para os repórteres televisivos fazerem suas passagens (momento da telerreportagem quando o repórter aparece em cena empunhado o microfone e dando prosseguimento à narrativa jornalística), vinculando sua matéria àquelas do dia anterior.

Muitas vezes, o pós-martírio se torna uma forma de supervalorizar tanto o fato como o papel do jornalismo televisivo. Isso acontece quando ele se torna uma opção não só para a telerreportagem, mas também para a apresentação do telejornal. A tragédia de Santa Maria nos apresentou um bom exemplo disso quando, na edição de 28 de janeiro de 2013, William Bonner apresentou o Jornal Nacional diante da ruína da boate Kiss.

Passados quase dois dias da tragédia, que aconteceu da madrugada entre os dias 26 e 27 de janeiro, não havia mais nenhuma atividade na boate. Os novos fatos se desenrolavam no ginásio da cidade de Santa Maria, utilizado como local para reconhecimento dos corpos, e nos cemitérios da cidade. A imagem da boate incendiada também tinha sido o foco por todo o dia anterior na televisão e na Internet, chegando à mídia impressa na manhã do dia 28.

O que o Jornal Nacional fez – sair do estúdio e ser apresentado na rua, no local do fato – não foi inédito, mas também não pode ser tratado enquanto usual. O uso de tal artifício de linguagem televisiva só serviu para reforçar a função testemunhal do telejornal e das reportagens que eles apresentariam. O ato de ir ao local do fato após sua ampla publicização só demonstra uma acentuação da cobertura, uma maneira de hiperbolizar a função do jornalista.

Deontologia e as hipérboles

Ora, a atitude da linha editorial do Jornal Nacional ao levar seu frontman e editor-chefe após o fato parece, cada vez mais, uma peça da ampla batalha que as diversas formas de jornalismo travam entre si. Desde o advento das mídias digitais, o jornalismo busca o reforço do seu espaço. Espaço esse que precisa ser reforçado tanto entre as práticas midiáticas que englobam o jornalismo como pelo próprio exercício profissional diante das tentativas de descentralização do foco informacional.

Na questão entre as diversas práticas midiáticas, o exercício do pós-martírio jornalístico pela televisão é uma luta pela manutenção da legitimidade do veículo enquanto principal fonte de informação para a amplitude da população brasileira. Não só um fato possui sua importância reconhecida quando um telejornal vai até ele, mas também os telejornais se reforçam publicamente ao irem até o fato.

Já na disputa entre o exercício profissional e a prática amadora da veiculação noticiosa, a tragédia de Santa Maria apenas ressaltou um predomínio da mídia tradicional diante das diversas formas informacionais que as redes digitais podem exercer. O que vimos, uma semana após o fato, é que, ao contrário de outros fatos de ampla cobertura, o jornalismo profissional mais ativo enquanto fonte de informação acerca da tragédia. Com isso, o pós-martírio, o ato de permanecer no local do fato após o fato, só foi uma forma de reforçar a vontade jornalística profissional de noticiar.

Eis aqui um cumprimento da deontologia jornalística, desse saber-como-fazer que ensinamos aos principiantes tanto nos cursos universitários quanto nas redações. O pós-martírio é apenas uma decisão editorial e um princípio de linguagem que o jornalista televisivo utiliza para reforçar sua função testemunhal diante da notícia. É apenas mais uma forma de dizer que é uma voz autorizada, pelo interesse público, de dizer que “esteve lá” e por isso “podem acreditar nele”.

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[Rafael Duarte Oliveira Venancio é professor e coordenador do curso de Rádio e TV da FMU-FIAM-FAAM]