Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O preço salgado da lágrima

Esta reflexão originou-se do comentário de Beatriz Güenter ao artigo de Pedro Aguiar, intitulado “Como usar o drama para fazer marketing”, publicado neste Observatório. O artigo critica a postura do jornalismo, utilizando, como foco, o comportamento editorial do JornalNacional frente a uma tragédia como a da boate Kiss, em Santa Maria. Na primeira frase de seu comentário, Beatriz denuncia:

“Mais chato que isso são as câmeras espremendo os olhos das pessoas até extraírem lágrimas”.

Evidenciei a afirmação acima em parágrafo independente, na esperança que a frase possa causar, a alguém que arrisque minhas linhas, o mesmo impacto que experimentei. Com um único ato, coloca em minha boca as palavras ausentes nos incontáveis momentos em que, constrangido e boquiaberto defronte a TV, atravessei os eternos segundos arrastados entre a pergunta oportunista – “O que você está sentindo?” – e as lágrimas certas e fáceis, espremidas pelo close no enquadramento: recurso técnico que procura, como objetivo imediato, aumentar o impacto dramático da cena e, como consequência intencional, transmutar a tragédia-fato em tragédia-drama, travestindo, deste modo, familiares em personagens, localidades em cenário, espectadores em plateia, e tela em anfiteatro… do horror.

Neste teledrama-espetáculo, veiculado pelo modelo jornalístico vigente, podemos reconhecer cinco figuras arquetípicas recorrentes, que variando a cada tragédia, compõem as narrativas de nosso cardápio, a saber: vítima, culpado, sobrevivente, familiar e autoridades. Porém, os limites que separam estes personagens-arquétipos uns dos outros são tanto tênues quanto difusos, e variam sua função em tempo real, durante a execução do espetáculo midiático em cartaz: autoridades transformam-se em culpadas, vítimas fatais são acusadas da própria morte, familiares oscilam entre culpados e inocentes, ao sabor da narrativa e da audiência. A vida não acontece em preto e branco. A vida acontece em tons de cinza. E a mídia elenca, de todas as tonalidades possíveis, aquelas que ficam bem na tela – e no próprio bolso. Não se iluda, leitor(a): são profissionais especializados, contratados em troca de polpuda remuneração: não há qualquer incompetência – tudo é planejado, tudo é intencional.

Vítimas indiretas

Não interpretem o paralelo crítico que traço, entre a tragédia-fato e a dramaturgia veiculada pela mídia, como uma insensibilidade de minha parte em relação a esses terríveis acontecimentos, que muito sofrimento e prejuízo trazem às vítimas e à sociedade. Pois ocorre justamente o oposto: sou movido por uma grande compaixão pela pessoa que ali está, sendo entrevistada, em seu momento de extrema dor, e que é forçada a uma resposta emocional destinada às câmeras, premida pela necessidade de uma declaração verbal óbvia, inoportunamente solicitada. Verbalização desnecessária, pois acrescenta palavras, redundantes, a uma imagem que já explicita.

Logo, o que nos resta pensar da repetição dessa farsa? Constitui-se, realmente, uma necessidade imparcial de informar ao público? O que motiva tal repórter a perguntar, para uma pessoa que ali se encontra, com feições pesadas, transtornada, sofredora, como se sente? Será que o público precisa ser informado sobre os sentimentos relativos à perda de uma mãe, de um filho, de uma companheira? Não precisamos. Todos sentimos. Todos sabemos. Há apenas uma explicação possível: manipulação – do entrevistado, em busca da lágrima, e do público, por sua catarse.

Justamente um dos mecanismos desta manipulação, que reafirmo intencional e afirmo perversa, depreendi no exato momento em que concebia estas mal escritas linhas. Todavia, por considerá-lo suficientemente pertinente, peço, ao leitor(a), mais alguns momentos de seu precioso tempo, e de sua atenção. Tal mecanismo descrevo a seguir.

Ao conceito que aqui enuncio, motor desta engrenagem manipulativa de um sistema extremamente complexo, multimidiático, conhecido como jornalismo, que em nossos dias encontra-se representado por jornais, revistas, canais de TV, redes sociais, vídeos etc., denominarei, sem qualquer pretensão à originalidade, desvitimização.

Desvitimização, no contexto jornalístico, constitui-se em um processo pelo qual vítimas, diretas ou indiretas, de algum evento trágico, são destituídas de sua função primária e deslocadas para funções acessórias à tragédia-espetáculo.

Podemos tomar como exemplo de funções acessórias as personagens mãe-da-vítima, pai-da-vítima, marido-da-vítima, namorada-da-vítima, sobrevivente etc. Aquelas, outrora vítimas, ressurgem então, devidamente desvitimizadas, para compor, sem perceber, o necessário e funcional elenco de atores coadjuvantes no drama agora encenado.

Buscando no dicionário Houaiss a confirmação de minhas especulações, sobre o verbete “vítima” encontrei: “pessoa ferida, violentada, torturada, assassinada ou executada por outra”, e também, por extensão de sentido, “ser vivo, mais freq. pessoa, morto ou afetado por acidente, desastre, calamidade, guerra etc.” [grifo meu].

Confirmadas minhas suspeitas, explico-me, na resposta à simples questão: quantas são as vítimas da recente tragédia em Santa Maria?

Respondo, então, sem medo de errar: a tragédia em Santa Maria fez, pelo menos, 2.500 vítimas, distribuídas desta forma: de 1.200 a 1.500 vítimas diretas, compostas pelo público que efetivamente ocupava a boate Kiss na hora do incêndio (fonte: globo.com), das quais 236 foram vítimas fatais (fonte: odia.ig.com.br); e aproximadamente 1.000 vítimas indiretas, estimadas entre familiares, amigos, namorados etc.

Mecanismo intacto

Como se pode perceber, o número de vítimas indiretas é totalmente especulativo, porém, em minha defesa, afirmo que não houve qualquer levantamento deste efetivo por parte da imprensa – e poderes de vidência, estes não possuo. Mas um número correto, ou mesmo aproximado, de vítimas indiretas, torna-se irrelevante para o ponto que desejo salientar: elas existem. Nesta tragédia específica, centenas de pessoas, no mínimo, foram, intencionalmente e perversamente, desvitimizadas.

Onde se encontra a perversão de tal ato? No fato de que, desvitimizada, a não-vítima torna-se, assim, personagem do drama, testemunha da tragédia, e imagem da emoção, bem enquadrada nos telejornais, e em outros veículos que nos servem diariamente, mascarando o abuso vil, desumano e sensacionalista contra uma vítima de tragédia, de “bom” jornalismo investigativo.

Este processo de desvitimização não é exclusivo à tragédia de Santa Maria. O número de vítimas diretas, indiretas ou fatais pode variar – em geral, os números são bem menos expressivos que os da boate Kiss. Porém, o mecanismo de manipulação mantém-se intacto, movendo as imensas engrenagens do espetáculo e preparando o palco para o próximo evento.

No fim, baixadas as cortinas, resta-nos o preço salgado da lágrima avidamente consumida.

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[André Silveira Sampaio é professor e escritor.]