Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Um alerta para se discutir a segurança civil

Santa Maria fica no coração do Rio Grande. Uma cidade precocemente cosmopolita, na qual minha mãe, no início da década de 20 do século passado, foi Rainha do Tênis no Atlético Tênis Clube. E os meninos, cedo se voltavam à arte do basquete. Daí porque, durante os primeiros anos da seleção brasileira, pontificassem ali os santamarienses. Em Santa Maria tive minha infância, minhas primeiras letras, no Grupo Escola Cícero Barreto, meus primeiros amores cultivados no footing das noites de verão na Rua do Comércio, perto de onde houve a tragédia na boate Kiss. Tive sorte, talvez. Naquele tempo não havia boates. Via-se o céu e os morros que circundam a cidade protegeendo-a dos ventos gelados vindo do polo Sul. Ou aquecendo-a, no verão, como uma boca de forno… Na madrugada de 27 de janeiro (2013), este coração parou de pulsar. Ficará preso na tragédia da Boate que vitimou centenas de jovens vidas.

Mas, como diz Fernando Pessoa, “para ir além do Bojador, deve-se ir além da dor”… Sobrepasso, pois, a minha comoção e me detenho em questões que me parecem fundamentais, senão à compreensão da tragédia, para que ela não se repita entre nós.

Começo lembrando que a vida em sociedade impõe preliminarmente o imperativo da Lei, a qual se desdobra no famoso Vigiar e Punir, título de famosa obra do filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) e que divide os advogados entre liberais, à direita, e meta-liberais ou “garantistas”, à esquerda. Será, então, que dispomos de um estatuto legal suficiente para impedir tragédias como a que ocorreu em Santa Maria?

Documentação estava “em ordem”

Honestamente, creio que não. A legislação que existe é dispersa e não atualizada. O problema das grandes aglomerações fica todo remetido à emissão de alvarás de funcionamento das Prefeituras Municipais e, eventualmente, licenças especiais de órgáos especializados como Corpo de Bombeiros e Secretaria de Saúde.

Na minha experiência como secretário do Meio Ambiente do Distrito Federal percebi, apesar da boa e farta legislação de proteção ambiental, a insuficiência de um conceito abrangente de segurança civil. O capítulo que trata da segurança na Constituição restringe-se aos conceitos tradicionais de Segurança Nacional, a cargo das Forças Armadas, e Segurança Pública, sob a responsabilidade das Polícias Civis e Militares. A ideia de Segurança Civil, porém, vem ganhando corpo no mundo inteiro em função não apenas de gravidade dos acidentes de origem natural ou humana, muitas vezes combinados, como no recente caso japonês, mas da emergência da sociedade do espetáculo, nas quais grandes aglomerações se juntam em estádios, em shows musicais e até manifestações religiosas.

A tragédia de Santa Maria traz o assunto à tona. São visíveis as evasivas das autoridades frente à pergunta crucial: a boate Kisse estava legal? Segundo o prefeito Cezar Schirmer e o comandante do Corpo de Bombeiros, estava. Causou-me espanto, por exemplo, ouvir e ver o prefeito Cezar Schirmer falar às redes de rádio e televisão, afirmando que a documentação da boate estava “em ordem”. Mas que “ordem” é essa? O prefeito demonstrou desconhecer não apenas a sua responsabilidade sobre os fatos lamentáveis, como a legislação nacional que regula o funcionamento de casas noturnas. Em boa hora, aliás, tem-se notícia de prisões preventivas que já foram levadas a cabo. Nenhuma, aliás, de autoridade pública… Em outro caso, similar ao de Santa Maria, em Buenos Aires, no início dos anos 2000, o prefeito, notório político de projeção nacional, não só foi responsabilizado, como teve sua ascendente carreira interrompida.

Basta de simplismos

Ouvindo-se inúmeros especialistas em segurança, incêndios e normas técnicas nas redes de televisão, que pronto se deslocaram para Santa Maria cobrindo a tragédia, vê-se que houve, realmente, falhas da fiscalização, as quais, diante das afirmações de autoridades darão, certamente, argumentos aos advogados de defesa dos acusados pela ocorrência, livrando-os da punição. Mas não esmoreçamos: ponto fundamental desta tragédia é a definição de responsabilidades e punição dos considerados culpados. Sejam empresários, sejam pessoas, sejam autoridades. Duela a quién duela…

Outro ponto importante a se ressaltar é a consciência e responsabilidade civil de cada um de nós, o que vai constituir uma cultura de prevenção a indêndios e tragédias naturais ou incidentais no longo prazo: autoridades, cidadãos, empresários. De nada adianta uma legislação avançada, nem mesmo uma fiscalização rigorosa e um sistema judicial rápido e eficiente, sem que todos se conscientizem dos riscos que espetáculos de grande público e casas de espetáculos representam. Tudo indica que não estamos sendo educados para enfrentar situações críticas de ruptura das ordens natural, pública e social. Um depoimento da engenheira agrônoma Maria Alice Costa Corrêa, de Santa Maria, RS, dá conta de como sobreviveu, há anos, a um tumultuoso incidente que resultou em mortos e feridos, graças à sábia orientação de um jovem americano que a acompanhava. Ele aprendera os procedimentos na sua escola, nos Estados Unidos. Tinha 12 anos…

É porque vivemos em sociedade, enfim, que a moral e a Lei existem e se impõem. E temos todos que atentar para a elevada responsabilidade que implica o empreendimento de reuniões com grandes aglomerações. Basta de simplismos ou fórmulas de enriquecimento rápido, na base do “Deus é brasileiro” ou “Não vai acontecer nada”. Lembremo-nos da Lei de Murphy: “Se algo tem tudo para dar errado, pode ter certeza de que vai dar errado”. Que a tragédia de Santa Maria nos sirva, pois, de lição. E que comecemos a compreender, cada vez mais, que defesa e segurança civil não dependem apenas de regulamentos e corpos especializados por eles responsáveis, mas também de um aprofundamento conceitual do assunto, como de uma ampla articulação destes corpos estatais à sociedade civil.

Projeto de Lei, uma iniciativa

A propósito, enfim, das notas de condolência e solidariedade de vários parlamentares, uma observação: da minha parte, como santamariense de coração, grato pela sensibilidade. Mas ficaria mais grato ainda se os senhores se debruçassem sobre o significado e implicações de uma sociedade de espetáculo, povoada de grandes eventos públicos, como rodeios, carnaval, partidas de futebol – e graves acidentes ambientais. Ouso sugerir, até, a convocação de uma CPI mista do Congresso para analisar estas questões e chamar a atenção sobre um assunto que afeta todas famílias brasileiras. Não uma CPI de governo x oposição, com denúncias , impropérios e pizzas. Mas a favor do Brasil. A Copa do Mundo em 2014 agradeceria a iniciativa…

Enquanto isso, uma iniciativa prosaica: proibir shows pirotécnicos, a saber:

Câmara dos Deputados

Projeto de Lei nº …

Proíbe exibição pirotécnica em casas de espetáculos

Art. 1 – É terminantemente proibida a exibição pirotécnica com o uso de fósforos, fogos e material inflamável em ambientes fechados como casas de espetáculos e diversões, teatros, igrejas e escolas.

Art. 2 – Revogam-se as disposições em contrário.

Art. 3 – Esta Lei entra em vigor na data da sua publicação.

Justificação

A ocorrência da tragédia na boate Kiss, no município de Santa Maria, RS, na madrugada de 27 de janeiro de 2013, que provocou mais de 230 mortes e quase outro tanto de feridos, merece uma pronta resposta da sociedade brasileira. O governador do estado do RS, Tarso Genro, aliás, em entrevista a várias cadeias de rádio e televisão, pontificou: “O Estado não pode estar presente em cada evento, ao longo de todo o território nacional o tempo todo. Os shows pirotécnicos, portanto, deveriam ser proibidos.”

Este projeto proíbe terminantemente o uso de shows com fogos de artifício ou mero uso de fogo em ambientes fechados.

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[Paulo Timm é economista e professor aposentado, Torres, RS]