Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Ave, Giovanna!

A jornalista que nos trouxe uma lufada de frescor profissional esta semana é tudo, menos midiática. Não tem presença no Facebook, se autodefine como “vaticanista fora de moda” em modesta página do Twitter, usa óculos de quem não troca de armação há décadas e mantém os dentes irregulares que a natureza lhe reservou.

Repórter da agência noticiosa italiana Ansa, Giovanna Chirri é credenciada junto ao Vaticano há quase vinte anos. Ser setorista na Santa Sé exige persistência e paciência infinitas. Naquele enclausurado posto de observação vai-se da sonolência à taquicardia máxima. O americano Peter Shadbolt, ex-chefe do escritório da UPI em Roma, já comparou a tarefa a vigiar um sítio de mísseis nucleares: “É, basicamente, uma monótona rotina, até a coisa explodir.” Como diz a piada corrente entre os vaticanistas, “o Papa está sempre em excelente saúde, exceto quando está morto”.

Reza a previdência que convém jamais cabular as tediosas audiências das quartas-feiras, quando o Papa recebe visitantes do mundo inteiro, nem pular qualquer de suas falas dominicais. Por fechada, hierárquica e arcana, a Igreja leva os credenciados a uma rotina de trabalho inversa à dos que cobrem assuntos italianos, onde mudanças de governo, queda de ministros e escândalos em série são a regra. No Vaticano, a qualificação profissional não é medida pela capacidade de dar “furos” na concorrência.

Espanto mundial

Na manhã da segunda-feira (11/2), dos cerca de 60 repórteres credenciados junto à Santa Sé, apenas Giovanna, dois franceses, um japonês e um mexicano cobriam o consistório de rotina para a canonização de fiéis. “É relevante, mas nada que você sublinhe com em vermelho na sua agenda”, explicaria mais tarde um dos presentes, Charles Pechpeyrou, da agência noticiosa i.media.

Encerrado o ritual de canonização, os cinco repórteres viram monsenhor Marini, Mestre das Celebrações Litúrgicas Pontifícias, passar uma folha de papel ao Papa. Foi quando Bento XVI começou a ler em latim a oblíqua notícia de sua demissão.

Como foi fartamente noticiado, apenas Giovanna confiou na sua compreensão do idioma, tornando-se a primeira pessoa a dar ao mundo a notícia-bomba. Assim, às 11h46m (8h46m no horário de Brasília), a Ansa pôde anunciar, antes mesmo da confirmação oficial feita pelo Vaticano: +++FLASH+++PAPA LASCIA PONTIFICATO DAL 28/2+++FLASH+++

Depois de dar um furo desse calibre, 110% dos jornalistas abririam espaço em suas rotinas para saborear a fama instantânea, o assédio, os holofotes. Sabidamente, em qualquer parte do mundo, nossa classe profissional tem na vaidade pessoal e na autorreferência uma de suas molas propulsoras.

O frescor mostrado pela repórter revelou-se na forma como ela navegou pela súbita notoriedade. Solícita, atendeu a todos os colegas com respostas pouco esperadas de uma celebridade da hora. Em sua narrativa do que ocorreu, a primeira pessoa do singular ficou sempre em segundo plano, como se fosse acessória, subordinada ao fato em si.

– Como você se sentiu ao perceber que tinha “furado” todo mundo? – indagou o correspondente da BBC

– Éramos uns três ou quatro na sala e não sei o que os outros faziam – respondeu. – Eu precisava concluir logo minha parte para a Ansa poder noticiar o fato.

– Ao perceber do que se tratava, que pensamentos teve? – quis saber o repórter da CNN.

Católica convicta, ela contou que no primeiro instante não sabia como lidar com notícia tão importante. Giovanna tentou confirmar a renúncia com o porta-voz do Vaticano, mas padre Federico Lombardi não atendeu a chamada de imediato. Ela decidiu, então, enviar o despacho para a Ansa, baseando-se no que sabia ter ouvido da boca de Sua Santidade. Ao espanto mundial com a sua proeza, deu uma explicação simples: “O latim de Bento XVI é bastante fácil de se compreender.”

A pergunta

Nas próximas semanas a cobertura da eleição do novo Papa devolverá ao noticiário mundial a indefectível dúzia de palavras do vocabulário eclesiástico original. É quando a língua oficial do Império Romano, e do saber e da ciência até o Renascimento, readquire vida. O latim foi a língua litúrgica da Igreja Apostólica Romana até o Concílio Vaticano II, dos anos 1960, decidir que missas poderiam ser rezadas nos idiomas de seus fiéis.

Hoje, fora dos círculos eclesiásticos, acadêmicos, jurídicos e científicos, a utilidade do latim é estreita. Casos exóticos sempre existem, é claro. Na Finlândia, por exemplo, uma rádio deve sua notoriedade à transmissão da programação em latim, uma vez por semana. Na Inglaterra, um casal de professores notabilizou-se ao traduzir a obra completa do Dr. Seuss, autor americano de 46 livros infantis. De resto, fazer citações em latim é pedantismo. Ou, como escreveu George Orwell em ensaio sobre Política e a Língua Inglesa, um recurso usado por políticos para obscurecer o que querem dizer e envernizar a falta do que dizer.

Para a vaticanista Giovanna, o latim é uma das ferramentas de trabalho que domina. No episódio em questão, contudo, não foi apenas o sólido conhecimento do idioma que fez a diferença. Foi a coragem de confiar nele para soltar uma notícia tão bombástica. Com informação tão radioativa, um erro equivale à morte súbita de qualquer carreira jornalística.

Sessenta anos atrás, Eddie Marker, Diretor de Notícias de uma rádio e emissora de televisão de Dallas afiliada da rede CBS, comandava a cobertura de uma das etapas da visita do presidente John Kennedy à cidade. Avisado por um técnico de que houvera tiros no trajeto, entrou no ar narrando generalidades para ganhar tempo. Até que um médico de quem era amigo se aproximou e lhe sussurrou no ouvido: “Ele está morto.” Seguiu-se um famoso diálogo:

– O que? Como você sabe?

– Telefonei para o CTI do hospital e me disseram que ele chegou DOD (sigla para dead on arrival , ou “morto na chegada”).

Marker tinha motivos para confiar na sua fonte e deu a notícia que chocou o mundo de forma semelhante à renúncia do Papa. “Eu não sabia o que dizer depois de pronunciar a frase 'O presidente está morto’”, contaria anos depois. Para ouvi-la, https://www.youtube.com/watch?v=2K8Q3cqGs7I.

Em tempo: ninguém perguntou a Giovanna como se diz “furo” em latim.

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[Dorrit Harazim é jornalista]