Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Entre a verdade e o conhecimento

Na busca por informações para minha reflexão anterior, publicada neste Observatório na edição 733, intitulada As faces (ocultas) da verdade, deparei-me na web com os Princípios editoriais das Organizações Globo (http://g1.globo.com/principios-editoriais-das-organizacoes-globo.html), que apresenta, como preâmbulo, uma breve definição de jornalismo. O que lá encontrei motivou estas linhas que agora escrevo.

Antes de continuar, gostaria de afirmar que nada possuo, especificamente, contra as Organizações Globo, ou contra qualquer outro veículo de comunicação: gosto de muitas coisas que produzem, e não gosto de outras tantas. Procuro evitar, sempre que possível, percepções maniqueístas sobre a realidade que nos cerca. Na análise de sistemas complexos – como nossas estruturas sociais, midiáticas, políticas etc. – o bom senso recomenda avançarmos com cuidado, sob a ameaça de cometermos, muitas vezes, os mesmos erros que a outros imputamos.

De início, o citado preâmbulo parece buscar na cautela o necessário solo firme para apoiar seu intento. Afirma ser, o jornalismo, um “conjunto de atividades que, seguindo certas regras e princípios, produz um primeiro conhecimento sobre fatos e pessoas”, constituindo-se “uma forma de apreensão da realidade”. Este parágrafo não apresenta grandes problemas, pois termos como “conhecimento”, “apreensão”, e “realidade”, possuem significados bastante amplos, e foram organizados, por quem os elaborou, de maneira bastante satisfatória, em minha apreciação. Porém, a partir do segundo parágrafo, perde-se tal rumo, como veremos a seguir.

Ataque fulminante

Nos parágrafos seguintes, encontramos diversos equívocos que contrariam, ou desmascaram, o esforço inicial. Em primeiro lugar, o simples fato de referir a controvérsia filosófica sobre a “busca da verdade”, possui o efeito colateral de orientar os sentidos dos termos “conhecimento”, “apreensão” e “realidade”, para suas conotações filosóficas, afastando as mais cotidianas, e tornando insegura a pavimentação, relativamente sólida, empreendida anteriormente.

A maneira um tanto desrespeitosa com que detrata seu opositores configura-se um segundo equívoco. Utilizando uma “tática de guerrilha”, assume posição enganosamente neutra – “Não se trata aqui de enveredar por uma discussão sem fim (…)” – para, em seguida, efetuar um ataque fulminante – “(…) mas a tradição filosófica mais densa dirá que a verdade pode ser inesgotável, inalcançável em sua plenitude, mas existe; (…)”.

Não interessa-nos discutir aqui a existência, ou a não existência, da verdade. Caracterizar, mesmo que indiretamente, as linhas de pensamento que afirmam sua não existência, como “menos densas”, mostra-se atitude questionável, que produz desinformação – o oposto do que deveriam fazer.

Pura manipulação retórica

“É para contornar essa simplificação em torno da 'verdade' que se opta aqui por definir o jornalismo como uma atividade que produz conhecimento”. Com esta afirmação, o texto comete seu terceiro equívoco. A questão da produção de conhecimento, e do conhecimento em si, são áreas de estudo de um ramo bastante “denso” da filosofia: a epistemologia, que por séculos discute a questão do conhecimento com o mesmo vigor, e controvérsia, com que a metafísica discute a questão da verdade. Logo, esta troca não oferece qualquer simplificação para a compreensão da atividade jornalística, e poderá atrair tantos argumentos contrários, quantos antes atraía – incluindo estes de minha reflexão.

Deste modo, causou-me nenhuma surpresa, que em uma única afirmação seguinte, o texto comete, simultaneamente, dois grandes equívocos – os últimos que comentarei. Eis a afirmação: “Dizer, portanto, que o jornalismo produz conhecimento, um primeiro conhecimento, é o mesmo que dizer que busca a verdade dos fatos, mas traduz com mais humildade o caráter da atividade”.

Os dois equívocos do argumento acima são: criar equivalência entre “produção de conhecimento” e “busca da verdade”, categorias que sabemos diferentes; e afirmar-se declarar exatamente o mesmo, com mais “humildade”. Neste momento evidenciam a condição de pura manipulação retórica de sua argumentação, que fica assim resumida: se não podemos dizer “isto” digamos “aquilo”, mas deixando bem claro que “isto” e “aquilo” são, enfim, a mesma coisa.

Por que atribuir-se, como atividade principal do jornalismo, a produção de conhecimento? Esta é uma questão para outras reflexões.

Conhecimento como produto

A principal atividade do jornalismo não é produzir conhecimento, e sim informação, em minha opinião, e na definição do dicionário. O conhecimento constitui-se o produto principal das ciências, e da filosofia. Mesmo uma estrutura jornalística complexa, composta por profissionais de diversas áreas, incluindo cientistas, sociólogos, médicos etc., não produzirá conhecimento, e sim informação.

Como podemos depreender dos veículos destinados, especificamente, aos artigos acadêmicos e científicos. Estes não produzem conhecimento, apenas divulgam tal conhecimento, obtido pelos profissionais e instituições responsáveis por sua produção: cientistas, universidades, pesquisadores, sociólogos etc.

Assim como os folhetins de outrora, ao publicarem textos de Machado de Assis, e de outros, não produziram literatura: esta foi realização daqueles que traçaram as linhas ali reproduzidas.

O valor da informação

Torna-se questionável porque a produção de informação, o objetivo principal da atividade jornalística, não é a razão primária defendida no preâmbulo. Vivemos na era da informação, sendo esta um dos bens mais valiosos de nosso tempo, senão de toda a história da humanidade. Se recebo de um veículo de comunicação, como produto final, informações de qualidade, rápidas, objetivas e consistentes, fico mais do que satisfeito, na condição de consumidor deste serviço.

No momento em que algumas atividades de informação buscam na filosofia, ou em qualquer outra área de saber, sua razão existencial, acabam por evidenciar e propagar, no mínimo, certa confusão sobre seus produtos e propósitos.

Percebo, enfim, na argumentação contida no preâmbulo destes princípios editoriais, uma atividade tentando portar indumentária imprópria, e penso que esta não lhe “cai” muito bem.

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[André Silveira Sampaio é professor e escritor]