Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1280

Um desgaste evitável

Matéria de O Globo publicada no domingo (17/3) dá conta de que redações às quais se atribuiu nota máxima no Exame Nacional de Ensino Médio (Enem) apresentam erros graves de português. A intenção do jornal era publicar as melhores redações do exame e, para isso, solicitou que candidatos com nota máxima enviassem seus textos. Da amostra recebida, o jornal escolheu quatro redações e as enviou ao Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pela correção das provas.

A partir daí, o que se pode esperar é uma discussão acalorada na qual haverá os defensores de que pequenos erros de grafia ou mesmo de concordância e regência não são incompatíveis com a nota máxima na competência “demonstrar domínio da norma padrão da língua escrita”, explícita nas instruções do Enem. Haverá, entretanto, como já aponta a matéria, uma reprovação de especialistas para os quais as citadas distorções devem ser penalizadas na pontuação final. A reportagem abre espaço para renomados estudiosos que não poupam sua crítica à nota máxima atribuída a autores que, entre outras imprecisões, grafam “trousse”, “rasoavel”, “recebe-lo” e não fazem a concordância canônica com o verbo haver no sentido de existir.

Educação eficiente

Nesse contexto, há inicialmente que se elogiar a louvável iniciativa dos organizadores de facultar aos alunos o espelho dos textos produzidos, não se furtando, portanto, às inevitáveis comparações e às subsequentes críticas. Seria cômodo, e indiscutivelmente menos democrático, permitir que os alunos ficassem de posse apenas dos rascunhos de suas redações, os quais, em última análise, poderiam não provar nada, pois sempre há “correções” quando se passa a limpo. Optou-se pela transparência, que sempre é o melhor caminho, sobretudo quando se buscam aperfeiçoamentos. É curioso, entretanto, que a discussão ensejada por O Globo diga respeito à competência mais facilmente mensurável. Afinal, erros de gramática, de um modo geral, podem ser contados, de sorte que só receberiam nota máxima nessa competência os textos sem desvios. Simples e objetivo… Ocorre que se corrigem milhões de redações, e os organizadores, talvez por isso, protejam-se em certos parâmetros não quantificáveis, mas que, ao final das contas, contribuem para inevitáveis distorções no resultado.

Reproduzamos O Globo:

“Segundo o Inep, ‘uma redação nota 1.000 deve ser sempre um excelente texto, mesmo que apresente alguns desvios em cada competência avaliada. A tolerância deve-se à consideração, e isto é relevante do ponto de vista pedagógico, de ser o participante do Enem, por definição, um egresso do ensino médio, ainda em processo de letramento na transição para o nível superior’.”

 Parece-nos que, em avaliações públicas, de massa, em que se afere a condição de ingresso em instituições federais, a “tolerância”, a que se refere o Inep, é de difícil quantificação (tolerar até quando?) e pode materializar injustiça no processo seletivo. Seria um truísmo dizer que quem sabe mais deve ganhar mais…

Da chegada aos bancos escolares até a universidade, tem o discente, durante onze anos (agora doze) contato com a língua escrita, quer na disciplina específica de português, quer nas demais matérias do currículo escolar. Não seria esperar muito que chegassem à universidade com condições de dar razoavelmente conta das tarefas em que serão chamados a escrever. Salta às vistas, entretanto, que falamos de uma utopia. Democratizamos o acesso à educação, mas ainda não democratizamos uma educação eficiente para toda a sociedade. É nesse contexto que se insere o exame de redação. Não poderíamos prescindir dele, furtando a nossos jovens a oportunidade de lerem mais, de se inteirarem da contemporaneidade, de escreverem, preparando-se para o Enem e para a vida, de recuperarem, enfim, nessa fase, muito do tempo perdido.

Consagrada está, portanto, a imperiosa necessidade dos exames de redação, e juntamente com a sociedade e não só com a academia, é chegado o momento de o Inep estudar alternativas à avaliação dos textos escritos.

Um interessante expediente talvez fosse a adoção de dois únicos conceitos para a redação: apto ou inapto, sem pontuar para a classificação. Assim, ficariam inaptos, por exemplo, os textos ilegíveis, agramaticais, não escritos em prosa etc. Experiência não faltaria aos organizadores para o estabelecimento dos critérios, que buscariam apenas selecionar os estudantes com as mínimas condições necessárias à vida acadêmica. Nessa situação, haveria textos com conceito apto apesar de escorregões do tipo “trousse” e similares, mas sem causar perplexidade, porque não seriam pontuados.

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Walter Rossignoli é professor