Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Os golpes de Estado da contemporaneidade

São divergentes os motivos pelos quais ministros do Supremo Tribunal Federal e congressistas matizam a crise institucional agravada pela PEC 33, proposta de Emenda que condiciona as decisões de constitucionalidade da Suprema Corte ao beneplácito do Parlamento. De um lado, os ministros zelam pela discrição e passividade do Poder Judiciário, que no quanto possível se deve manter distante do processo político de elaboração das leis; os deputados, por sua vez, ocultam que a proposta guarda um evidente fundo de retaliação política à interferência do Judiciário na legalidade de conduta dos outros dois Poderes da República. Poderes que, até muito pouco tempo, consideravam-se criminalmente inatingíveis.

Pensar que essa emenda que visa ao enfraquecimento do Supremo está muito mais próxima à reação às recentes condenações nas ações penais dali originárias – dentre as quais está a AP 470, do mensalão – que ao intento de vedar o chamado ativismo judiciário é algo sórdido, porém real. As súmulas vinculantes e o intenso controle de constitucionalidade estorvam menos que a amarga sensação de que os possíveis escândalos de desvio de conduta parlamentar e administrativa estejam sujeitos a reações mais efetivas que a mera reprovação dos potenciais eleitores, esta que em regra se esfuma ao cabo de alguns meses. E esse quadro já oferece um seguro caminho para responder à questão que de fato interessa: qual dos Poderes é legítimo para dar a palavra final sobre a vontade e o sentido da Carta Magna.

Interpretação jurídica

Todas as teorias minimamente democráticas que expliquem o constitucionalismo coincidirão no mais elementar: o momento constituinte é, como o próprio nome esclarece, a fundação das regras básicas pelas quais se regerá a sociedade. Em 1988, todo parlamentar constituinte estava ciente de que lhe desafiava uma delicada tarefa enunciativa, pois a estabilidade da nação dependia da futura vigilância jurídica daquilo que então se redigia. Em outras palavras, dependia de que aquela Carta fosse, dali em diante, interpretada por um processo de retomada ao sentido original do seu texto, e não em uma contínua reconstrução política, ao sabor dos mandatários de cada primavera.

Para os juristas é muito claro que uma proposta de alteração da Constituição possa ser inconstitucional, quando seus conteúdos se repelirem. Isso é indiscutível. O problema é, como está agora colocado, delegar à Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) a palavra final sobre a legalidade da PEC 33, porque isso importa em conceder o poder de decisão ao agora maior interessado pela supressão do equilíbrio entre os poderes. Se for vedada ao Supremo a palavra final sobre a Carta, o próximo passo será, sem exagero, delegar a tutela das afrontas dos direitos individuais ao líder religioso que preside a Comissão de Direitos Humanos e de Minorias. A segurança dos fundamentos de nossa Nação, como em qualquer outra democracia ocidental, depende da garantia de incessante e estável interpretação jurídica do contrato de formação da nossa sociedade, até aqui tolerante e formalmente igualitária.

Fora de moda

A admissibilidade da discussão do texto tem colocado os ministros do STF em uma berlinda mais do que injusta: pronunciar-se sobre o tema significa corromper o papel de passividade e silêncio do Judiciário. Com isso, concedem-se ainda mais argumentos para o vingativo discurso do Congresso, que se alicerça no excesso de intromissão da Corte; calar-se significa o potencial de perder o poder Constitucional de dar a última palavra sobre uma emenda fundamentalmente absurda. Em termos – à falta de outro adjetivo – maquiavélicos, a PEC 33 é um xeque genial daqueles que pretendem diminuir o poder da Corte que agora condena políticos corruptos.

Em especial porque, acertadamente, a jogada pressupõe a nossa completa ignorância cidadã, que não reage de imediato às forças políticas, respondendo que existem princípios sobre os quais está ancorado nosso sistema democrático. Princípios que não estão sujeitos a alteração senão por um golpe de estado, único capaz de dilacerar esse contrato original de organização da sociedade. Apenas estamos a confirmar que os golpes de Estado armados e sanguinários há décadas passaram de moda, porque demandam articulação mais ampla e custam muito dinheiro. Ou chamam demais a atenção.

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Víctor Gabriel Rodríguez é professor doutor de Direito Penal da Universidade de São Paulo (FDRP), membro da União Brasileira de Escritores