Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Passe livre, democracia ou barbárie?

Não há dúvida de que as manifestações ocorridas em todo o país nas últimas duas semanas despertaram a opinião pública para vários problemas que afligem a população brasileira: o transporte público caro e de péssima qualidade, a falta de investimentos em educação, o caos na saúde, a corrupção… Mas o que chamou minha atenção e de muita gente no resto do mundo, que vê com perplexidade e apreensão o desenrolar dos acontecimentos, é o lado autoritário e – por que não dizer? – reacionário do tal Movimento Passe Livre.

Não falo aqui apenas das depredações ao patrimônio público, das agressões a profissionais de imprensa ou dos saques a lojas, bancos e até universidades. Tudo isso é apenas a expressão material do que está implícito no próprio “espírito” dos protestos: a pretensão ao monopólio da interpretação da realidade por parte de uma classe média arrogante, truculenta e despolitizada que, em função disso, acredita prescindir dos mecanismos tradicionais de representatividade, entre eles os partidos políticos.

Isso ficou evidente em vários momentos dos protestos. Basta ver os cartazes, as faixas, as palavras de ordem ou as declarações de alguns de seus supostos “líderes”. Este é, a meu ver, um dos pontos principais da questão. Ora, caro leitor, no momento em que se nega ou recusa um elemento essencial da democracia – a representatividade – abre-se espaço para o desrespeito a tudo aquilo que constitui suas bases: as instituições, as leis, a liberdade de opinião e os direitos dos outros, incluindo os da minoria. A consequência disso não poderia ser outra: bagunça, vandalismo e violência generalizada.

Instâncias de representação social

É certo que existe um distanciamento dos partidos e da classe política em relação à sociedade. É certo também que o conchavo, o corporativismo e a corrupção prevaleceram ao longo dos anos e que isso impede o avanço das conquistas e a modernização do país. Tudo bem. Mas daí a querer acreditar que o povo por si mesmo – e não seus representantes legitimamente eleitos – pode conduzir diretamente seu próprio destino é uma estupidez. É querer voltar ao estado de natureza hobbesiano.

Como diz Felipe Pondé, “confiar no povo como regulador da democracia é confiar nos bons modos de um leão à mesa”. De certa forma, foi isso que ocorreu quando o Estado decidiu se abster do controle da situação e agora se pergunta, perplexo, onde isso vai parar, já que as reivindicações iniciais foram atendidas e, no entanto, os protestos não cessaram, nem parece que vão acabar tão cedo. Além do mais, se todos resolvem apresentar ao mesmo tempo demandas individuais ou específicas (como a senhora que pedia a diminuição do preço da ração de seu cachorro), o movimento se pulveriza e os governos ficam impossibilitados de realizá-las. Em suma, perde-se o foco. E a força.

Outra vez aqui, a importância dos partidos como instâncias de representação e organização social. Embora haja uma enorme decepção com as agremiações partidárias, com os sindicatos, as igrejas, a (grande) mídia e com a classe dirigente em geral, não faz sentido abominá-los. Simplesmente porque eles também fazem parte do processo político e são peças essenciais da democracia, apesar de suas falhas. No caso dos partidos, eles situam-se numa zona fonteiriça entre o povo e o Estado, para fazerem a ponte entre o que se deseja e o que pode ser implementado. Negar isso, como disse antes, é flertar com a tirania.

Novos canais de mediação

No entanto, nota-se certo encantamento por parte da imprensa e de alguns intelectuais com o “movimento”. Isso pode ser explicado em função de três coisas: as demandas retraídas da sociedade, a presença maciça de jovens e também o volume das manifestações (algumas passaram de um milhão de pessoas). Muitos dizem que a baderna que se alastrou por diversas cidades brasileiras é fruto apenas de uma minoria. Mas atenção: o autoritarismo dos protestos deriva não apenas do vandalismo e da anarquia, mas da tentativa de impor uma agenda aos governos sem fazer concessões e sem medir as consequências (a tarifa zero, por exemplo, é impraticável).

Como observou Tocqueville, “as duas maiores tiranias são a da maioria e a do dinheiro”. Para evitar esse risco, é preciso garantir o passe livre para a própria democracia. E esta não existe sem representatividade, cerne da vida política. Se, como diz a canção de Belchior, “no presente a mente, o corpo, é diferente e o passado é uma roupa que não nos serve mais…”, é hora então de buscar novos canais de mediação. Ao mesmo tempo, de rejuvenescer os tradicionais – entre eles os partidos políticos, as igrejas, o parlamento e a mídia –, e não pregar sua negação ou extinção. Trata-se de uma condição essencial para o desenvolvimento da sociedade brasileira. E uma forma de evitar que a gente caia definitivamente na barbárie.

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Ivandro Coêlho de Souza é professor e jornalista