Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Preferências ideológicas e jornalismo tribal

Talvez mais interessante do que entender as razões pelas quais as recentes manifestações eclodiram no país é tentar entender as reações das pessoas perante os fatos. Tão neutro e imparcial quanto consigo ser, eis o que penso ser incontestável: um grupo chamado “Movimento Passe Livre”, insatisfeito com o aumento de preço das passagens de ônibus no município de São Paulo, organizou uma manifestação exigindo, entre outros temas ligados ao transporte, a extinção do aumento. A Polícia Militar do estado, então, reprimiu os manifestantes. Mais por solidariedade aos manifestantes reprimidos do que por qualquer outra razão, manifestações começaram a acontecer em outras cidades do país. Estas, inicialmente, tinham a mesma pauta dos protestos paulistanos.

Vê-se, de passagem, a notável burrice do comando da Polícia Militar, que conseguiu tornar uma manifestação corriqueira em algo de dimensões históricas. No entanto, podemos absolver o comando da polícia de uma eventual acusação de ter conseguido esse feito de propósito, pois a não menos notável incompetência que vigora em boa parte das instituições públicas do país impede que quase todas as ações planejadas sejam plenamente bem sucedidas. No caso, a adequação dos meios aos fins foi perfeita demais para ter sido pensada pelos oficiais de gabinete que ocupam os cargos de comando.

Com o passar dos dias, as manifestações espalhadas pelo país não tinham mais uma pauta clara, já que o problema das tarifas de ônibus havia se diluído entre outras reivindicações. E foi mais ou menos nessa altura que as ilusões se propagaram. Várias pessoas passaram a emitir sobre os fatos opiniões segundo as próprias preferências ideológicas. Isso chegou a um ponto tal que rapidamente as várias versões oferecidas tornaram-se incompatíveis entre si. Embora não pretenda fazer de uma observação pessoal um dado com validade estatística, uma olhada rápida no que as pessoas que conheço diziam nas redes sociais foi o suficiente para concluir que virtualmente todas as opiniões dadas e compartilhamentos feitos foram o que seria de se esperar dessas pessoas, dadas as suas preferências.

“Minoria não representativa” e “maioria pacífica”

A ideia de preferência ideológica aqui é bastante simples. Trata-se de aderir a ideias – encerradas ou não em partidos políticos – que têm o poder de alterar a descrição da realidade e ditar aspectos normativos. Perante um determinado fato, essas ideias influenciarão o modo como as pessoas percebem o fato, se ele é visto como bom ou ruim, e ainda, o que deve ser feito a partir dele.

Não surpreende que jornalistas conhecidos – sobretudo os blogueiros, que por ofício escrevem rápido – tenham também opinado conforme suas preferências ideológicas. Tal como ocorria nas redes sociais, os profissionais tinham certeza de que falavam sobre fatos e presumivelmente pensavam que qualquer observador imparcial veria as coisas tal e qual eles as viam. O problema é que o óbvio para alguns jornalistas era incompatível com o óbvio de acordo com outros jornalistas, o que diz mais sobre as pessoas do que sobre os fatos. Um exemplo que me fascinou foi o problema de saber se o vandalismo visto em algumas manifestações podia ser atribuído aos manifestantes ou se isso não passava da atitude isolada de alguns aproveitadores que nada tinham a ver com as reivindicações. No dia 7 de junho, o jornalista Leonardo Sakamoto publicou em seu blog o seguinte trecho:

“Houve depredação de equipamentos públicos? Sim, você encontra minorias de idiotas em todos os lugares. Mas isso não invalida nem diminui a importância do ato, que chama a atenção a um aumento de R$ 3,00 para R$ 3,20. Ou seja, uma passagem, que já é cara, de um serviço público de transporte urbano ruim, ficará mais cara ainda. Jovens revoltados foram às ruas. Queriam protestar, se fazerem ouvidos. O poder público dialogou com bombas de gás.”

Alguns dias depois, no dia 20, o jornalista Reinaldo Azevedo fez o seguinte comentário:

“A questão é saber se [as minorias] são acolhidas ou não. Eu não me sinto com legitimidade para dizer quem é digno do movimento e quem não é. Tenho cá minhas ortodoxias. Acho que, quando se convoca o povo para a rua, na linha ‘traga junto o que o faz infeliz’, negando-se a comunicar às autoridades o local do encontro e seu itinerário, o que se quer é mesmo confusão.

"Nesse caso, a dita 'minoria não representativa' é usada como instrumento de choque da suposta 'maioria pacífica'. Ora, sejamos francos e claros: os governos só recuaram tão depressa do reajuste – medida, em si, absurda – com receio do desgaste provocado pela turma do 'pega pra capar'”.

Quem é a fonte de quem

Logo após, Azevedo diz que a tese da “minoria baderneira” é conceitualmente falsa, factualmente falsa, logicamente falsa e historicamente falsa. Sakamoto defende que os vândalos são uma minoria de idiotas, o que indica que ele separa tais pessoas dos manifestantes, com os quais concorda. Azevedo pensa que essa tese não está muito distante da empulhação.

Mas isso mostra alguma coisa? É possível objetar que do fato de ambos os jornalistas discordarem entre si não se pode concluir que eles filtram os fatos segundo suas preferências ideológicas. Verdade, mas o ponto é outro: o importante é que é possível prever com certa segurança uma discordância como essa; é possível prever o que dirão diferentes jornalistas já conhecidos (e que, portanto, têm as opiniões mais difundidas na rede) sobre os mesmos fatos, de modo que a discordância exemplificada aqui é provavelmente instância de um problema mais geral. Quem acompanhou o movimento dos blogueiros durante o ápice do escândalo e julgamento do mensalão teve bons indícios para perceber que o factual não era tão importante, sendo as opiniões em grande parte dadas de acordo com o lado em que se posicionava o jornalista. Além disso, os jornalistas parecem estar pelo menos tão submetidos às influências das preferências ideológicas quanto os mais variados comentaristas de Facebook, grupo no qual me incluo. De fato, a única diferença entre profissionais e replicadores de redes sociais é basicamente quem é a fonte de quem. Vejamos, assim, alguns exemplos.

Logro progressista

Quando já estava claro que as manifestações haviam perdido a liderança do Movimento Passe Livre e não eram protagonizadas por organizações de esquerda, começou a circular na rede a ideia de que os protestos estavam sendo tomados por forças da direita. No dia 24 de junho, o blogueiro Cadu Amaral, do site Brasil 24/7, afirmou o seguinte:

“Ao contrário do que muita gente pensa, partidos políticos estavam à frente das organizações das manifestações. E no Brasil inteiro. Mas logo fascistoides passaram a dirigir a massa nesses atos. Não dormindo no ponto, a mídia tratou de ampliar o volume dos gritos de ‘Fora partido!’ E logo a corrupção virou a pauta central das manifestações. Mas nada há contra corruptores.”

No mesmo dia, Altamiro Borges, blogueiro ligado ao PCdoB, também se mostrou preocupado com a presença da direita nas manifestações:

“A tentativa da direita de pegar carona nos protestos de rua para impor sua pauta conservadora está gerando reações em vários cantos do país. Dezenas de reuniões ocorreram nos últimos dias, agregando milhares de lutadores sociais, para definir os caminhos da resistência e a plataforma das mudanças progressistas.”

Mais significativo do que o texto de Borges é a ilustração que o acompanha: um tucano infiltrado em um grupo de manifestantes segurando um cartaz no qual se lê “contra a corrupção”. Não fiquei surpreso quando percebi que havia uma grande quantidade de conhecidos indignados com o fato de a corrupção ter se tornado uma das principais pautas das manifestações. Curiosamente, eram todos eles simpatizantes do governo, provavelmente cientes da infeliz contingência de o novo tema tocar o partido do governo.

Pensavam, portanto, como José Dirceu. No dia 21 de junho, o Estadão revelou que o ex-ministro achava que alguns grupos políticos e sociais desvirtuavam as reivindicações iniciais. Segundo Dirceu, uma das principais bandeiras desses grupos era precisamente a corrupção. Para piorar, disse ainda que essas pessoas estavam ligadas à oposição – fato que acende um alarme em todo simpatizante governista que se preze. Mas antes de Dirceu, no dia 14, a repórter da revista CartaCapital Cynara Menezes já alertava sobre os supostos direitistas indignados com a corrupção:

“Por que tantos jovens aderiram à campanha contra o aumento de tarifas de ônibus e não às manifestações convocadas, com o apoio maciço da mídia, contra a corrupção e os réus do mensalão? A resposta é simples: porque esse é um protesto de esquerda, com reivindicações caras à esquerda. A direita não está nem aí para o aumento das tarifas do transporte público, até porque ela anda de SUV.”

Logro conservador

Infelizmente, o número de pessoas protestando contra a corrupção não parou de aumentar. Em publicação do dia 24, a mesma repórter publicou resultado de pesquisa do Ibope que, ao interrogar pessoas em diferentes protestos, concluiu que 24% delas afirmaram estar ali por causa da corrupção. É bom também enfatizar que pesquisa do Datafolha feita no mesmo período chegou a outro resultado expressivo: dentre os manifestantes paulistanos, metade tinha precisamente tal problema como principal motivo para protestar.

É trivial que a corrupção é uma pauta urgentíssima. Boa parte dos males do país tem origem no comportamento corrupto de agentes públicos e privados. Mostrar indignação quanto a isso é uma forma de mostrar que as pessoas estão atentas. Além do mais, é uma falsidade óbvia que protestos espontâneos contra a corrupção tenham qualquer influência de forças da direita, seja lá o que isso for. Diferente de outros casos, o que se viu agora no Brasil foram protestos nos quais o aparelhamento ideológico foi bastante reduzido, fato que em parte explica a grande presença do tema da corrupção, sempre na mente dos brasileiros. Por tais razões, penso que associar essa pauta à direita nada mais foi do que a tentativa de desqualificar uma parte importante das manifestações, justamente a parte que mais dizia respeito ao passado recente do governo. Obviamente, não se falou em momento algum que males há em ser de direita. O predicado “ser de direita” já é, para alguns progressistas, suficiente para desqualificar.

As preferências ideológicas não influenciaram de maneira previsível somente as ações dos progressistas da mídia. No dia 17 de junho, o senador e colunista Aécio Neves, provavelmente percebendo que parte das insatisfações populares respingava no governo petista, publicou nota em que elogiava os manifestantes. Tipicamente, os políticos almofadinhas de camisa azul clara que compõem os quadros do PSDB gostam tanto de povo quanto gostava o general Figueiredo. Isso, no entanto, não impediu o eterno governador de Minas Gerais de dizer, entre outras coisas, o seguinte:

"São brasileiros de diversas partes do país se mobilizando, entre outras questões contra o aumento de passagens, contra a baixa qualidade dos serviços públicos, de transporte, de saúde e de educação, contra os desvios éticos na política e contra a pressão exercida pelo aumento do custo de vida. São brasileiros que enviam um recado à sociedade, em especial aos governantes, e que precisam ser escutados."

O mesmo senso de oportunidade de Aécio Neves, que só se pronunciou depois de ver a maré, não teve o Estadão (aliás, o comportamento da juventude do PSDB, que criticou e depois endossou as manifestações, valeria um artigo inteiro). Logo no início das manifestações, o jornalão publicou, no dia 13 de junho, editorial cujo título foi um militaresco “Chegou a hora do basta”. No entanto, tão logo as pautas mudaram e as manifestações perderam a cara feia dos radicais de esquerda, o tom abrandou. Aparentemente, o jornal não se importou com o fato de que os protestos para os quais se dispensava agora certa deferência causavam os mesmos transtornos causados anteriormente por aqueles que motivaram o editorial.

Movimento parecido fez Veja. Após vituperar contra as manifestações quando elas começaram, dedicou uma capa elogiosa aos jovens em uma das edições do mês de junho. E, com exceção do já citado Reinaldo Azevedo, os jornalistas Augusto Nunes e Ricardo Setti também abrandaram o tom. Não é necessário ser um estudioso da imprensa para perceber que essa mudança só ocorreu porque as pautas das manifestações também mudaram.

Comportamento tribal

Por fim, houve uma das inversões mais formidáveis da história recente da imprensa brasileira. Enquanto setores mais à esquerda adulavam as manifestações quando estas começaram, peças como o editorial do Estadão davam, sobre o assunto, o tom dos setores mais ligados à direita. Com o passar do tempo, a ala progressista se afastou das manifestações. No entanto, veículos como Veja e Estadão abrandaram a cobertura e passaram a ver as manifestações de outra forma. No exato momento em que os primeiros viam as manifestações como movimentos espontâneos e legítimos, os últimos as viam como delírios de revolucionários adolescentes. Logo depois, no exato momento em que os primeiros perceberam forças da direita operando nos atos, os segundos enxergaram, enfim, que o povo se manifestava espontaneamente. O que faz com que os mesmos fatos sejam vistos de forma tão diferente?

Penso que as preferências ideológicas respondem a pergunta. São elas que estão por trás do delírio de alguns jornalistas que pensaram haver forças da direita por trás dos protestos contra a corrupção. E são elas que fizeram com que um jornal como o Estadão mudasse, progressivamente, o modo de vê-las. Os exemplos dados deixam razoavelmente claro que as perguntas “quais são os fatos?”, “eles são bons ou ruins?” e “o que fazer?” admitem respostas ao gosto da preferência ideológica de quem procura responder. E quando sabemos as preferências que as pessoas têm, é fácil prever quem dirá o que.

Mas talvez o principal problema a afligir pelo menos boa parte da imprensa de opinião brasileira é o comportamento tribal. Grosso modo, há o grupo de governistas e há o grupo de oposicionistas. Cada qual reserva ao outro os mais descarados impropérios e cada qual pensa que o outro serve a interesses escusos (o que, devemos admitir, muitas vezes é verdade). Mais ainda, os membros de um grupo só republicam o que outros membros do mesmo grupo escrevem. Assim, eles próprios e seus leitores ficam rigorosamente imunes ao perigo de serem expostos às más ideias do outro grupo.

Hipóteses de um esforço moral

Esse comportamento se espalhou entre os leitores. Percebi, por exemplo, que diferentes pessoas compartilham, em redes sociais, somente atualizações de jornalistas cujas crenças estejam de acordo com o que elas já pensam. Há quem só compartilhe material de jornalistas como Leonardo Sakamoto, Lola Aronovich e Paulo Henrique Amorim. Por outro lado, há quem compartilhe unicamente material de jornalistas como Reinaldo Azevedo, Augusto Nunes e Merval Pereira. Poucas maneiras de confirmar sistematicamente as próprias crenças são mais eficazes do que essa.

As pessoas simplesmente não querem ler o que os adversários escrevem e confiam no que escrevem os aliados simplesmente por estes escreverem de acordo com as crenças nas quais elas já acreditam. Um dos resultados desse mau hábito é a completa indiferença aos argumentos contrários e aos fatos inconvenientes, que pela própria natureza tribal dessa parte do jornalismo brasileiro só são formulados e citados pelo lado oposto e, portanto, evitado. Nesse cenário, é fácil não apenas prever o que as pessoas dirão, mas também, perante um tema controverso qualquer, o que um grupo razoavelmente grande de pessoas pensará e dirá a respeito. Penso que a tentativa de diminuir o efeito nefasto tanto das preferências ideológicas quanto do agrupamento em tribos é um esforço moral. Na menos esperançosa das hipóteses, as coisas ficariam um tanto menos previsíveis. Na mais esperançosa, teríamos uma vida pública menos belicosa.

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Aluízio Couto é estudante, Ouro Preto, MG