Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Como anda o modelo de captar, editar e publicar notícias?

A participação do público na produção de notícias mudou bastante desde os primeiros anos, quando o entusiasmo com as novas tecnologias pareciam apontar para um novo tipo de jornalismo. A ideia continua embrionária até os dias de hoje, quando o tema do jornalismo participativo é apenas um tópico de discussão já meio saturado. O jornalismo feito pelo público acabou relegado ao empoeirado armário das grandes ideias que não encontraram modelo de financiamento adequado e não conseguiram sobreviver.

Os anos dourados do jornalismo-cidadão aconteceram na primeira década do século 21. Em 2000, foi criado, na Coréia do Sul, o OhMyNews – a maior experiência mundial em jornalismo colaborativo. Em 2006 surgiram o iReport, da CNN, o Digital Journalist, de Toronto, e o Ground Report, de Nova York. Em 2009 foi lançado o Demotix, na Inglaterra, que continua a ser o único site que possibilita ao cidadão receber pagamentos dignos e de acordo com a média do mercado.

Como andam agora esses informativos? Podemos dizer que o jornalismo-cidadão conseguiu consolidar-se como novo modelo de captar, editar e publicar notícias? O OhMyNews não suportou o peso de sua grande ambição pueril: transformar cada cidadão em um repórter. Foi um sucesso no início, mas logo depois os problemas começaram: o periódico recebia contribuições do mundo todo e era simplesmente impossível conferir e verificar tanta informação. Não havia dinheiro para pagar editores e equipes de verificação de fatos, mesmo com as gordas contribuições do Estado. Em 2009, o periódico “jogou a toalha” e tentou um novo modelo: assinaturas individuais voluntárias. Não deu certo. Em 2010, o OhMyNews saiu do negócio, e transformou-se em blog dedicado a discutir o jornalismo-cidadão.

“Jornalismo reserva”

O Digital Journalist está vivo e bem. Já comentei o site na edição 675 deste Observatório, junto com o Ground Report (ver “Quanto paga o jornalismo cidadão?“). Em 2012 foi reconhecido como “uma das 20 mais promissoras companhias no Canadá”, segundo o site PRWeb (31/4/2012). Ocupa a posição nº 9.766 no ranking da Alexa de sites mais visitados. Tem mais visibilidade que o Correio Braziliense (posição nº 17.345). Depois de algumas reformas recentes, o periódico transformou-se numa multiplataforma de notícias que envolve tecnologias proprietárias para captação de notícias e “pontos de engajamento”, onde os colaboradores podem publicar suas matérias.

O periódico, na realidade, reserva espaço para colaboradores, mas trabalha com profissionais pagos. É um negócio, e nele o colaborador que envia artigos pode ser pago se tiver visibilidade suficiente – e escrever um número razoável de artigos. É mais um sistema de prêmios, situado fora da lógica da monetização padrão para pagamentos a profissionais. Podemos chamar isso de “jornalismo-cidadão”? Ou seria mais adequada a expressão “jornalismo com colaboração cidadã”?

O iReport é outro bom exemplo de jornalismo-cidadão porque mostra os limites do mesmo e o que jornalismo de televisão espera dele: fotos e vídeos enviados por colaboradores em lugares estratégicos sem contrapartida financeira. Na televisão, principalmente, jornalismo-cidadão é sinônimo de conteúdo visual enviado pelo público, que nem sempre usa as imagens geradas ali em sua programação. A CNN usa imagens da Getty, principalmente, do YouTube e outras agências fotográficas. O iReport funciona também como uma espécie de “jornalismo reserva” dentro da CNN. A rede fica 24 horas no ar, existem muitos horários improdutivos que quase nada rendem a companhia. É aí que entra em campo o iReport. Na maioria das vezes, no meio da madrugada.

No lugar e na hora certos

O Ground Report não resistiu aos limites de sua proposta: qualquer cidadão pode ser um jornalista. Agora é um site de segunda linha, com péssimo jornalismo e notícias sem muita relevância. Em janeiro do ano passado, fiz contato por e-mail com eles, a respeito de pagamentos a colaboradores. O poço já havia secado e eles só pagavam prêmios insignificantes aos articulistas quando havia fundos. Hoje, o Ground Report não paga mais nada.

Já o Demotix é um sucesso incontestável, mesmo que tenha se transformado numa “rede para fotojornalistas freelancers”. Há texto no site, mas sempre curto e subordinado à imagem. Demotix é uma empresa que funciona como ponte entre o fotógrafo e o mercado. Além de pagar preços de mercado aos colaboradores, oferece-lhes (por uma pequena taxa) identificação de imprensa para a cobertura de eventos em qualquer lugar do mundo. Mas antes o colaborador deverá provar a qualidade do seu trabalho.

As primeiras manifestações de jornalismo colaborativo foram filmes de amadores que estavam no lugar e na hora certos quando alguma coisa de importância jornalística aconteceu: Abraham Zapruder estava em Dallas, Texas, em 1963, e filmou o assassinato do presidente Kennedy, que só foi ao ar em 1975, no programa Good Night America, da rede ABC de televisão. Em 1991, o encanador George Holliday, de Los Angeles, filmou a brutal surra que a polícia local aplicou em Rodney King. Vendeu a fita por 500 dólares a uma emissora local, que repassou o material à CNN. George tentou receber mais, quando percebeu a importância do que havia filmado, mas já era tarde para isso.

Fonte privilegiada

Atualmente, a imagem do jornalismo colaborativo está fortemente associada ao envio de fotos e vídeos a jornais. O jornalismo cidadão de textos decaiu, e a imprensa agora parece ter cristalizado a imagem do jornalista cidadão como alguém que está em localização privilegiada, pronto a filmar, fotografar e enviar seu conteúdo para as redações dos periódicos ou emissoras. Jornalismo colaborativo, para a imprensa brasileira, virou sinônimo do envio de fotos e vídeos feitos por amadores.

Um bom exemplo que acompanhei foi o assalto final à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Globonews, 17/6), durante os protestos que abalaram o país em junho. A situação ficou perigosa demais e as redações ordenaram a retirada das equipes do local. A troca de coquetéis molotov e bombas de efeito moral entre a polícia e os manifestantes forçou a retirada da imprensa, mas um cidadão filmou os principais momentos do ataque. O primeiro pensamento que me veio à cabeça foi “só mesmo um amador para filmar uma coisa dessas. Nenhuma emissora iria permitir a presença de um profissional numa situação tão perigosa”.

O jornalismo-cidadão de textos não realizou o sonho de muitos, mas sua trajetória ampliou em muito a participação, hoje praticamente ubíqua, do “colaborador” especializado que escreve de graça. O Huffington Post é um periódico da web que depende totalmente da colaboração de pessoal especializado com experiência de imprensa. Ou celebridades desempregadas. Nem toda colaboração gratuita é conteúdo cidadão sem qualquer tipo de recompensa. Muitas funcionam como troca entre o autor e aquilo o que ele quer publicar, e a publicação interessada no artigo por ele produzido. Não se trata, na realidade, de participação cidadã comum: são especialistas que escrevem dentro da moldura de publicações conhecidas e sua colaboração “gratuita” serve-lhes como marketing pessoal.

O jornalismo-cidadão contemporâneo, apesar de algumas poucas exceções, acabou reduzido a colaborações de conteúdo visual a redações de jornais e redes de TV. É esta a imagem que a mídia cristalizou dele: a mão anônima de alguém que se eleva na multidão, celular na mão e loucura na alma, a registrar, geralmente em má qualidade de imagem, aquilo que escapou às grandes coberturas. Isso não é jornalismo-cidadão. É o cidadão transformado em fonte privilegiada de acontecimentos de interesse da imprensa.

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Sergio da Motta e Albuquerque é mestre em Planejamento urbano, consultor e tradutor