Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Globo afirma catolicismo acrítico como seu nicho de mercado

Os apresentadores da Globo sorriem o tempo todo ao falar do papa. Aquele sorriso condescendente, como se todos concordassem com a santidade do líder religioso. É uma simpatia incondicional, acrítica. Adesão, teatralizada, e não jornalismo. Difícil definir qual deles é o mais subserviente. Sandra Annenberg, no jornal Hoje, até balança a cabeça de tanto sorrir. Nada de tão diferente nos demais programas. Apresentadores e repórteres consideram-se enviados especiais ao paraíso. Um deles imaginou-se, no mesmo jornal vespertino, em pleno Vaticano. “Parece a Praça São Pedro!” – deslumbrava-se.

Não é só pelo tempo da cobertura, portanto, que a Globo afirma os católicos – ainda maioria no Brasil – como seu nicho principal de mercado. Pois é disso que se trata. De uma estratégia com matriz comercial, de olho nos números, de olho na tomada das outras emissoras por programas evangélicos. Isto para não falar da Record, da Igreja Universal. (A Band joga para os dois públicos. Um repórter dessa emissora chegou a pedir bênção, no avião que trouxe o pontífice para o Brasil, de uma maneira reverente ao extremo. Um comportamento de fiel especialmente fanático, não de um repórter.)

Não se trata de pacto com qualquer catolicismo. Este tem suas contradições. O catolicismo progressista – aquele que defende índios e camponeses, por exemplo – fica de fora desse script. A emissora não está enviando repórteres para celebrar os padres e bispos que defendem os excluídos, os moradores de rua. Não falará dos padres que foram assassinados por se posicionarem firmemente em relação aos conflitos no campo. Não teremos Comissão Pastoral da Terra e Conselho Indigenista Missionário no noticiário.

Esse pseudojornalismo em plena afirmação – um jornalismo de hóstia – tenderá a migrar para o restante do noticiário. A partir do momento que a Globo assuma com mais ênfase os valores desse setor do catolicismo. De um papa simpático, que coloca os pobres em pauta (o que tem seu mérito), mas sem vilões, sem opressores. Pobres sem uma história econômica por trás, um sistema produtivo que os prevê, que deles se utiliza para enriquecer uma minoria. “Pobres”, inclusive, com esse termo apenas. E não “trabalhadores”, camponeses, protagonistas.

Ou seja, esse jornalismo tenderá a ser ainda mais alienado e com horror a conflitos. Veremos um acirramento da tradicional varrida desses conflitos para debaixo do tapete. A violência policial seguirá não sendo tomada como deveria ser: como uma ação do Estado para preservar a propriedade privada e seus pactos com as elites econômicas. A violência social (reduzida à violência nas favelas, nas comunidades) não será discutida à luz da história da desigualdade. Os violentos seguirão retratados como se fossem uma espécie de demônios.

Direito às favas

Isso vale para a cobertura dos protestos de rua. “Vândalos e baderneiros” encaixam-se nessa narrativa desconectada da história, como se os manifestantes mais revoltados fossem uma expressão diabólica (ver “As elites vândalas, a imprensa baderneira e os policiais bandidos”). Como é possível compatibilizar uma cobertura sorridente do papa com a crítica à foto do pontífice com policiais do Bope?

Essa lógica vale também para a cobertura de questão agrária, da questão indígena, da questão ambiental. A marcha inexorável dos bonzinhos peitará os políticos proprietários de terra, os desmatadores na Amazônia, os correntões que arrastam árvores, as grilagens, as ameaças sistemáticas a sem-terra? (Práticas, aliás, de muito coronel que vai à missa e comunga toda semana.)

O nicho de mercado redefinido pela Globo é católico, sim. Mas vai ao encontro do nicho anterior: o do pacto dos meios de comunicação tradicionais com as elites brasileiras. E não apenas as elites mais civilizadas, ou com algum sentimento de culpa. Essas elites podem ser, eventualmente, cordiais. O que não as torna menos violentas e promotoras da desigualdade. Sem que a imprensa atente a essa face bem nascida da violência.

Esse pacto já foi feito em tempos de democracia e de ditadura. Agora se afirma nesta nossa nova democracia-ditadura, esta democracia pela metade, esta democracia que naturaliza os policiais sem identificação, as prisões sem provas, as detenções com acusações vazias, as manifestações controladas, o direito de ir e vir às favas, os governadores jagunços e uma justiça distraída.

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Alceu Luís Castilho é jornalista, autor de Partido da Terra – como os políticos conquistam o território brasileiro; @alceucastilho