Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A censura e os peladões do Facebook

Nos tempos insólitos que vivemos, não bastassem os cuidados e precauções normais inerentes ao pega pra capar do dia a dia, é preciso ficar de olho nos mistificadores pseudoliberais e manipuladores da opinião pública que inflam o caótico universo midiático. Gente que se esmera em alardear teses e conceitos baseada em argumentos falaciosos, quando não capciosos, no afã de impor ideias pretensamente supimpas, vender seu peixe num mercado culturalmente futilizado, como já definia na década de 1960 o escritor autodidata francês Guy Debord em seu livro La Société du Spectacle (A sociedade do espetáculo), cujo título serviu de inspiração ao recente ensaio de Mario Vargas Llosa sobre o mesmo tema, A Civilização do Espetáculo.

Nesse contexto de depauperação e massificação cultural, decretado pela massificação audiovisual que precedeu a atual revolução midiática ensejada pelas redes sociais, é sob a ótica da banalização lúdica dos costumes que tudo gira e repercute. Nisso se inserem tanto as manifestações artísticas pós-modernas como o conteúdo das chamadas mídias digitais, numa espécie de conluio que leva o consagrado escritor peruano a temer, a curto ou longo prazo, por um mundo sem valores estéticos, em que as artes e as letras passariam a ser formas secundárias de entretenimento, defenestradas pelos meios audiovisuais.

E bota pra quebrar:

“No passado, a cultura foi muitas vezes o melhor meio de chamar a atenção para os problemas da sociedade, uma consciência que impedia as pessoas cultas de darem as costas à realidade nua e crua de seu tempo. Agora, ao contrário, é um mecanismo que permite ignorar os assuntos problemáticos, que nos distrai do que é sério, submergindo-nos num momentâneo ‘paraíso artificial’ pouco menos que o sucedâneo de dar dois num baseado ou um teco na cocaína, ou seja, umas feriazinhas da realidade.”

Os incomodados que se retirem

Na civilização do espetáculo, a internet é o portal de acesso a essa nova realidade que prioriza o entretenimento, a “curtir o momento”, sem maiores compromissos com o conteúdo. Um fenômeno de abrangência mundial, aparentemente irreversível, e que outros pensadores menos conservadores, citados pelo próprio Vargas Llosa, consideram uma consequência inevitável da voragem da pós-modernidade. Contraponto exemplarmente exposto pelo sociólogo Frédéric Marcel em seu Mainstream, publicado em 2010 na França, uma espécie de reportagem feita em diversas partes do mundo, a base de entrevistas que demonstraram que a busca por entretenimento, do lazer descompromissado, é hoje um denominador comum entre os povos dos cinco continentes. Um elo em comum entre nações mais desenvolvidas e as mais pobres, atestando que a autofagia cultural transcende ao poder econômico e as classes sociais.

É no bojo desse processo que a charlatanice se imiscui, sorrateira, aproveitando-se da vocação inata da humanidade para o adesismo compulsório, na forma do alentado efeito manada, para esgrimir um vanguardismo de fachada que faz das efervescentes redes sociais seu público alvo. A partir e em função delas, tenta-se não só pautar a mídia tradicional, redefinindo e redirecionando suas funções e modus operandi, como enquadrar o próprio Facebook, acusado de promover o retorno da censura no país pelo fato de não abrir mão de um justificável controle de conteúdo. Justificável até sob o ponto de vista legal, para o combate da pornografia, pedofilia e outros delitos que proliferam na internet.

Além do mais, é bom lembrar que apesar de seu caráter público, o Facebook é uma instituição privada, tem dono e normas internas, como qualquer empresa, e não é por causa da pressão de uma minoria que é obrigada a abrir mão de suas diretrizes. Deve respeitar, é claro, a legislação vigente de cada país, mesmo naqueles em que a liberdade de expressão é controlada, mas em último caso vale a premissa: os incomodados que se retirem. Afinal, ninguém é obrigado a frequentá-lo, mas se o faz é natural que deva se submeter às chamadas normas da casa. Por mais antipáticas que sejam.

Cara, coragem e câmera

Digo isso não em defesa ou por simpatia por uma rede que é o supra-sumo da fofoca e da bisbilhotice, e que, possivelmente por conta disso, abarque cerca de 1 bilhão de pessoas no planeta, tanto que retirei meu perfil logo tão logo comecei a ser bombardeado pelo entulho que ali predomina, dos quais simplesmente não conseguia me livrar. Muito trabalho para pouco proveito, coisa para quem tem paciência, ou não tem coisa melhor para fazer.

Mas daí as críticas contra um suposto regime ditatorial imposto pelo Facebook, esse papo de volta da censura sob o pretexto do bloqueio de fotos e material de gosto duvidoso, como a constrangedora foto da cantora Nina Simone – que tem todo direito de mostrar seus atributos (?) como eu também de torcer o nariz –, francamente, acho não só exagero como uma forçação de barra no sentido de impor uma liberalidade que, para começo de conversa, não se coaduna com a proposta da coisa. Para esse tipo de material há sites sem cortes e sem censura, tipo Adultfriendfinder, ora bolas.

Nada contra que os peladões, nudistas, hedonistas, gays e afins queiram porque queiram demarcar território num espaço tão disputado e amplo como o abrangido pelo Facebook. Trata-se efetivamente de um direito inalienável previsto na constituição, como lembram os acólitos de plantão, mas como uma legislação especifica ainda está por ser implementada no marco regulatório em discussão no congresso, a analogia aos tempos da censura militar soa como um verdadeiro disparate. A exemplo, aliás, da visualização na chamada mídia Ninja um modelo de pós-jornalismo, como se sair com a cara e coragem e a câmera em punho tivesse algum futuro fora do instável mundinho das redes sociais.

A ditadura do politicamente correto

Enfim, todos conhecem a história de como a ideia a princípio vagamente esboçada na cabeça do gênio da computação Mark Zuckerberg ganhou corpo a partir da utilização dos recursos de interatividade e compartilhamento, em pouco tempo extrapolando o âmbito universitário, para o qual inicialmente foi concebido, até virar febre mundial. A ponto de hoje em dia, ninguém querer ficar de fora. É nessa onda colossal que todo mundo quer surfar, de preferência sem intermediações, mediações, em suma, sem censura, como se a aceitação e o entendimento do que é postado tenha que ser incondicionalmente acatado. Mas, se o preceito básico da democracia é que a liberdade de um termina onde começa a liberdade alheia, como ficamos?

Parece inverossímil poder se conectar a 1 bilhão de pessoas. A compartilhar informações, material de toda espécie, não só por computadores, laptops, mas através de celulares, smartphones, tablets, e tudo instantaneamente. Natural que curtindo ou não, ninguém queira ficar de fora e deixar de usufruir de recursos que revolucionaram o planeta em todos os sentidos, e em funções dos quais tenta-se enquadrar, moldar esse Leviatã conforme interesses nem sempre assim tão nobres. Afinal, a praga do politicamente correto também virou arroz de festa no mundo globalizado.

Por mais que a liberdade de expressão e a liberalidade de costumes sejam não só desejáveis como imperiosas num regime democrático, nem por isso certas prerrogativas ou postulações pretensamente progressistas estão imunes a questionamentos, e até à rejeição. Assim como o contraditório, a discordância também faz parte do jogo democrático. Um jogo nem sempre limpo, mas do qual não devemos abdicar, mesmo nadando contra a maré, batendo de frente com a não menos execrável ditadura do politicamente correto.

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Ivan Berger é jornalista, Santos, SP