Thursday, 25 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

O estranho caso da matrinxã

Qual seria a melhor definição de “estranho”, senão aquilo que nós, em estado de plena ignorância ou desconhecimento, simplesmente não entendemos? Mecânica quântica e seus spins de entrelaçamentos entre partículas subatômicas são estranhos. Massa e energia escura, que juntas compõem a maior parte do Universo, são igualmente estranhas. E assim são porque não as entendemos completamente – inclusive os próprios físicos.

Mas há uma linha nada tênue entre o “estranho” vulgarmente relacionado à falta de saber que padece de ferramentas que nem sempre estão às mãos, como no caso de assuntos estudados pela astrofísica, e o “estranho” estereotipado, folclorizado, aquele que é ignorante porque assim optou ser ou porque tem motivos para isso. A essa segunda definição classifico o “estranho” de uma reportagem do portal UOL, que desse modo adjetivou uma das espécies de peixes mais conhecidas – e apreciadas – da região amazônica.

“Peixe de nome estranho da Amazônia pode substituir sardinha em latas”. Tanto o título quanto o parágrafo de abertura trazem tal adjetivo associado ao peixe, sem que ele nada complemente a informação em si. A palavra, colocada a esmo, visa apenas a enaltecer o “exótico” – outra palavra irresponsavelmente usada por deslumbrados para transmitir juízos de valor que vão além de sua própria etimologia. Quando se trata de Amazônia – essa região tão mágica, cheia de lendas e mistérios e tão distante quanto “Eldorado” – a imprensa “estrangeira” não economiza nos adjetivos que possam traduzir a sua própria concepção de “estranho”. Do ponto de vista de alcance, em se tratando de um portal de internet que pode ser acessado de qualquer parte do país e do mundo, até faz sentido não usar “matrinxã” no título como se fosse a coisa mais óbvia do mundo, como é para quem é da região ou conhece um pouco de sua fauna.

O que diabos seria exótico?

Se fosse esse o caso, um simples e objetivo “peixe amazônico” ou “peixe da Amazônia” seria suficiente para transmitir de forma clara e objetiva a informação da reportagem, acrescentando-se, no decorrer do texto, o nome do peixe. Ou ainda como fez a própria Embrapa, na matéria original que atraiu a atenção do UOL. Mas conhecendo o modus operandi da imprensa nacional, porém estrangeira, o exótico – no sentido folclorizado da palavra – vende mais. Do ponto de vista da botânica ou da biologia, por exemplo, exótico é tudo aquilo que não faz parte de uma região. Apenas. Não há, nesse caso, juízos de valor.

Um bom exemplo do sentido mais tosco dado à palavra exótico, que é similar ao estranho em termos de folclorização, aconteceu durante uma palestra feita em 2006 pelo apresentador Zeca Camargo, em Manaus, durante um evento com estudantes de comunicação social. Em certo momento, ele disse que, em período de férias, gostava de “visitar lugares exóticos” e citou o Vietnã como exemplo.

A priori, qualquer nação estrangeira, incluindo as que compartilham conosco os mesmos costumes, idiossincrasias ocidentais e pormenores bairristas, seriam exóticas do ponto de vista político e geográfico. A não ser que existam dois países geridos politicamente no mesmíssimo lugar. Nem a relação Vaticano-Itália se enquadraria nisso porque são duas nações independentes entre si. Sendo assim, afinal, o que diabos seria exótico e, em especial, estranho?

Mim, civilização. Você, estranho

Para não dar opiniões precipitadas, vamos tentar eliminar mais uma possibilidade para o uso da palavra estranho. A estranheza adjetivada pela reportagem seria uma forma de dizer que o nome do peixe foge aos padrões linguísticos vigentes da nação (ou da região onde estão os jornalistas da reportagem) e que, por assim dizer, não seria comum ao leitor médio?

Matrinxã, claramente de origem indígena, começa com a sílaba “ma”, tem oito letras e termina com vogal nasalizada. Utilizando o mesmo raciocínio do UOL, teríamos que classificar de estranho a carioquíssima palavra “Maracanã”, que começa com a sílaba “ma”, tem oito letras e que também termina com vogal nasalizada. O destino do trem das onze em São Paulo, o “Jaçanã”, por similaridade ululante, teria o mesmo fim. Que dizer do bairro do “Butantã”, onde mora quem escreve estas mal traçadas linhas?

Eliminada tal possibilidade, vamos à etimológica: seria estranha porque é indígena e, por assim dizer, soa estranha aos costumes orais dos civilizados falantes que assinam a reportagem, assim como seus editores? Convenhamos, tal questão foi colocada aqui por motivações retóricas, já que os exemplos supracitados já respondem a tais apontamentos. Seria como ignorar palavras como Itaim, Anhangabaú, Morumbi, Anhembi. O rio Tietê, de estranho, só tem o aroma. Quem sabe uma volta no parque do Ibirapuera possa refrescar a memória e lembrar outras palavras.

Estranha é a ignorância

Quando os antigos cronistas responsáveis por descrever as impressões dos “desbravadores” (“invasores” é mais indicado) diante de novas terras, tudo parecia mágico e distante, beirando o mitológico. Não por acaso, os relatos eram de longe verossímeis, porque antes do pragmático, do tangível e do objetivo, estava o deslumbramento do olhar estrangeiro para tudo aquilo que lhe parecia exótico, estranho.

Não é de impressionar que uma imprensa que trata expressões de fato estrangeiras como próprias de sua língua – como offshore, 50% off, entre outras –, e não como “estranhas”, não vá ter uma visão oposta ao que é, de fato, inerente ao seu próprio passado, à sua própria cultura. Não sou radical da língua. Penso que, como estrutura viva, faz parte do processo que ela sofra interferências e mude com o tempo. A questão não é linguística, no caso do UOL e de outros órgãos de imprensa que têm hábitos semelhantes. O caso em questão revela a eterna visão estrangeira do Sudeste para com os vizinhos da própria nação, colocando-os na escala arbitrária do exótico, do distante, do inapreensível. Quem está distante, na realidade, é quem acha que matrinxã seja um palavra estranha por si só. Não existem palavras “estranhas”, de fato. O que existem são palavras que não fazem parte do nosso cotidiano, que não compartilham sua estrutura com o código linguístico que usamos ou que não possuem a correlação exata entre signo, significante e significado, no contexto semiótico.

Se a questão toda é que a palavra não traz uma imagem imediata à cabeça, como pode acontecer para com quem é de “fora”, faça o exercício: escolha uma palavra comum e repita-a em voz alta várias vezes. Não vai demorar para que ela perca a correlação semiótica já citada para se tornar “estranha”. A palavra perderá o sentido no cérebro porque a repetição, invariavelmente, nos levará a deixar de processar a informação equivalente, e ela se tornará apenas um amontoado de sons. Não é estranho, é normal.

Estranho mesmo é quem consegue ter a capacidade de ser um estrangeiro dentro do próprio país. Estranho é quem não consegue vencer os limites das próprias limitações culturais quando há conhecimento aberto e compartilhado na rede. Estranha é a falta de sensibilidade de perceber que o tachado de “estranho” também está bem ali do outro lado do rio Pinheiros, batiza nome de rios e estações de metrô. Estranho é viver em um mundo de estereótipos e preconceitos.

Estranha é a ignorância nos tempos do saber.

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Mário Bentes é jornalista, escritor e fotógrafo