Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Antes tarde do que nunca

Num mundo em que o mal parece estar ganhando de goleada, gestos e manifestações de dignidade e altruísmo, por serem minoritários, chegam a ser vistos com desconfiança e até com desdém – tipo assim, esmola quando é muita até o santo desconfia. De fato, já foi o tempo em que a integridade de caráter e a seriedade de propósitos eram virtudes tão normais que não precisavam ser alardeadas, como acontece hoje em dia quando se enfatiza que alguém é honesto, não fosse a honestidade uma obrigação. Reflexo do triunfo da mentira e da hipocrisia nas relações pessoais, da consagração da contravenção e do delito como meio de ascensão social e controle do poder, o que somado ao niilismo reinante, resulta em algo parecido com um grande hospício, em que os loucos e os insanos estão no comando.

A História está cheia deles, como todos sabem, tanto que é difícil – e nem vem ao caso – enumerar os piores numa presumível lista de celerados e seus respectivos crimes. Para deixar barato, digamos que é um preço a pagar para que a civilização avance, mesmo que por linhas tortas. Durante séculos, precárias condições de vida, falta de instrução, diferenças étnicas, religiosas, isso tudo num ambiente radicalmente diferente do de hoje em dia, sem um mínimo de recursos e tecnologia, formaram o cenário ideal para o permanente estado de conflagração entre os povos e a sucessão de tiranos e facínoras de todas as estirpes, de históricos sobejamente conhecidos. O diabo é que, apesar de todos os extraordinários avanços das últimas décadas, a coleção de vilões continua aumentando, sinal cabal da natureza maléfica do bicho humano.

Obviamente, não cabe generalizar, pois a grande maioria, quero crer, ainda trilha o caminho do bem, ou pelo menos se vê instado a fazê-lo. Não faz diferença se espontaneamente ou na marra, o que importa é que chegamos a um estágio em que as leis e os princípios de cidadania funcionam razoavelmente, garantindo, apesar dos pesares, condições de vida muito melhores que no passado. Não sem a mesma saga de luta e sacrifícios para que a ordem e a legalidade prevaleçam, razão de ser, por sinal, da existência da imprensa e do jornalismo como guardiões da justiça e da liberdade. E por isso mesmo sujeitos a cobrança compatível com tamanha responsabilidade, mormente os de maior peso e visibilidade, cujo desempenho costuma ser auferido pela cabotina métrica do politicamente correto.

Longa gestação

Feito esse preâmbulo, sempre é bom lembrar que nenhum veículo de comunicação, de maior ou menor expressão, está livre de deslizes, desvios, mancadas, enfim, de errar como em qualquer ramo ou atividade. A complexidade de lidar com a mais elementar das faculdades humanas – a arte da comunicação, do trânsito e divulgação de ideias – não se esgota no desafio de informar e interpretar adequadamente os eventos, pois requer um zelo permanente e intransigente pelas instituições e o bem estar na sociedade. Estes são os fundamentos perenes da imprensa e do verdadeiro jornalismo, e dos quais seus representantes, isoladamente ou como instituição, não podem se descuidar e muito menos abrir mão, sob pena de não serem levados a sério ou, pior ainda, de ficarem estigmatizados por conta de eventual conduta malsã. É nesta encruzilhada que muita gente boa mete os pés pelas mãos.

Não é outro o motivo deste tardio mea-culpa das Organizações Globo sobre o apoio editorial dado ao golpe militar de 1964. Mesmo transcorridos quase meio século a chaga permanece, com as lembranças volta e meia sendo evocadas e exumadas do fundo do baú, a ponto de incomodarem a clã dos Marinho, que bem ao estilo “antes tarde do que nunca”, finalmente veio a público para admitir o que todo mundo já sabia. De um jeito maneiroso, não muito convincente, para muitos apenas uma jogada de marketing, mas que, em todo caso, não deixa de ser uma iniciativa elogiável, que se não redime a Globo por antecedentes que vão bem mais longe do que o simples e declarado apoio editorial ao golpe militar, abre um precedente digno de ser seguido. Cabe perguntar, quem mais se habilita? Ou vão dizer que só a Globo cerrou fileiras com os milicos?

Ora, em não sendo segredo que a grande imprensa em geral apoiou o golpe militar – mais recentemente, a Folha de S.Paulo chegou a chamar o regime de ditabranda em editorial, ou seja, mais branda que a dos países vizinhos –, assumir oficialmente tal coisa não é para qualquer um. Além de coragem, é preciso, sobretudo, desfrutar de condições que permitam suportar o peso de tal confissão sem sofrer grandes prejuízos, em termos de mercado e de credibilidade. Daí, possivelmente, a longa gestação do reconhecimento oficial de um equívoco que causava incômodo internamente, e que, por isso mesmo, não poderia ficar de fora do projeto de digitalização dos 88 anos de atividade do maior conglomerado midiático do país, sob pena de perpetuar essa mácula em sua história.

Repertório ilimitado

Quase 50 anos depois, tal reconhecimento, mesmo louvável, obviamente chega tarde. Além de não contribuir para melhor sua imagem, permite especular que no fundo não passe de uma estratégia para estancar a perda de mercado, principalmente na área televisiva, o carro-chefe do império global. Afinal, embora ainda mantenha uma liderança folgada no geral, alguns dos programas mais importantes dão mostras de saturação, como o Fantástico, o Domingão do Faustão e o próprio Jornal Nacional, e a queda de audiência só não é maior por conta da incipiência dos concorrentes. Em contrapartida, mesmo sem descartar essa possibilidade, cravar que a Globo resolveu lavar a roupa suja para despertar alguma simpatia, mais do que forçar a barra serve também para dar vazão ao indisfarçável recalque e rancor que a “Vênus platinada” desperta na concorrência. Em quem acreditar, de qual lado ficar, quem pode saber com segurança?

Seja como for, é inegável que o poderio e a ascendência da Globo no país são uma pedra no sapato de muita gente. Não uma pedra qualquer, uma pedra e tanto, capaz de obliterar a percepção das pessoas para a inegável contribuição de seus veículos em prol de uma televisão e de um jornalismo de primeiro mundo. Por mais que se desconfie de seus propósitos com essa confissão de culpa por apoiar um regime de repressão que acabou perdurando por duas décadas, uma autocrítica desse porte, além de inusitada, repito, não deixa de ser um exemplo a ser seguido. E não só no âmbito da mídia, da imprensa, mas numa conjuntura em que a carência de bons exemplos, como dito no início, consagra o niilismo nietzschiano como o símbolo máximo de nossos tempos.

Tanto isso é verdade que as evidências da predominância dessa mentalidade nefasta e profana estão por toda a parte, a começar por setores que deveriam ser os primeiros a dar o exemplo, caso da sucessão de escândalos que envolvem governantes e políticos, passando pelo próprio judiciário, cuja imagem alguns magistrados nitidamente empenhados em livrar a cara dos réus do Mensalão, comprometem de forma irreparável. Como acreditar e confiar numa justiça que se mostra tão cindida e vulnerável a influências estranhas? O que esperar de governantes e políticos cujo repertório de ilicitudes parece ilimitado e infinito? Um cenário por sinal não muito diferente daquele de 50 anos atrás, senão por alguma ameaça de conversão ao socialismo, coisa que nem o governo petista ousou fazer, pela institucionalização da bandalheira na vida pública e esferas do poder.

Consolidação da democracia

Apesar das teorias conspiratórias que compõem a tosca retórica da militância mais entrevada, é claro que não há clima e muito menos orquestrações em andamento que sugiram a mais remota possibilidade de algum golpe. Mesmo nos recentes manifestos populares, em nenhum momento houve qualquer pressão nesse sentido, ao contrário, o que mais desconsertou os analistas foi exatamente o caráter apolítico dos protestos. Acima das costumeiras aspirações político-partidárias, a insatisfação com os problemas crônicos e mazelas que se perpetuam no país, coloca a classe política e a própria mídia sob o mesmo prisma, ou seja, como co-responsáveis por esse estado de coisas.

Daí que, se a pecha de ter colaborado com a ditadura provavelmente continuará sendo associada à Globo por sua legião de detratores, ignorar a sua relevante contribuição para a consolidação de uma democracia forte o suficiente para resistir até mesmo ao festival de escândalos e entraves que impedem um crescimento efetivo, não passa de ignorância ou má-fé. Ambos, por sinal, precursores do mau-caratismo que impregna nossos tempos.

Em tempo: a propósito das arruaças que tomaram conta dos festejos do dia da Independência, bem que a Globo, agora de alma lavada, poderia sinalizar com um tipo de cobertura menos pragmática sobre eventos que, visivelmente, perderam o sentido cívico para enveredar para a baderna indiscriminada. Não tem cabimento a mídia continuar documentando informalmente a repetição de atos de vandalismo que afrontam não só as leis como o ideário democrático. Há que enfatizar menos a inevitável truculência policial para coibir ações que primam pela violência gratuita e cobrar do poder judiciário a adoção de punição mais forte para os vândalos, inclusive o ressarcimento pelos prejuízos causados, pois o ritual de prender para em seguida libertar, como é de praxe em nossa justiça, é o que mais estimula a prática delituosa.

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Ivan Berger é jornalista, Santos, SP