Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Editorial expõe contradições do jornalismo industrial

O jornal O Globopublicou, no final de agosto, um website especial sobre a história do jornal, no qual é possível consultar sua posição editorial em diversos eventos históricos. O principal deles é, claro, o golpe militar de 1964, sobre o qual as Organizações Globo se viram obrigadas a publicar um editorial explicando e não exatamente se desculpandopelo apoio conferido aos militares rebeldes. O mea culpa já foi destrinchado por diversos articulistas no Observatório da Imprensa, mas gostaria de contribuir com uma análise focada em como esse caso expõe as contradições do jornalismo industrial.

A ambiguidade do Globo pode ser percebida já no material histórico. Sobre a edição do dia 14 de março de 1964, dia seguinte ao comício em que João Goulart comemorou as medidas progressistas decretadas em 13 de março, a Redação atual de O Globo entende que “Jango pavimenta o caminho para a deposição”. O texto a respeito desta edição é bastante mais crítico do que o texto relacionado à comemoração do golpe, que dedica exatamente três frases a lamentar a ditadura e o posicionamento editorial do próprio Globo, mas lembra que a posse do presidente da Câmara dos Deputados como presidente da República respeitava a Constituição e que o regime de Castelo Branco foi uma “fase liberal” da ditadura – ou, como aparentemente preferem os herdeiros de Roberto Marinho, revolução. Aliás, o termo ditadura não é usado neste texto do memorial, nem mesmo 30 anos após o fim do regime.

O editorial específico sobre o 1º de abril usa, sim, o termo ditadura para se referir ao regime militar e até mesmo “golpe”, em lugar de “revolução”. No entanto, fracassa em mascarar a mentalidade patrimonialistada família Marinho e, principalmente, em se desculpar com o Brasil pelo apoio à deposição de um presidente eleito de forma legítima.

“Exigência inelutável do povo”

Em primeiro lugar, O Globo não consegue deixar de distribuir a culpa logo no início do texto, lembrando que Folha de S.Paulo e Estado de S.Paulo, para ficar nos jornais ainda vivos, também apoiaram o golpe. A Folha, com efeito, não apenas colaborou com a tortura e morte de um número ignorado de heróis da luta contra a ditadura, por meio do apoio à Operação Bandeirantes, como até hoje a família Frias acha que o regime foi uma “ditabranda”. Entretanto, as ações coletivas não desculpam as decisões individuais, nem as ações de uma determinada instituição podem ser redimidas apelando para o comportamento do grupo. As Organizações Globo podem ter colaborado menos ou mais do que outras empresas de comunicação com a ditadura, mas o fato é que, em 1964, decidiram contribuir para a deposição de um presidente democraticamente eleito. Ponto.

O editorial tenta deslegitimar o governo Jango, para justificar de alguma forma o apoio ao golpe. Um exemplo é o parágrafo a seguir:

“Naqueles instantes, justificavam a intervenção dos militares pelo temor de um outro golpe, a ser desfechado pelo presidente João Goulart, com amplo apoio de sindicatos – Jango era criticado por tentar instalar uma “República sindical” – e de alguns segmentos das Forças Armadas.”

O texto apresenta, ainda, trechos de um editorial assinado por Roberto Marinho em 1984, no aniversário de 20 anos da “revolução”, no qual o falecido patriarca das organizações Globo cita o “reconhecimento” do general Costa e Silva de que o golpe ocorrera “por exigência inelutável do povo brasileiro” e completa afirmando que “sem povo, não haveria revolução”, mas um golpe.

Presidencialismo retomado

Todavia, o povo poderia estar ao lado de Jango, como sugerem pesquisas do Ibope realizadas na época. O presidente deposto tinha, conforme estas enquetes, índices melhores de aprovação popular do que Dilma Rousseff tem nas pesquisas realizadas hoje. Marinho e o redator do editorial provavelmente não estão falando do povo em geral, é claro, mas da elite reacionária que foi às ruas na Marcha da Família com Deus pela Liberdade, apoiada por parte da classe média.

O editorial reivindica um raciocínio histórico, mas falha em apresentar uma contextualização adequada do “povo” a respeito do qual Marinho e os generais estão falando, quando defendem o golpe. Assim, o leitor fica com a impressão de que a cobertura do próprio O Globo, na época, foi equilibrada e imparcial, dando voz a todos os atores sociais. O apoio ao golpe teria sido apenas um momento de ingenuidade de Roberto Marinho, que confiou nas promessas de generais golpistas e foi traído. Pobre velhinho!

O editorial segue na tese da ingenuidade, com o parágrafo a seguir:

“Em todas as encruzilhadas institucionais por que passou o país no período em que esteve à frente do jornal, Roberto Marinho sempre esteve ao lado da legalidade. Cobrou de Getúlio uma Constituinte que institucionalizasse a Revolução de 30, foi contra o Estado Novo, apoiou com vigor a Constituição de 1946 e defendeu a posse de Juscelino Kubistchek em 1955, quando esta fora questionada por setores civis e militares.”

Infelizmente, os editorialistas não explicam exatamente como apoiar a deposição de um presidente eleito pelo povo, com voto direto, é estar “ao lado da legalidade”. Mesmo partindo da premissa de que Jango fosse impopular e estivesse tomando medidas extremas, é preciso admitir que seu governo não carecia de legalidade, como sabia Leonel Brizola. Ilegais foram as atitudes dos militares e do Congresso. Os primeiros tentaram vetar a posse do vice-presidente após a renúncia de Jânio Quadros. Os deputados impuseram a adoção de um regime parlamentarista como condições para a posse do vice-presidente legítimo. O presidencialismo foi retomado por voto popular, através de um plebiscito.

Apenas especulações

A ilegalidade da qual se acusava Jango era a de ter modificado a forma de indenização dos donos de terras desapropriadas por decreto, porque essa mudança não fora aprovada pelo Congresso. Nem mesmo em 1964 isso seria estopim suficiente para um golpe. O motivo verdadeiro, como se pode depreender do próprio material de O Globo, era a aproximação de Jango com as camadas populares, em detrimento da elite. Os golpistas levantaram o fantasma de um possível golpe comunista para justificar… Um golpe reacionário! Em suma, não existe lógica em se afirmar que Roberto Marinho era um amante da legalidade. O editorial, portanto, está equivocado neste ponto.

Finalmente, o texto lembra a anedota sobre o abrigo que Roberto Marinho dava a comunistas – na visão da junta militar – na Redação de O Globo:

Durante a ditadura de 1964, sempre se posicionou com firmeza contra a perseguição a jornalistas de esquerda: como é notório, fez questão de abrigar muitos deles na Redação do Globo. São muitos e conhecidos os depoimentos que dão conta de que ele fazia questão de acompanhar funcionários de O Globo chamados a depor: acompanhava-os pessoalmente para evitar que desaparecessem. Instado algumas vezes a dar a lista dos “comunistas” que trabalhavam no jornal, sempre se negou, de maneira desafiadora.

É interessante o fato de os próprios editorialistas contemporâneos terem usado aspas para se referir ao suposto comunismo dos jornalistas perseguidos pelo regime militar. O mais provável é que fossem apenas simpatizantes da esquerda, ou mesmo legalistas descontentes com o golpe militar apoiado por seu patrão. O parágrafo também permite depreender que a repressão nem mesmo sabia quais repórteres eram de esquerda, pois, caso contrário, Roberto Marinho não precisaria se negar “de maneira desafiadora” a fornecer uma lista dos mesmos.

O patriarca global não era burro. Pode-se imaginar que soubesse diferenciar um comunista de um simpatizante da esquerda comum. Também se pode imaginar que não podia simplesmente dispensar bons funcionários, ou criar na Redação de O Globo um clima de perseguição, arriscando levar repórteres a se demitirem. Talvez Roberto Marinho estivesse defendendo seu negócio, não seus comunistas. Enfim, trata-se, aqui, de meras especulações. Talvez ele tenha realmente abrigado comunistas por altruísmo.

Jornalismo e capitalismo

Mesmo sendo o caso, porém, é preciso lembrar que a decisão de apoiar o golpe causou a tortura e a morte de muitos jornalistas em todo o Brasil, que não podiam contar com o apadrinhamento do patriarca das Organizações Globo. Numa visão mais ampla, a defesa de um punhado de jornalistas foi uma gota d’água num oceano de abusos desencadeados pela posição do jornal. Roberto Marinho não deve, então, ser lembrado pelos comunistas que protegeu, mas por todos aqueles que ajudou, por cumplicidade com o regime, a matar e torturar.

A única afirmação correta no editorial inteiro vem na última frase: “A democracia é um valor absoluto. E, quando em risco, ela só pode ser salva por si mesma”. Em resumo, trata-se de uma autocrítica, mas sem nenhuma radicalidade, o que não deveria ser surpresa para ninguém. Não se pode esperar de uma organização como a Globo que investigue sua própria posição no mundo. Um observador externo, todavia, pode fazê-lo, e é o que farei a seguir.

A Globo, na verdade, assim como todas as outras grandes empresas de comunicação do país, não tinha alternativa senão apoiar o golpe de 1964. Fazê-lo seria abdicar da própria existência. Para compreender essa afirmação, é preciso entender, primeiro, que as organizações jornalísticas, em nossa sociedade, não têm como função principal produzir notícias, mas, sim, vender anúncios nos espaços em branco entre essas notícias, ou nos intervalos comerciais. O jornalismo é praticamente uma externalidade positiva do processo de venda de audiência para agências de publicidade.

Durante o século 20, houve um esforço de profissionalização do jornalismo, cuja meta era evitar uma interferência excessiva do setor comercial sobre o setor editorial das organizações jornalísticas. Costuma-se chamar a esse esquema de “separação entre igreja e Estado”, nas redações. Em algumas empresas, o setor editorial é mais independente – esses costumam ser os jornais de referência –, noutras, o setor comercial tem maior capacidade de decisão sobre o noticiário. Porém, todas as empresas têm como objetivo principal a sua própria sobrevivência, isto é, a acumulação de capital. No momento em que essa sobrevivência é ameaçada, os princípios éticos e as normas deontológicas do jornalismo passam a valer tanto quanto um cartão de crédito na Coreia do Norte.

Caráter formador

Poucas situações são mais perigosas para uma organização jornalística do que a crise causada por um golpe militar. Governantes com poderes discricionários e um exército para fazer valer seus decretos costumam simplesmente empastelar redações e fechar empresas. Que o diga Samuel Wainer, exilado pela ditadura, cujo Última Hora, favorável a Jango, foi deixado à míngua pelo governo militar e acabou vendido ao atual Grupo Folha da Manhã – em Porto Alegre, foi comprado pela família Sirotsky e se tornou Zero Hora. Assim, Roberto Marinho e outros proprietários de empresas de mídia tinham razões bastante fortes para temer o governo e prestar apoio ou, pelo menos, arrefecer críticas, mesmo se não compartilhassem – e compartilhavam! – do ideário dos militares e elite golpistas.

Para além do temor a possíveis represálias da junta militar, havia a coincidência de ideologia entre os proprietários dos meios de comunicação de massa e a junta militar. Ambos faziam parte da elite patrimonialista brasileira, a quem as políticas trabalhistas de Jango ameaçavam. As empresas, no sistema capitalista, dependem da extração de mais-valia do trabalho de seus funcionários, isto é, simplificando, da diferença entre o tempo de produção de um determinado bem e do valor efetivamente pago ao trabalhador. Noutras palavras, os capitalistas vivem de roubar tempo de vida dos operários e vendê-lo aos consumidores. Assim, políticas que garantam melhores condições ou salários maiores aos trabalhadores, como as implementadas por Jango, são sempre uma ameaça ao capitalismo.

Também deste ponto de vista, não haveria a menor chance de as Organizações Globo ou suas concorrentes apoiarem o presidente legítimo em detrimento dos golpistas. Não apenas a família Marinho estaria, neste caso, colocando em risco suas empresas, como estaria colocando em risco sua posição como capitalistas, como proprietários. O problema, entretanto, é a desproporcionalidade da reação. Em lugar de apoiar um compromisso da sociedade, através do qual as demandas da elite patrimonialista e dos trabalhadores pudessem ser equilibradas num meio-termo, a Globo preferiu apostar na manutenção do capitalismo selvagem no Brasil.

O debate a ser levantando, portanto, é até que ponto uma empresa jornalística deve ser considerada uma empresa como outra qualquer. Ao contrário de outras atividades, a comunicação de massa tem caráter formador, ou seja, não apenas reproduz um modo de organização social, mas também é um dos principais agentes de introdução de novos elementos no sistema. Estes elementos podem ser progressistas ou reacionários, podem favorecer a democracia, ou podem favorecer o capital. No Brasil, as grandes corporações jornalísticas têm sistematicamente falhado em defender a democracia contra o capital.

Discutir alternativas

Não é que o jornalismo brasileiro seja ruim. Embora não se produza aqui o melhor noticiário do mundo, tampouco se pode tachar nossa imprensa de puramente áulica ou reacionária. Expressões como “PIG” e “mídia golpista” são infantilidade e típicas de uma visão pouco sofisticada dos processos sociais. Em primeiro lugar, as organizações jornalísticas comerciais não são monolíticas, mas compostas por repórteres e outros funcionários com ideologias diversas, que competem entre si nas reuniões de pauta e políticas editoriais. Não se pode suprimir completamente essa disputa, sob pena de alienar bons jornalistas, essenciais para a produção de “furos” e reportagens investigativas que vão compor o maior ativo de qualquer jornal, revista ou emissora: a credibilidade. O funcionário competente é aquele que trabalha para si, não para a empresa. A consequência disso é que o funcionário competente só aceita trabalhar para uma determinada empresa enquanto seus interesses convergirem, ao menos na maior parte. Substituí-lo por um incompetente mais alinhado à ideologia corporativa, por outro lado, pode causar uma degradação do noticiário a longo prazo e afastar o consumidor.

Nosso jornalismo é, assim, muito bom em fiscalizar desvios de verbas públicas, crimes eleitorais, atentados ao direito do consumidor, destruição do meio ambiente e, eventualmente, até mesmo em devassar a corrupção de um presidente e causar seu impeachment dentro dos parâmetros legais. Todavia, nada disso questiona o sistema em si e, por isso, é tolerado pelos proprietários da mídia e por outros capitalistas. Por um lado, essa fiscalização aumenta a eficiência do sistema, ao eliminar pontos de corrupção que emperram inclusive a vida dos próprios empresários. Por outro lado, causa a impressão de que os problemas são pontuais, limitando-se a algumas maçãs podres no cesto, e não sistêmicos. Pode-se fazer bom jornalismo no Brasil, desde que a crítica não passe do limite do solo e atinja as raízes.

Daí a importância de se discutir a regulação da mídia no país. As empresas de comunicação, especialmente as concessionárias de faixas de rádio e televisão, têm seus negócios assentados sobre bens públicos. Jornais e revistas não são arrendatários de espectro eletromagnético, mas recebem subsídios e grande parte de sua receita vem de publicidade estatal. Portanto, ao fim e ao cabo, a sociedade é quem paga pela boa saúde desses negócios, que em contrapartida atendem, hoje, a muito poucas obrigações jurídicas.

Há duas saídas, não necessariamente excludentes entre si. A primeira seria aprimorar a regulamentação da mídia no Brasil, em especial a radiodifusão, tendo em vista que as empresas são beneficiárias de recursos públicos, de modo a garantir sua colaboração na manutenção e aprimoramento da democracia. A segunda seria incentivar ou criar empresas de comunicação sem fins lucrativos, independentes, tanto com recursos públicos, quanto privados. Essas empresas públicas ou beneficentes não precisam necessariamente competir com a mídia tradicional, mas poderiam ajudar a preencher as lacunas na cobertura noticiosa e a fazer uma crítica social mais radical. O governo poderia investir diretamente ou por meio de publicidade em veículos como a Agência Pública, InfoAmazonia, Brasil de Fato, Repórter Brasile outros, não apenas, como tem feito, em veículos ligados à esquerda tradicional, como Carta Maiore Sul 21, além dos falsamente jornalísticos “blogs progressistas” – meros instrumentos de propaganda do Partido dos Trabalhadores. Poderia haver, inclusive, incentivos ao cidadão e empresa que apoiasse projetos de jornalismo independente e comunitário, como há para quem destina parte dos impostos a projetos culturais e esportivos.

E, claro, os cidadãos precisam reconhecer a importância do jornalismo para a manutenção e avanço da democracia no Brasil e financiar esses projetos diretamente.

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Marcelo Träsel é jornalista e professor na Famecos/PUC-RS