Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

A morte cartorial da política

“O STF definiu que quem sai leva o tempo de TV e o fundo. É um balcão de negócios: ‘Tu me dás aqui’, ‘eu te dou ali’. ‘Tenho dois minutos e tenho tantos mil’, e não sei mais o quê.”

Em conteúdo, a frase do senador Pedro Simon (PMDB-RS) não tem nada de muito diferente dos comentários críticos sobre a criação de partidos que pululam na imprensa há algumas semanas. Mas é um bom resumo. Também não diz nada que o povo nacional desconheça em termos gerais, mas funciona como uma espécie de certidão passada da falência absoluta do sistema representativo.

Talvez seja totalmente inútil reiterar a existência de uma crise profunda da representação – coisa que principalmente o mundo acadêmico vem fazendo há décadas – sempre visível nos ganhos do imediatismo mercadológico sobre o liberalismo republicano, na proliferação das técnicas de sondagem plebiscitárias em detrimento de formas públicas de representação popular, no enfraquecimento da ação sindical em favor do interminável e redundante diálogo nas redes cibernéticas, na crise da antiga esfera pública disfarçada por sua ampliação midiática, e assim por diante.

Por outro lado, quando se faz o balanço das novas formas de ativismo social – desde as altermundialistas, ecologistas, indigenistas até as recentes manifestações da indignação popular –, verifica-se que, apesar de todo o seu potencial de perturbação pública, nada parece realmente afetar a maquinaria da velha institucionalização política, inercialmente garantida pelo ordenamento jurídico e pela reprodução burocrática dos partidos. Ou seja, mesmo saturado ou ultrapassado em seus aparatos representacionais, o sistema liberal-parlamentarista continua servindo de alavanca para o fechamento sistêmico da economia sobre si mesma e para o aumento do poder estatal sobre a cidadania.

Pegada obscena

No plano interno, a impossibilidade de existência do fenômeno político em seu sentido forte (o da “grande política”) não inibe a continuidade das clássicas atividades de Estado, em que o estamento (no sentido simplificado de grupo de pessoas com o mesmo status social) dos políticos profissionais funciona como teatro de fantoches do poder econômico.

Decorrem daí as hipóteses pós-modernistas de “morte da política” ou, pelo menos, de exigência da reabertura histórica da questão da política, de como desatrelá-la da relação indissociável com o Estado e o capital. Ao mesmo tempo, registram-se formulações teóricas sobre a natureza da política que podem ser usadas na tentativa de legitimação desse atrelamento ao Estado e ao capital, em que o primeiro, mesmo esquivando-se da clássica intervenção direta no processo econômico, reforça o seu papel de garantir por meio das novas regulamentações o livre trânsito dos capitais.

Uma delas é a do politólogo norte-americano David Easton, para quem a política se define pela existência de um regime de alocação de valores, em que a vontade de uma parte é necessariamente submissa à vontade da outra. Por “alocação” ele entende a transferência institucionalizada de bens, dentro do processo social, de uns indivíduos para outros. Se a alocação se dá por costume ou por troca, em contextos precários de interação, inexiste política. Esta última requer a ordem de um terceiro termo, o poder vinculatório, dotado da possibilidade de coerção física e válido para a totalidade do grupo social.

A concepção de Easton, como se vê, serve para afirmar a continuidade da política, desde que entendida como a pura e simples tarefa de governar, administrando um processo eleitoral, na mesma direção do que Antonio Gramsci chama de “pequena política”.

Nada disso é exclusivo do Brasil, a decadência da representação popular sob o sistema liberal-parlamentarista é universal. Entre nós, porém, a “pequena política” assume dimensões obscenas (no sentido de exposição da cena do poder sem mediações éticas) nas práticas de governo e nos enredos pré-eleitorais sobre a próxima sucessão presidencial, corroboradas a cada dia pela grande imprensa. Nenhuma ideia realmente política vem a público, nenhum laivo de projeto nacional, o cerne da disputa partidária é tão-só a conquista de minutos na televisão e de postos ministeriais.

Cidadania embrutecida

Se algo dessa ordem passa pelas cabeças ditas “públicas”, não se fica sabendo, talvez porque “o som não se reproduz no vácuo”, como dizia de seus adversários uma velha raposa política brasileira. O que transpira da imprensa são as peripécias burocráticas para a criação de novos partidos, o troca-troca de partidos (nas últimas duas semanas, 46 deputados transferiram-se), mudanças telenovelescas (Marina Silva no PSB) e declarações que têm a ver com adrenalina pessoal ou com capítulo de novela, mas nada a ver com o espírito público.

Uma dessas vem do governador pernambucano, Eduardo Campos, agora na reta da corrida presidencial: “Demos um grande passo hoje! Vamos abalar as estruturas! Marina fez política com P maiúsculo, e vamos ocupar o espaço da emoção, do novo, do que é decente” (O Globo, 7/10/2013).

No âmbito da “pequena política”, é bizantino perguntar como se separa a Política da política, ou seja, que estruturas são essas, em que momento apareceu o Pmaiúsculo e como se vai disputar com o império do espetáculo o espaço da emoção. Se a nossa diligente imprensa política perguntou, até agora não ficamos sabendo. A esperança é que as redes sociais façam uma pausa que esclareça em sua interminável logorréia, em sua transmissão ininterrupta de “hashtags”, em tudo aquilo que se confunde com “o novo”.

Caso contrário, a cidadania periga continuar bestializada, à espera do próximo capítulo da novela.

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Muniz Sodré é jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro