Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Manifestações como guerrilha e os desafios para a democracia

Desde a derrota do exército dos Estados Unidos no Vietnã, estrategistas militares sabem do potencial destrutivo de um exército guerrilheiro contra um exército altamente estruturado e militarizado. A derrota dos Estados Unidos no Iraque, a despeito da declaração de vitória de George W. Bush, e as dificuldades de ingleses e norte-americanos que combatem no Afeganistão indicam claramente que exércitos estruturados enfrentam severas dificuldades para lidar com guerrilhas. A estrutura militar é o exemplo clássico de organização que segue uma estrutura rígida e burocratizada. São linhas de comando claras, decisões centralizadas no topo da estrutura da organização, tarefas divididas de forma especializada e um foco extremo na disciplina. A autonomia dos soldados é limitada. As pessoas que têm o poder de decisão são claramente identificadas, inclusive visualmente, por meio de uniformes.

O modelo militar, junto com a igreja católica, foi o precursor da organização burocrática moderna, conhecida e reconhecida como rígida. Todo grupo de pessoas que se organizam para atingir um objetivo são chamados pelos especialistas de organizações. Exemplos são empresas, órgãos do governo, partidos políticos e forças de segurança. Organizações militares funcionam muito bem quando estão em um ambiente com pouca alteração e mudança e, também, quando há previsibilidade das dificuldades que ela encontra. Um dos dogmas da organização militar é que a sua força deve ser demonstrada de forma clara com o intuito de amedrontar o inimigo. Não é à toa que somente os Estados Unidos realizam cerca de 40% do gasto mundial militar. Organizações como os exércitos são chamadas pelos especialistas de mecânicas devido à sua rigidez.

A guerrilha é quase o oposto da organização militar tradicional. Em geral, é muito difícil saber quem toma as decisões da ação. O que deve ser feito é discutido de forma colegiada. Ao invés de atuar de forma visível e clara, as guerrilhas se escondem ao máximo e apenas aparecem na hora do ataque. Elas tendem a pensar milimetricamente suas ações e seus alvos. O grande trunfo é a sua capacidade constante de surpreender o inimigo e de voltar a se esconder rapidamente.

As unidades de ação são compostas por poucas pessoas que se organizam e se reorganizam dependendo da necessidade. Trata-se de um tipo de organização que se molda dependendo da situação e da circunstância. São organizações com pouca ou quase nenhuma hierarquia, executores e planejadores das ações são as mesmas pessoas, há ampla autonomia para os participantes. Muitas vezes, as guerrilhas possuem uma ideologia por trás, como experimentamos no Brasil na Guerrilha do Araguaia.

Mais espaço

A história mostra que quando acontece o encontro entre um exército militarizado tradicional e uma guerrilha, a segunda tende a levar imensa vantagem. O contraponto entre organização militar e guerrilheira é útil para entendermos as dificuldades enfrentadas pelas forças de segurança militares para lidar com os protestos recentes no Brasil. As Polícias Militares estavam acostumadas a lidar com manifestações em que havia um líder para negociar, onde era possível prever a ação dos manifestantes e até mesmo o trajeto que a manifestação ia seguir. Tais manifestações, como greves, por exemplo, tendiam a ser organizadas por partidos políticos ou sindicatos que seguem a lógica da organização mecânica. Ou seja, a polícia possui experiência e conhecimento para lidar com manifestações feitas por organizações que seguem uma lógica de operação semelhante a sua.

Porém, osBlack-Blocsseguem uma lógicade guerrilha – e isto ficou claro no último 7 de setembro. Estamos falando de coletivos de pessoas que seguem a ideologia anarquista e não possuem uma estrutura rígida. Suas decisões são tomadas de forma colegiada, não há lideranças claras e seus atos são organizados e reorganizados conforme eles estão acontecendo. Além disso, as tecnologias de mídias sociais e também as tecnologias móveis auxiliam sobremaneira os manifestantes guerrilheiros. Isso porque por meio da mídia social conseguem passar instruções e informações de forma instantânea para as pessoas que fazem parte do grupo ou simpatizam com ele. Por meio das tecnologias móveis, como smartphones, conseguem filmar as ações de violência da polícia e difundir para os demais.

A Mídia Ninja usa apenas um telefone celular e envia imagens ao vivopara milhares de pessoas e com isso consegue romper o monopólio da produção de significado da mídia tradicional. Os manifestantes guerrilheiros provocam os policiais o tempo todo, pois a violência policial registrada pelo smartphone oupor câmaras de vídeo portáteis reforça a sua causa e provoca o apoio da opinião pública. A própria presença da mídia tradicional inibe a ação mais agressiva da polícia.

Na manifestação guerrilheira, os manifestantes caminham em conjunto, mas em momentos específicos se dividem em grupos menores para praticar ações de pichação, por exemplo, quando um grupo maior chama a atenção da polícia e grupos menores ou mesmo indivíduos praticam pichações. Na estratégia Black Bloc, os manifestantes se vestem igual e escondem, mostrando a dimensão de pouca visibilidade guerrilheira. São manifestações que duram muitas horas e se deslocam pela cidade, causando cansaço na força policial que muitas vezes carrega equipamentos pesados e está vestida com uniformes bastante quentes.

As manifestações guerrilheiras são uma nova forma de exercício de pressão popular sobre os governantes. Elas canalizam insatisfações com a desigualdade e com os problemas do país. O desafio é saber como manifestantes guerrilheiros e polícias militares conseguem interagir preservando a ordem democrática.

Organizações como os Black Blocs e o Mídia Ninja vieram para fincar marcas instabilizadoras no cenário político atual. Outro grande desafio seria incorporá-los ao processo político orientado pela disputa democrática regular. Todavia, como tais organizações rejeitam a política convencional e estabelecem críticas contundentes a atuação dos partidos políticos, fica difícil imaginar qual seria o melhor caminho para tal incorporação.

Uma possibilidade poderia ser o debate – interminável – sobre reforma política considerar a possibilidade de candidaturas avulsas. Assim, esses e os demais grupos que indagam a legitimidade do sistema político teriam mais espaço para participar do processo político democrático e reduziria o ímpeto violento das manifestações que conduzem. Diminuir a assimetria nas relações entre representantes e representados e incorporar novos personagens nas atividades políticas pode ser um caminho interessante.

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Rafael Alcadipani é professor do curso de Administração de Empresas da FGVSP; Marco Antonio Carvalho Teixeira é vice-coordenador do curso de Administração Pública da FGVSP