Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Sobre máscaras e mascarados

“Para recobrar aquela significação obsoleta de civilidade e relacioná-la ao frêmito da vida pública, eu definiria civilidade da seguinte maneira: é a atividade que protege as pessoas umas das outras e ainda assim permite que elas tirem proveito da companhia umas das outras. Usar máscara é a essência da civilidade. As máscaras permitem a sociabilidade pura, separada das circunstâncias do poder, do mal-estar e do sentimento privado daqueles que as usam. A civilidade tem como objetivo a proteção dos outros contra serem sobrecarregados por alguém. Se alguém fosse religioso e acreditasse que o impulso vital do homem é o mal, ou então se alguém tomasse Freud a sério e acreditasse que o impulso vital do homem é a guerra interior, então, o mascaramento do eu, a libertação dos outros de serem apanhados pela carga interior de alguém seria um bem evidente”.

O trecho acima foi extraído da célebre obra O declínio do homem público: as tiranias da intimidade, do sociólogo norte-americanoRichard Sennett. Algumas ideias ali presentes parecem bastante esclarecedoras para avaliarmos questões atualíssimas da semana como o direito (ou não) de exposição pública da intimidade de artistas e políticos, além daquela que sobrevém desde os protestos de junho, o uso de máscaras.

Para sair um pouco do holofote midiático da censura e da violência das manifestações, destaco a questão sociológica observada por Sennett, o conceito de público (bem público e espaço público), tratado muitas vezes de maneira óbvia ou banal. O público é impessoal, diz Sennett; ou pelo menos deveria ser. Quem presta concurso público sabe muito bem o que isso significa: isonomia, tratar todos (absolutamente todos) como iguais, sem predileção ou privilégio a nenhuma das partes interessadas.

Lógica “biopolítica”

Entretanto, quando nos voltamos ao espaço público, é a impessoalidade que encontramos? Não. O que constatamos é um lugar dominado por alguns grupos que se valem tanto de instituições e favores entre si para perpetuarem um estado de coisas, quanto de um discurso conservador que semeia o medo de uma ruptura nessa configuração político-espacial. Um medo privado que se torna público (generalizado pela mídia). Medo de um rearranjo de forças que destruiria não só essas alianças “familiaristas”, mas sua própria legitimidade. Dizem eles: querem acabar com a nossa democracia, a legalidade de nosso processo histórico.

O que muitos ignoram é que essa democracia, ou essa história da qual se orgulham, é excludente. Exclui uma minoria, digamos, “não representativa”, desprezível. Aprecio, particularmente, uma passagem do filósofo italiano Giorgio Agamben, quando ele fala da transição dos regimes totalitários para as democracias de massa do século 20. Reproduzo aqui:

“A contiguidade entre democracia de massa e Estados totalitários não tem a forma de uma improvisa reviravolta: antes de emergir impetuosamente à luz do nosso século, o rio da biopolítica, que arrasta consigo a vida do homo sacer, corre de modo subterrâneo, mas contínuo.”

Segundo essa lógica “biopolítica”, maiorias estariam autorizadas a exterminar as minorias, seja subjugando-as ao ordenamento, seja subsumindo-as na massa, seja de maneira mais crassa (tanatopolítica). Essa história nós conhecemos bem: em nome de uma vontade coletiva populações e comunidades inteiras são dizimadas.

Como ouvir uma voz silenciosa?

Mas quem seria aqui a maioria e a minoria?

Uma minoria, como disse Gilles Deleuze, não é numérica, ou seja, não se define pela quantidade. O que define uma minoria é a ausência de “modelo” ou de legitimidade social (expressão acalentada pelos conservadores). Por isso não tem rosto e fala melhor na linguagem do “devir”. Um exemplo: os negros são minorias no Brasil, embora numericamente superiores. O devir-negro é algo que sempre incomodou a maioria-branca (europeia).

Nesses últimos meses, temos presenciado um “devir minoritário” expresso por uma mensagem amplamente satirizada: “Estamos lutando por algo que ainda não sabemos o que é, mas que pode ser o início de algo muito grande que pode acontecer mais para frente.” Esse devir incomoda a maioria que reivindica um “rosto” para poder negociar, capturar.

Retornemos, entretanto, às mascaras. Essa minoria é percebida cotidianamente por nós? Interessamo-nos por ela? Como ouvir sua voz silenciosa em meio ao estardalhaço das ruas, dos canais de jornalismo e das redes sociais? Sennett sugere: abdicando a pessoalidade como pressuposto de nossa convivência, restituindo a impessoalidade aos espaços públicos.

O covarde tem medo do devir?

As máscaras são um modo (simbólico, é verdade) de dar impessoalidade a todos nós enquanto homens públicos, cidadãos, pois apaga todos os índices de identificação que poderia impedir o acesso ao outro (seu drama, sua condição, seus saberes, sua singularidade). A “máscara é a essência da civilidade” não porque ela nos estimula a sermos falsos, a fingir, a enganar, a cometer crimes, mas porque ela inibe que nossas relações sejam discriminatórias, baseadas na identidade pessoal de um indivíduo ou grupo.

Uma sociedade que valoriza o rosto como fiador da verdade e preza pela segurança psíquica ou emocional, só poderia condenar o uso de máscaras, atribuindo ao “mascarado” uma designação negativa, temerária. Apenas em situações oficiais (como o carnaval) é permitido “inverter” valores, transvalorizá-los, não ter uma identidade, nem ser aquilo que a nossa cultura ou moralismo exige.

Por trás das máscaras há questões muito mais complexas sobre nós mesmos que não se resolve simplesmente argumentando a favor ou contra o seu uso, ou em termos de bem e mal. É isso que temos presenciado em comentários raivosos e simplificadores: são uns covardes que escondem o rosto. Acusações que não resistem à menor das reflexões: o covarde se arrisca, sai às ruas em busca de algo novo? O covarde tem medo do devir? Ou seriam covardes aqueles que precisam de um tutor (um partido, uma ideologia), de um rosto, de dispositivos jurídicos para relação (negociação), ou mesmo de um caminho pavimentado para o futuro (um projeto político)?

A cidade é propriedade de todos

Civilidade possui a mesma base etimológica de cidade e se define como convívio com as diferenças, com a diversidade que preside um espaço comum. O grande erro aqui é sempre pensar o comum como homogêneo e esquecer o tecido conflitivo e tensional que a caracterizava antes de nele projetar relações personalistas (exclusivistas). Mas Sennett é taxativo: civilidade é não “sobrecarregar” os outros pelos favores (pessoais) anteriormente concedidos, nem mirá-los por qualquer estigma social, afinidades ou desavenças pessoais. A máscara apaga a personalidade (identidade) tornando o Outro (qualquer) singularmente interessante; permite que sua companhia seja “proveitosa” não enquanto mera alteridade, mas como fonte inesgotável de mudanças.

Por extensão, incivilidade é a inaptidão em lidar com a diversidade, com as relações impessoais e as transformações. É o ímpeto do “aborrecente” que se isola em seu mundo, que usa as redes sociais para curtir seus próprios comentários, que faz da rua a extensão de seu quarto, ou que vê no Outro a fonte de suas frustrações e fracassos existenciais.

Mas também é o adulto bem esclarecido e informado que busca nas notícias, comentários e imagens, elementos que reforçam a sua própria opinião; que considera amigo aquele que apoia suas ideias (e que não as confronta); ou que exige sempre do Outro suas credenciais como condição de validade discursiva: nome, sobrenome, profissão, especialização, simpatia partidária. Há uma grande contradição aqui: dizemo-nos progressistas, contra o preconceito e a discriminação, mas exigimos sempre, como pressuposto do relacionamento, que o Outro mostre o seu rosto, esse precedente de raça, do credo, da opção política ou sexual.

A cidade, segundo Sennett, enquanto lugar de convivência com a diversidade, é propriedade de todos. Inclusive dessa minoria que agora (em sua singularidade) quer se fazer ouvir. Seremos civilizados o suficiente para aceitá-los como tais?

Estado de crítica

Curiosamente, o alvo das críticas de Sennett é o narcisismo das sociedades ocidentais, a preocupação demasiada com o Eu, em conhecê-lo tal qual é, ou em satisfazê-lo através das mais diferentes terapias e objetos de consumo. Acredita-se que, procedendo assim, nossa angústia e muitos problemas sociais se resolveriam. Os sujeitos, tanto individuais como coletivos, são tomados por esse narcisismo. Questões existenciais como: tenho de ser sincero comigo mesmo; ou: devo ser condizente com meus ideais, são as mesmas que afligem os sujeitos (Eus) coletivos, dos partidos políticos aos movimentos sociais institucionalizados.

Nas sociedades narcisistas não há lugar para a hesitação ou o meio-termo. Tanto menos para as pessoas sem rostos ou mascaradas. Falta de caráter e superficialidade são aqui atributos negativos. Diversidade e impessoalidade são mananciais de ansiedade e sofrimento. Consequência óbvia é o paroquialismo, o isolamento ou fechamento sobre si mesmo. No âmbito social, esse paroquialismo torna-se exclusão dos diferentes e dos estranhos que ameaçam uma estabilidade heroicamente conquistada. Os efeitos disso podem ser observados na divisão das cidades: de um lado, os condomínios fechados; de outro, o antro daqueles cujo crime é serem diferentes; no meio um forte aparato de segurança.

Mas é na organização política e societária que esse paroquialismo hoje mostra o seu anacronismo: de um lado, os mascarados; de outro os representantes do Estado, os partidos políticos (da direita e da esquerda) e os movimentos institucionalizados; no meio a mídia jornalística que atua como dispositivo moral de vigilância contínua.

Se ainda não sabemos o que querem os mascarados, sabemos muito bem o que querem esses “Eus” coletivos: aplacar um estado de crítica permanente que a mídia jornalística não é capaz de oferecer; silenciar a presença perturbadora da minoria; resgatar a crença de que o consenso é a felicidade de todos (absolutamente todos). Há exclusões aí? Para eles não, pois a minoria (que não é partidária, nem institucionalizada) é insignificante e por isso deve ser mantida em seu devido lugar.

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Eduardo Yamamoto é jornalista