Friday, 19 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1284

Todos iguais, mascarados ou não

“As manifestações de junho, em meu país, são parte indissociável do nosso processo de construção da democracia e de mudança social.” (Presidenta Dilma Rousseff, Assembleia-Geral da ONU, 24 de setembro de 2013)

“Nas ruas, todos representam a si mesmos.” (Ciro Brito Oiticica, O Globo, 19 de outubro de 2013, ver aqui)

2013. Após o inverno de manifestações e Copa das Confederações, a primavera. E com ela, novas manifestações no Brasil – em especial na cidade do Rio de Janeiro. Como dantes, o questionamento das ruas não passou alheio aos olhos do poder público – a repressão aos manifestantes foi intensa. A mídia ofereceu farto repertório de representações dos eventos – tanto caricaturando manifestantes quanto denunciando ações violentas de agentes públicos.

Diante do fluxo da vida cotidiana (regularmente interrompido pelo calendário de feriados e preparativos dos megaeventos), as manifestações – questionamentos políticos – são violentas; irrompem e interrompem zonas de conforto vividas. Abrem uma brecha na tessitura do que Pierre Bourdieu denominou “poder simbólico”, interrompendo a reprodução monótona e irrefletida de relações de força ocultadas na linguagem. Questionamento implica violência simbólica, à qual responde com violência simbólica e física o aparato do Estado.

A recusa de agentes públicos em ouvir questionamentos e justificar suas práticas situa ações de repressão estatais em terreno ético [nas concepções modernas de soberania, o monopólio do uso legítimo da violência atribui um caráter ético distintivo ao estado. A violência permanece no background dessa especificidade ética, geralmente associada com o provimento de segurança contra inimigos e catástrofes naturais]. A repressão não apresenta apenas violência normatizante, mas busca tornar presente a legitimidade da qual, numa democracia, o estado usufrui via autorização dos cidadãos. A repressão busca demonstrar a legitimidade da violência do estado e deslegitimar questionamentos – além de calar, deter, desmoralizar contestadores, busca referendar tais ações aos olhos do público.

Interpretar e agregar demandas

A resposta violenta do Estado é uma tentativa de preservar o marco ético de sua existência política. Como monopolizador do uso legítimo da força física e como legítimo representante dos cidadãos. O ato de sair às ruas para manifestar opiniões diferentes, por vezes contrariando coros de contentamento que emanam do poder público de tempos em tempos, reveste-se, nos lembra Hannah Arendt, de vital provocação. Uma vida que se coloca em posição de contestar o lugar que lhe destinaram num dado contexto é uma voz que denuncia o silêncio – o silêncio da voz dos presumidos representados diante do monólogo dos representantes referendados pelas urnas (ou guindados à baila por negociações no sistema político formal).

A presença de uma voz destoante e dissonante questiona a noção de representação política. No Brasil, um quase monopólio da representação é usufruído por partidos políticos em convulsão, desconfortáveis com questionamentos de toda sorte, deficientes na capacidade de traduzir demandas cidadãs em políticas públicas – segundo Daniel Aarão Reis, isso é o que está em jogo nas manifestações de 2013 [ver aqui]. Diante de políticos profissionais que só ouvem e falam em época de eleição, a presença de centenas, milhares de vozes contestadoras constitui um desafio ao monopólio da representação política centrada no estado. Um desafio sobremaneira ético.

Vidas que se colocam em contraposição à violência simbólica do silêncio representativo se fazem presentes num espaço político dantes hermeticamente fechado. A contestação dos corpos fora de seus lugares de origem e destino repolitiza a linguagem e as formas de vida. A representação deixa de ser tão-somente estar no lugar de alguém e se torna a potencialidade de interpretar, agregar demandas e dar a estas dignidade e vazão. A reação violenta dos agentes públicos visa preservar incontestes suas posições. Busca manter o silêncio confinado nas instituições.

A premissa da legitimidade estatal

À medida que noções de política – e de quem dela toma parte – são questionadas, a vertigem se instaura.

De acordo com Bourdieu, o questionamento do “arranjo da vida vigente” permite vislumbrar possibilidades de transformação – na presente conjuntura, impactadas pela repressão estatal. No século 21, assistimos a uma sobreposição inquietante. Se multiplicam vozes contestadoras e manifestações de insuficiência do sistema político formal – da Primavera Árabe ao Occupy Wall Street, passando pelos Indignados e movimentos alterglobalizantes – e a repressão estatal se intensifica, por vezes travestida de “guerra ao terror” ou combate a fundamentalismos religiosos.

Nesse contexto, os manifestantes são forçosamente unificados sob a égide do perigo. Suas posturas – no dizer de Arendt, singulares – são reduzidas ao mínimo denominador que compraz o estado. Numa analogia truncada com o sistema político formal, manifestantes são tornados integrantes de uma coalizão de vândalos – professores, ativistas, Black Blocs, mídia alternativa, parlamentares de oposição etc. Todos iguais, mascarados ou não. A mídia, por vezes, facilita esse processo de estigmatização com fins de contenção e dissuasão rápidos.

A ilusão de uma identidade coletiva dos manifestantes é produzida compulsoriamente pela repressão violenta do estado e se reitera em representações midiáticas – caso dos manifestantes presos sem flagrante na Cinelândia, dia 15 de outubro e prontamente encaminhados a instituições prisionais sob a alcunha de “vândalos”. Nesse momento a repressão às manifestações entra em parafuso e contradiz a premissa da legitimidade estatal – bem como a expectativa (frustrada) de que contestações cessem (por apatia, cansaço, desmobilização).

O “imaginário do perigo”

Em setembro, em discurso contundente na abertura da Assembleia-Geral da ONU, a Presidenta Dilma Rousseff se referiu às manifestações em curso no país, buscando associá-las com uma imagem positiva de seu governo. A presidenta ressaltou efeitos produtivos das manifestações em termos democráticos.

“As manifestações de junho, em meu país, são parte indissociável do nosso processo de construção da democracia e de mudança social. O meu governo não as reprimiu, pelo contrário, ouviu e compreendeu a voz das ruas. Ouvimos e compreendemos porque nós viemos das ruas. Nós nos formamos no cotidiano das grandes lutas do Brasil. A rua é o nosso chão, a nossa base” [ver aqui].

Ao passo que a presidenta negava a repressão às manifestações, manifestantes se reuniam diante da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro. Desde junho, a Câmara tornou-se um dos pontos focais de contestação na cidade, culminando com a sua ocupação pacífica em julho, em protesto contra o açambarcamento de uma CPI sobre transporte público pela base governista, legando o controle da CPI a parlamentares que publicamente condenaram sua criação (o preço das passagens de ônibus, bem como os megaeventos, foi um dos catalizadores das manifestações no ano). Após intensos cerco e repressão policiais, os manifestantes sairiam da Câmara em agosto.

Mas em setembro e outubro, os professores do município do Rio protestaram contra políticas públicas para a educação. A Cinelândia novamente ocupou o imaginário do perigo, associada, na mídia, a um campo de batalha. Nessa conjuntura, as manifestações colocaram na berlinda a espiral repressora, ao desnudar suas contradições éticas. Tais vieram à tona na cobertura das manifestações na semana em que foi comemorado o Dia do Professor, 15 de outubro de 2013.

Expiação e humilhação

Ao longo dessa semana, as investigações do desaparecimento de Amarildo de Souza conduziram à prisão do ex-comandante da UPP da Rocinha [ver aqui], à medida que se atestava a tortura seguida de morte de Amarildo nas mãos de policiais militares. A mídia dedicou comparativamente pouco espaço para tais eventos, em contraposição com a cobertura das manifestações na Cinelândia.

A abordagem da mídia sobre ações policiais impacta o caráter ético do estado. A ênfase na corporação deixa menos evidente o papel central do controle político sobre suas atividades (ao longo dos processos de pacificação e megaeventos). A PM sob pressão não é nem inocente, nem a guia do projeto político em questionamento – como agente público, é parte do processo. A responsabilidade é política, além de policial.

Ao desaparecimento de Amarildo, sua tortura e morte nas mãos de agentes públicos, se seguiu a invisibilidade na mídia. A imagem de Amarildo não apenas cessara na mídia e redes sociais; tampouco se apresentavam seus carrascos aos olhos do público. A identidade e a imagem pública dos suspeitos de torturar e matar Amarildo foram poupadas. Em contraste com o segundo desaparecimento de Amarildo, os “vândalos” da Cinelândia, pelo “crime” de ocuparem as escadarias da Câmara de Vereadores no dia 15 de outubro, foram submetidos a minuciosa expiação e humilhação, em cárcere e nas páginas dos jornais. Em analogia com os presos políticos na ditadura militar.

Apoio à resistência dos Black Blocs

A necessidade de não apenas silenciar questionamentos – por meio da violência – mas de desmoralizar os contestadores abre o campo da Política para sua dimensão ética. Ao trazer à tona o caráter ético da ação estatal – especialmente quando violenta – manifestantes politizam a política. Ao estigmatizar os manifestantes como vândalos, agentes públicos pretendem manter inconteste sua legitimidade sobre a violência e referendar o estatuto ético do estado – como racional, ordeiro e acima de questionamentos. Uma demarcação ética tem lugar: através da atribuição pública de culpa (repressão, prisão, desmoralização) agentes estatais imputam a outrem a violência que demasiado empregam.

Nesses termos, o questionamento do caráter ético da violência do estado fulgura como contestação fundamental. Esse questionamento não se funda no uso da violência física contra o estado, pelo contrário – contestação se desenrola, se fortalece, à medida que agentes públicos reagem violentamente a manifestações pacíficas e democráticas. Trazendo à tona tal violência, manifestantes levam o estado para além de suas presumidas fronteiras morais. Desta feita, o uso da violência pelo estado – sob a premissa de manter a ordem social, separando cidadãos ordeiros de arruaceiros, bandidos e ameaças – se deslegitima, à medida que o ato de fronteirização simbólica se torna uma cunha indesejável aberta entre o poder público e cidadãos em contestação democrática. Tal clivagem enfraquece (ainda mais) o poder político formal.

A ação policial em 15 de outubro ocorreu no esteio da declaração do sindicato dos professores do Rio de apoio à resistência dos Black Blocs [coletivos anarquistas que participaram de diversas manifestações no século 21 ao redor do mundo, a partir da Batalha de Seattle, a reunião da OMC na cidade norte-americana em 1999] contra a violência policial nas manifestações cariocas [ver aqui] em 9 de outubro – evento divisor de águas que reforça as contradições éticas do uso da violência para reprimir manifestações.

Semanticamente invocadas

Ao questionar a repressão policial em termos democráticos, ao evidenciar suas demandas (manifestas de forma pacífica) diante da violência de agentes públicos, professores puseram em questão a legitimidade de agentes públicos usarem a força indiscriminadamente para “manter a ordem”. E ressaltaram a necessidade da força estar a serviço, não contra, a população. Esse questionamento mobilizou a Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República, que se reuniu com forças de segurança cariocas para evitar que educadores fossem alvo de violência. Ao apoiarem os Black Blocs (no questionamento que estes grupos fazem da violência policial-estatal como sendo naturalmente legítima e, portanto, passível de ser aplicada indiscriminadamente), professores traçaram eticamente uma linha que separa a violenta repressão estatal do que seria o uso legítimo e legitimado da violência para manter a ordem. Nesses termos, o estado faria uso desordenado e desordenante da violência, não para proteger, mas para fragilizar.

Após algumas semanas nas quais diversos veículos apontaram reações de agentes públicos às manifestações como legítimas, e nas quais tentativas de homogeneização forçosas abundaram [segundo a revista Veja, o sindicato de professores fora dominado pelos Black Blocs; ver aqui], em matéria (“Crime e Castigo”) do dia 17 de outubro O Globo nomeou os manifestantes presos de “vândalos” e “acusados de crime organizado” (dias depois, evidenciado o caráter arbitrário de suas prisões, voltavam a ser simplesmente “manifestantes” no dizer do jornal, que lhes forneceu algum espaço e oportunidade de responder as “acusações” [ver aqui]).

Avançando nas páginas, a estigmatização dos manifestantes prosseguia. Máscaras, que não havia, foram semanticamente invocadas. Armas assinaladas, ainda que ausentes nas mãos dos “vândalos”. Paralelos com o terrorismo e com atos de violência aleatória nos EUA, traçados via estereótipos (de gênero) inscritos nos corpos de “vândalos” associados aos irmãos Tsarnaev (do atentado em Boston) – corpos de “aparência frágil” diante da força e firmeza dos agentes públicos, porém “perigosos” e, pois, dignos de serem presos. Inimigos públicos número 1.

Mais simbólica do que física

Nessa conjuntura, a contestação ética da violência de agentes públicos é uma ação de resistência, uma tentativa de impedir o uso da violência para calar demandas democráticas através da produção de “ameaças”. Igualmente, constitui um ato criativo – novas possibilidades políticas surgem ao passo que as contradições da violência repressiva colocam em cheque a presunção de legitimidade irrestrita dos ocupantes do poder político formal.

Para além da insatisfação com o atual governo e do surgimento de novos protagonistas na corrida presidencial de 2014, as manifestações em curso dizem respeito ao futuro da política no Brasil. A contestação trazida à tona pelas manifestações promove ampla reflexão sobre Política e seu conteúdo (ao passo que promessas de reforma do sistema político formal desaparecem). Propõem novos espaços políticos, reabrem os já existentes para renovadas possibilidades.

Reações agressivas por parte de agentes estatais às manifestações sinalizam não apenas com a preservação do patrimônio público e privado ou com a manutenção da ordem pública (ou dos atuais ocupantes de cargos públicos nestes). Buscam preservar as prerrogativas éticas do estado – o direito de dizer o que é a Política, e onde essa ocorre. A violência contra as manifestações é mais simbólica do que física. O direito e a coragem de perguntar – para além de programados “sim” e “não” – não esmoreceram.

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Carlos Frederico Pereira da Silva Gama e Pedro Maia são, respectivamente, professor de Relações Internacionais no IRI/PUC-Rio, pesquisador do CNPQ e autor de Modernity at Risk: Complex Emergencies, Humanitarianism, Sovereignty (Lambert Publishing, 2012); e graduando em Relações Internacionais no IRI/PUC-Rio e pesquisador do PET – Programa de Educação Tutorial