Friday, 26 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Reconhecer seus erros também é fazer História

A relativa proximidade entre o lançamento do site Memória O GLOBO, em 1º de setembro, e a onda de manifestações de rua em junho e julho deu a alguns a falsa impressão de que o jornal estava reagindo ao momento político. Ainda mais porque, neste novo espaço na internet, O GLOBO, além de expor um extenso material sobre sua história, personagens, reportagens, etc., também assume erros editoriais, bem como responde a acusações infundadas.

E como, de maneira direta, sem subterfúgios, reconhece que, à luz da História, foi um erro editorial o apoio ao golpe de 64, é possível que haja quem considere tudo uma ação de marketing oportunista, em função do ambiente político criado pelas manifestações. Ora, quem é do ramo sabe que seria impossível, de junho ao final de agosto, criar-se um site repleto de fac-símiles, com depoimentos gravados, fotos e tudo o mais. O Memória, na verdade, consumiu cerca de dez meses de trabalho, a partir da decisão tomada no Conselho Editorial das Organizações Globo de fazê-lo.

E ele é apenas um dos resultados visíveis de um longo processo de discussão da cultura, missão, valores, processos e foco das Organizações Globo, iniciado em meados da década de 90, quando começou a ser planejada a sucessão de Roberto Marinho. Uma das medidas do êxito do trabalho é que, ao morrer Roberto Marinho, em 2003, as rotinas no grupo não foram alteradas, porque já haviam sido recicladas para um modelo de administração empresarial e editorial horizontalizado.

Na virada da década de 90, são apresentados a missão e os valores das OG, em um encontro de um dia entre os acionistas do grupo, Roberto Irineu Marinho, João Roberto e José Roberto, e os 500 executivos de primeiro e segundo escalão das OG, e não apenas das áreas editoriais. Lá já constava, entre outros pontos, a preocupação com a diversidade e interdependência, bases de uma visão pluralista de mundo. No mesmo encontro, divulgou-se pesquisa de imagem dos veículos da empresa, em que apareciam os efeitos negativos causados pela “edição”, feita pela TV Globo, do debate Lula-Collor na campanha presidencial de 1989. Serviu como recado de que problemas decorrentes de deslizes ou má compreensão do trabalho jornalístico têm de ser enfrentados.

Não por coincidência, logo em 1999 é criado o Projeto Memória, para ser, como é e diz o nome, o depositário da história das Organizações, relatada por documentos e pessoas que fazem os jornais, TV, rádio, editora, e assim por diante. A organização dos arquivos de Irineu e Roberto Marinho já permitiu o lançamento de livros, uma exposição e um site. Diretores, editores, repórteres têm depoimentos gravados em vídeo e guardados pelo Projeto Memória. Alguns precisaram ser atualizados para o Memória O GLOBO, em que podem ser ouvidos os bastidores de grandes reportagens contados pelos próprios autores. O Projeto Memória dá retaguarda à política de transparência crescente do grupo.

Canais com a sociedade

O Conselho Editorial, também instituído na passagem das décadas de 1990 para 2000, se consolidou como fórum, além da agenda do dia a dia do jornalismo, de discussões sobre princípios éticos, manuais para as redações, desde regras e normas para momentos específicos, como eleições, a documentos mais amplos, básicos, caso dos Princípios Editoriais, de 2011, disponíveis em todos os sites das OG. Neles, estão definições do que entendemos por jornalismo, “verdade”, notícia, questões éticas. A necessidade de reconhecermos o erro e corrigi-lo com o devido destaque é um dos vários itens dos Princípios.

O Memória O GLOBO, portanto, não é fortuito. Não surge de alguma análise de conjuntura política ou qualquer outra. Ele se assenta em um lastro amplo, em construção há muito tempo e em constante evolução. Poderia ter sido lançado antes, mas só o foi agora porque não estava concluída a digitalização de todo o acervo do jornal. Como o Memória usaria muitos fac-símiles de O GLOBO, ele dependia do lançamento do Acervo. Tratava-se de uma questão operacional.

Iniciativas na mesma direção já haviam sido tomadas. Em 2004, a Globo lançou o livro “Jornal Nacional a Notícia faz história”, em que – no mesmo espírito seguido, nove anos depois, pelo Memória – explica-se, no relato da trajetória do JN, o que houve na edição do debate Lula-Collor. Afasta-se, também, sempre com fatos e depoimentos, a ideia de que a TV participara, em 1982, no caso Proconsult, de uma “conspiração” para impedir a eleição de Leonel Brizola a governador do Rio de Janeiro.

Quatro anos depois, 2008, é colocado no ar, no site da emissora, o espaço Memória, em que também os erros são assumidos – além da edição do debate, a cobertura do início da campanha das Diretas Já – e acusações, rebatidas, como a dos inexistentes “empréstimos do BNDES” supostamente concedidos às OG, e das concessões de canais “dadas” pelos militares – nenhuma foi liberada pela ditadura –, o caso Proconsult, entre outras.

O Memória O GLOBO surge, então, em 2013, como consequência natural de todo esse já longo processo. Por trás de tudo, há o conceito de que, se a internet escancara as portas das redações, em qualquer mídia, e coloca leitor, telespectador e ouvinte como personagens atuantes no jornalismo, devemos usar essa abertura imensa de canais de comunicação com a sociedade para não apenas relatar nossa história, mas também rebater acusações, desfazer mal-entendidos e assumir erros de peito aberto. Usar o avanço tecnológico para proteger e reforçar nosso crucial ativo da credibilidade.

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Aluizio Maranhão é jornalista