Friday, 29 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

Novas máquinas, outras mentes

Desde 2007, para este Observatório, escrevi inúmeros artigos envolvendo a temática acerca do impacto gerado pelas novas “ferramentas tecnocomunicacionais”. Ao longo do presente ano, retornando ao tema, publiquei, neste mesmo veículo, três artigos, sob o título de “Outras máquinas e novas mentes”.

Repensando o já escrito, em parceria com um olhar nos tempos presente e futuro, achei por bem escrever este, invertendo os termos do título anterior, a fim de possibilitar reavaliações capazes de serem justas com o novo tempo, pois aquele que não revê a si mesmo, menos ainda, será capaz de ver a dimensão do outro…

O efeito “furacão”

Qual, então, é a questão? Em pouco tempo, o mundo milenar, sob o primado da técnica, foi arrebatado pela pujança incontida do vigor da tecnologia. Os impactos objetivos (e, principalmente, subjetivos) foram (e são) imensos, a ponto de não darem tempo para as devidas assimilações. Como a violência de um furacão, bilhões de seres, no mundo, têm invadidos por ampla oferta de aparelhos dotados de múltiplas funções, tornando “sucata” tudo o que, antes, conheciam e usavam.

À velocidade da Sociedade Industrial, de base analógica (principado da técnica), a tecnologia somou a aceleração, em favor da primazia do “mundo virtual” (reinado da tecnologia digital), como bem pontua o teórico Paul Virilio, ou seja: num processo de ritmo progressivo, a vida cotidiana, habituada a um modo de viver e de se comunicar, repentinamente sofreu a “onda de choque”. O que era uma vida, em ritmo de bolero, passou, bruscamente, para “rock progressivo”… O trem da história saiu dos trilhos. Nada a lamentar. Tudo a refazer-se e, a tudo, readaptar-se, pois não há retorno possível, no tempo. Na história da humanidade, não há retrocessos. Então, quem se paralisa num estágio, nele, para sempre, ficará congelado.

O mundo da técnica fazia-se reger pelo conhecimento pausado e sedimentado; a era da tecnologia é impulsionada pelo saber em movimento e, febrilmente, renovado. O tempo pausado requerido pela técnica não serve ao mundo da tecnologia, assinalada pelo “tempo espasmódico e sôfrego”. Este cobra agilidade e perspicácia instantâneas. As “novas máquinas” exigem “outras mentes”. Voracidade, velocidade e ferocidade representam o novo “imperativo categórico” da atualidade (relembrando, e reatualizando, o conceito de Kant). Quem a ele não se adequar será, sumariamente, excluído de qualquer possibilidade competitiva para a obtenção de um “lugar” autenticado pela “vida social ativa”.

O modelo é frio, cruel? Sim, mas o cenário é real e irreversível. Aquele que “sonhar” com um retorno à vida de “contemplação” e vinculações estáveis, sob o jugo de um paradigma objetivo e insensível, terá de amargar com a “lógica perversa da exclusão”.

O teórico francês Serge Latouche prega a política do “decrescimento”, insurgindo-se (e com razão) contra uma economia calcada no princípio da “obsolescência programada” – a propósito, sugiro ao leitor que procure, no YouTube o vídeo “A historia da obsolescência programada”. Nele, em síntese, há a revelação de um “acordo”, oriundo da Sociedade Industrial, no início do século 20, quanto, com base em sofisticada pesquisa científica, determinar o “tempo de vida útil” que os produtos devem ter. Os exemplos (todos documentados) são fantásticos, verdadeiros artifícios da perversão pelo lucro.

Latouche pensa em poder reverter essa lógica. A questão é: a força de grupos emergentes da sociedade civil será capaz de enfrentar e reverter a política despótica enraizada no imaginário das “megacorporações do capital”? A proposta é instigante, porém, em seu bojo, traz um perigo: no século 19, os românticos que apostaram na “utopia da reversão pelo Ideal” foram aniquilados pela “lógica impositiva do real”. Mais de um século se passou e o tema retorna. Será uma segunda derrota? Os indicativos atuais ratificam o passado. Não abdico do direito à tentativa de reversibilidade, tampouco não me permito a vivencia do “sonho da ingenuidade”.

O poeta de muitos de nós, Carlos Drummond de Andrade, um dia, alertou: “No meio do caminho tinha uma pedra /…/”. Sim, no meio de nosso caminho há uma pedra. O agravante é que a “pedra” à qual o poeta fazia referência ainda aludia ao peso da pedra que Sísifo, na mitologia grega, tinha de suportar em seus ombros combalidos. Todavia, daquele longínquo tempo de milênios, para o tempo de agora (quase sem “ágora”), algo de mais portentoso e devorador se instalou na vida planetária: tecnologia é o saber das máquinas. Quem quiser sobreviver tem de conhecê-las e aplicá-las à vida produtiva. Entretanto, isto não significa a submissão a elas.

Na esquina do impasse

Na encruzilhada da atual época, a questão é apenas uma: o que fazemos e o quanto poderemos fazer, ante a rica oferta de “máquinas inteligentes” em nossas mãos? Para começar, não ouço e ignoro quem amaldiçoa o que a inteligência humana criou. A razão é óbvia: hoje, temos o resultado do fruto de cérebros qualificados e sofisticados. Como rejeitar? Qualquer recusa significa conspirar contra a expansão do que, no ser humano, há de mais dadivoso.

A atual “paisagem do mundo”, a despeito de tantas novas ofertas, não difere, no fundamento, quanto ao impacto que jovens astutos e perspicazes, na fervura dos anos 1960, absorveram e pontuaram. Dentre muitos, em diversos continentes, um, no Brasil, abriu o verbo e a imagem: Glauber Rocha. Com apenas 23 anos, e de posse de uma “ferramenta” quase “jurássica”, ele foi à luta sob a crença de um “slogan”: “uma câmera na mão e uma ideia, na cabeça”. Daí, resultaram filmes que impactaram cineastas europeus (Godard, Fellini, Pasolini). Primeiramente, Deus e o diabo na terra do sol; adiante, Terra em transe.

No cenário presente, temos uma tecnologia capaz de transformar qualquer ser em fotógrafo, cineasta… um “smart”, um celular. Sim, não nos esqueçamos da “ferramenta” mais recente: video mapping. Enfim, tudo está na mão e à mão. É só usar, criativamente. O problema é que, nesse novo quadro geracional, a constatação é outra: “câmera na mão e nenhuma ideia na mente”. A tecnologia sofisticada, disponível para bilhões de cérebros, está, como produto vendável, banalizada para ampla população consumidora do banal, trivial e vulgar. Este é o cenário real. O resto é ficção barata.

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Ivo Lucchesi é ensaísta, articulista, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular de Linguagem Impressa e Audiovisual da FACHA ((RJ).